Idealizado pelo estudioso alemão Claus Roxin, nos idos de 1964, o princípio da insignificância tem seu campo de atuação baseado, em linhas gerais, na premissa segundo a qual a conduta de determinada pessoa, não obstante tipificada como crime, é irrelevante para o Direito Penal quando não é apta a produzir efetiva lesão ao bem juridicamente protegido pela norma, seja a sociedade, o ordenamento jurídico ou a própria vítima.
Dirigido aos aplicadores do Direito, em geral, e ao juiz, em particular, esse princípio visa desconsiderar a atuação do Direito Penal em casos de ínfima afetação do bem jurídico, onde o conteúdo do injusto se mostra tão irrisório que não subsiste qualquer razão para aplicação de sanção penal.
Para Francisco de Assis Toledo, primeiro doutrinador brasileiro a se referir ao alcance do princípio da insignificância, “que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas, ninharias”1.
Ocorre que, a despeito de ser este o entendimento que ressoa majoritário, a aplicação do princípio da insignificância, mormente quando se trata de bens jurídicos supra-individuais, que estão para além do indivíduo, alcançando interesses de grupos determinados, determináveis ou indeterminados de pessoas, é tema gerador de vigorosos debates na doutrina e jurisprudência pátrias.
Com efeito, para alguns, o referido princípio não se aplica aos chamados crimes supra-individuais, tendo em vista a expressiva lesividade que estes tipos de delito causam à sociedade como um todo, de modo que a punição do agente se justifica no perigo social que a sua prática apresenta.
Segundo eles, nessas situações, fica afastada a aplicação da insignificância porque não se deve considerar apenas o objeto material do crime, mas também o tipo do injusto e o bem jurídico atingido.
Nos crimes contra o patrimônio, por exemplo, a objetividade jurídica ofendida se resume ao patrimônio que foi furtado, de modo que o magistrado que aplica a lei penal, ao fazer a adequação da conduta ao tipo descrito na lei, leva em conta, não apenas a letra da lei, mas também seu significado, afastando então a caracterização do crime quando o objeto jurídico tutelado não chegou a ser atingido. Nos casos em que a conduta do agente atinge bens jurídicos supra-individuais, no entanto, ainda que se considere o delito como de pouca gravidade, tal não se identifica com o indiferente penal, porquanto, observado o binômio tipo de injusto/bem jurídico tutelado, estará sempre presente efetiva ofensa a este, que guarda extrema relevância, e por isso justifica a persecução penal instaurada e a possível aplicação de pena.
A propósito, transcrevo:
TÓXICOS - TRÁFICO DE DROGAS - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INAPLICABILIDADE - AGENTE PRESO EM FLAGRANTE - PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA - IRRELEVÂNCIA - DROGA DIVIDIDA EM DOSES UNITÁRIAS - CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL - RETRATAÇÃO - DEPOIMENTO POLICIAL - INDÍCIOS VEEMENTES - DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO - IMPOSSIBILIDADE.
O princípio da insignificância não se aplica aos crimes de tóxico, tendo em vista a expressiva lesividade que o crime de trafico causa à sociedade, assim, a punição do agente se justifica no perigo social que a sua prática apresenta. Inadmissível o pedido de desclassificação para o delito previsto no art. 28 da Lei Federal 11.343/06, se o contexto probatório não deixa dúvidas de que a droga apreendida destinava-se à distribuição, sendo a mesma apreendida dividida em treze doses unitárias, sendo irrelevante a sua quantidade, visto que o acusado confessa a mercancia, mesmo retratando-se quando não restou comprovado qualquer vício nas declarações do acusado, na fase inquisitorial. Recurso a que se nega provimento.
(TJMG - Processo nº 1.0024.07.451261-7/001 - Relator: Judimar BiBer - Data do acórdão: 11/12/2007 - Data da publicação: 11/01/2008).
Segundo estes, o princípio da insignificância é inadequado à realidade brasileira, porquanto o Professor Claus Roxin o desenvolveu sem levar em conta as condições pessoais do agente, e não nos seria prudente ignorar que a realidade alemã em muito difere da nossa, onde há uma constatação empírica de que o Direito Penal pátrio deve, sim, se preocupar com a reiteração de pequenos delitos.
Para outros, entretanto, a tipicidade pressupõe lesão efetiva e relevante ao bem jurídico tutelado, seja ele de índole individual ou supra-individual, já que imperioso o juízo de danosidade social de um comportamento que se pretenda qualificar como criminoso.
Tal posicionamento, ao qual, frise-se, filiamo-nos, parte do pressuposto de que a conduta do agente, para se transformar em fato típico, ou melhor, materialmente típico, deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma, de modo que não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado. Trata-se, segundo melhor doutrina, da necessária aplicação do princípio da ofensividade.
A construção de um direito penal regido pelo paradigma da ofensividade parte da premissa básica de que a norma penal possui caráter acentuada e prioritariamente valorativo, isto é, ela existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal.
O aspecto valorativo da norma fundamenta o injusto penal, isto é, coligado com o princípio da ofensividade, só existe crime quando há ofensa concreta ao bem jurídico por ela tutelado. Daí se conclui que o crime exige, sempre, desvalor da ação (a realização de uma conduta valorada negativamente), assim como desvalor do resultado (afetação concreta de um bem jurídico). Sem ambos os desvalores não há injusto penal, ou seja, não há crime, pois, afastada a tipicidade.
Esposando este entendimento, o STF e o STJ tem aceitado a incidência do princípio da insignificância nos crimes de descaminho e contra a ordem tributária, nos casos em que o valor do tributo devido for inferior ao mínimo executável pela Fazenda Pública, qual seja R$ 10.000,00 (dez mil reais).
HABEAS CORPUS. CRIME DE DESCAMINHO (ART. 334 DO CP). TIPICIDADE. INSIGNIFICÂNCIA PENAL DA CONDUTA. TRIBUTO DEVIDO QUE NÃO ULTRAPASSA A SOMA DE R$ 3.067,93 (TRÊS MIL, SESSENTA E SETE REAIS E NOVENTA E TRÊS CENTAVOS). ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O postulado da insignificância opera como vetor interpretativo do tipo penal, que tem o objetivo de excluir da abrangência do Direito Criminal condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico por ele tutelado. Tal forma de interpretação assume contornos de uma válida medida de política criminal, visando, para além de uma desnecessária carceirização, ao descongestionamento de uma Justiça Penal que deve se ocupar apenas das infrações tão lesivas a bens jurídicos dessa ou daquela pessoa quanto aos interesses societários em geral. 2. No caso, a relevância penal é de ser investigada a partir das coordenadas traçadas pela Lei 10.522/02 (objeto de conversão da Medida Provisória 2.176-79). Lei que determina o arquivamento das execuções fiscais cujo valor consolidado for igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Sendo certo que os autos de execução serão reativados somente quando os valores dos débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ultrapassarem esse valor. 3. Incidência do princípio da insignificância penal, segundo o qual para que haja a incidência da norma incriminadora não basta a mera adequação formal do fato empírico ao tipo. Necessário que esse fato empírico se contraponha, em substância, à conduta normativamente tipificada. É preciso que o agente passivo experimente efetivo desfalque em seu patrimônio, ora maior, ora menor, ora pequeno, mas sempre um real prejuízo material. Não, como no caso, a supressão de um tributo cujo reduzido valor pecuniário nem sequer justifica a obrigatória cobrança judicial. 4. Entendimento diverso implicaria a desnecessária mobilização de u'a máquina custosa, delicada e ao mesmo tempo complexa como é o aparato de poder em que o Judiciário consiste. Poder que não é de ser acionado para, afinal, não ter o que substancialmente tutelar. 5. Não há sentido lógico permitir que alguém seja processado, criminalmente, pela falta de recolhimento de um tributo que nem sequer se tem a certeza de que será cobrado no âmbito administrativo-tributário do Estado. Estado julgador que só é de lançar mão do direito penal para a tutela de bens jurídicos de cuja relevância não se tenha dúvida. 6. Jurisprudência pacífica de ambas as Turmas desta Suprema Corte: RE 550.761, da relatoria do ministro Menezes Direito (Primeira Turma); RE 536.486, da relatoria da ministra Ellen Gracie (Segunda Turma); e HC 92.438, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa (Segunda Turma). 7. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória. (STF – HC 100177/PR – Primeira Turma – Rel. Min. Ayres Britto – Dje 20/08/2010).
PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ART. 278 DO CP. DENÚNCIA QUE SE REVESTE DAS FORMALIDADES LEGAIS. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A jurisprudência da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que a quantia de R$ 10.000,00, prevista no art. 20 da Lei 10.522/02 (com alterações incluídas pela Lei 11.033/04) como limite para fins de arquivamento de ações fiscais sem baixa na distribuição, deve também ser utilizada como parâmetro para a aplicação do princípio da insignificância em sede de descaminho, na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. 2. O recorrente foi denunciado por ter introduzido no território nacional mercadoria de origem estrangeira sem o recolhimento dos tributos devidos, no montante de R$ 2.126,50. 3. Embora a conduta se amolde à definição jurídica do crime de descaminho, não ultrapassa o exame da tipicidade material,
mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a sua ofensividade se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzido e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva. 4. Não procede a pretensão de trancamento da ação penal quanto ao crime previsto no art. 278 do Código Penal, já que a denúncia se reveste da plausibilidade jurídica suficiente para que prossiga o processo, sendo certo que somente se admite o trancamento, em sede de habeas corpus, quando verificado, de plano, que o fato evidentemente não constitui crime, hipótese que não ocorreu na espécie. 5. Recurso parcialmente provido para determinar a extinção da ação penal instaurada contra o recorrente no tocante ao delito previsto no art. 334, § 1º, "c", do Código Penal, invalidando, por consequência, eventual condenação penal contra ele imposta. (STJ – RHC 27623/SP – Quinta Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – Dje 21/06/2010).
Recentemente, o STF passou a entender também que o princípio da insignificância tem aplicação em relação aos crimes contra a saúde pública, mormente aqueles que envolvam substância entorpecente, sob o argumento de que não é todo crime relativo à droga que ofende este valor coletivo.
Consoante declinado pelo Excelso Pretório, ainda que os delitos descritos na Lei 11.343/06 sejam de perigo presumido, a necessidade de aferição da lesividade persiste, já que imperioso o juízo de danosidade social de um comportamento que se pretenda qualificar como criminoso, senão vejamos:
CRIME MILITAR (CPM, ART. 290) - PORTE (OU POSSE) DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE - QUANTIDADE ÍNFIMA - USO PRÓPRIO - DELITO PERPETRADO DENTRO DE ORGANIZAÇÃO MILITAR - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - APLICABILIDADE - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - PEDIDO DEFERIDO. - Aplica-se, ao delito castrense de porte (ou posse) de substância entorpecente, desde que em quantidade ínfima e destinada a uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar, o princípio da insignificância, que se qualifica como fator de descaracterização material da própria tipicidade penal. Precedentes. (STF – HC 97131/MG – Segunda Turma – Rel. Min. Celso de Melo – Dje 27/08/2010).
Com efeito, o sistema jurídico há de considerar a relevante circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor, por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes, não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.
Nas precisas palavras de Maurício Antônio Ribeiro Lopes:
“o princípio da insignificância se ajusta à equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do Direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças”2.
Ora, como é cediço, a principal função que o Direito Penal exerce numa sociedade é a de proteger os bens jurídicos mais importantes que ela tem e, para tal, é evidente que ele só vai intervir quando houver necessidade da tutela, e esta só ocorre quando há a chamada lesividade.
A exigência da lesividade ao bem jurídico penalmente tutelado, consubstanciada na efetiva lesão ou no perigo concreto ou idôneo de dano ao interesse jurídico, é característica ínsita de um Direito Penal decorrente do Estado Democrático de Direito, com vistas a restringir ao máximo o poder punitivo estatal, reconduzindo o Direito Penal à sua verdadeira função, a de exclusiva proteção dos bens jurídicos mais importantes da vida em coletividade. Nesse diapasão, torna-se imperioso concluir que, nos moldes da moderna dogmática penal, fundamentada na dignidade da pessoa humana, é devida a aplicação do princípio da insignificância quando se trata de bens jurídicos supra-individuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7ª ed. rev, atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
NOTAS
1 Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 159.
2 Princípio da Insignificância no Direito Penal, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p.55.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, pós-graduanda em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, Analista do Ministério Público do estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Mônica Oliveira. Princípio da Insignificância e Bens Jurídicos Supra-individuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2010, 17:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21519/principio-da-insignificancia-e-bens-juridicos-supra-individuais. Acesso em: 23 dez 2024.
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