Derivado do termo inquisitio, de origem romana, a figura do Inquérito Policial, ao menos com essa denominação, foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Lei nº. 2.033/71, regulamentada pelo Decreto nº. 4.824/71, o qual dispunha que “o inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e dos seus autores e cúmplices”1(in verbis).
Com efeito, desde a sua origem, tem o Inquérito Policial o escopo de esclarecer a verdade acerca da autoria e materialidade de suposta infração penal, que poderá, conforme a sua substância, implicar no exercício do processo penal.
Segundo André Rovegno, o inquérito policial
é o expediente escrito, produzido pelo órgão de polícia judiciária competente, onde são reunidas e documentadas todas as diligências levadas a efeito (e todos os resultados encontrados nessas diligências) durante a tarefa de esclarecer as circunstâncias de um fato que se apresentou inicialmente com aparência de ilícito penal passível de sancionamento, confirmando ou infirmando essa aparência inicial e, esclarecendo, se possível, na hipótese confirmada, a autoria da conduta2.
Mas não é só á busca da verdade, como “um meio de garantir o indivíduo contra acusações injustificadas”3, que se destina o Inquérito. Essa é, como sobredito, sua finalidade essencial, que não exclui a existência de outras finalidades, quais sejam: servir de base para que o julgador avalie a concessão de medidas cautelares (prisão temporária ou preventiva, busca e apreensão, interceptação telefônica, sequestro de bens, etc), fornecer “a oportunidade de colher provas que não podem esperar muito tempo, sob pena de perecimento ou deturpação irreversível (ex.: exame do cadáver ou do local do crime)” 4e fornecer lastro probatório mínimo apto a embasar o juízo de admissibilidade da ação penal, por muitos denominada justa causa.
No que tange aos elementos informativos colhidos nesta fase, há quem afirme não possuir ele valor probatório algum, uma vez que nova instrução criminal sucederá em juízo, com a participação direta das partes e a presidência do magistrado competente. Neste sentido, para Afrânio Silva Jardim:
A prova carreada para o inquérito não tem por finalidade o convencimento do Juiz, mas apenas dar lastro probatório à eventual ação penal, tendo em vista que a simples instauração do processo, pelo streptus fori, causa dano social irreparável ao réu. Por isso, o inquérito policial é um procedimento administrativo investigatório absolutamente sumário, voltado exclusivamente para a viabilização da ação penal5.
Nas palavras de Paulo Rangel:
Entendemos inadmissível a condenação do réu com base apenas nas provas colhidas durante a fase do inquérito policial, sem que as mesmas sejam corroboradas no curso do processo judicial, sob o crivo do contraditório, pois a “instrução” policial ocorreu sem a cooperação do indiciado e, portanto, inquisitorialmente6.
Outros, por sua vez, considerando que o vigente Código de Processo Penal pôs termo ao sistema de hierarquia das provas, partem da premissa de que o juiz não está subordinado a nenhum critério apriorístico para apurar através delas a verdade material, pelo que, informado pelo princípio da livre convicção e da verdade real estaria autorizado a proferir sentença condenatória com arrimo em prova colhida exclusivamente em sede de inquérito policial. Assim, José Frederico Marques:
embora o princípio do livre convencimento não permita que se formulem regras apriorísticas sobre a apuração e descoberta da verdade, certo é que traz algumas limitações a que o Juiz não pode fugir; e uma delas é a de que, em face da Constituição, não há prova (ou como tal não se considera), quando não produzida contraditoriamente7.
Em verdade, não obstante as provas produzidas na fase extrajudicial devam, via de regra, ser repetidas quando da instrução criminal, para que possam embasar uma eventual condenação, incorre em equívoco afirmar-se que a prova policial é despida de valor probatório. “A exigência constitucional de contrariedade na instrução criminal não implica necessariamente o total desvalor do inquérito policial. Do contrário, ele não passaria de uma extravagância legal, por sua inutilidade”8.
Certas provas produzidas no curso do inquérito, dada a efemeridade do seu objeto, adquirem status de prova definitiva, pois irrepetíveis na instrução do processo, a exemplo de algumas provas periciais, como o exame de corpo de delito. Também são desenvolvidos, já na fase investigativa, alguns atos de cunho jurisdicionalizado, que visam, muitas vezes, à garantia do processo.
Nestes casos, o inquérito policial irradia efeitos para além de seu ínterim, para alcançar a instrução processual.
Ora, é imune de dúvidas o fato de que a prova pericial goza de elevado prestígio no conjunto probatório voltado à apuração de fato criminoso. “A prova pericial constitui no processo criminal um dos meios mais eficazes na atualidade para esclarecimento dos fatos”9.
E essa importância cresce ainda mais no âmbito do inquérito policial, porquanto boa parte das perícias realizadas nesta fase aí se consumam, de modo que dificilmente serão repetidas em juízo. Isso porque, conforme ressalta Fernando da Costa Tourinho Filho, “os vestígios já desapareceram e, assim, impossibilitada ficará a defesa de insistir na feitura de novo exame”10.
Assim, segundo preleciona Frederico Marques:
O exame pericial realizado na fase preparatória do inquérito policial não constitui, por isso, simples peça de investigação, embora sirva para integrar a informatio delicti. A perícia realizada em qualquer fase do procedimento penal é sempre ato instrutório emanado de órgão auxiliar da Justiça para a descoberta da verdade11.
Ademais, não se traduz o inquérito policial em mero procedimento administrativo com vistas à formação da opinio delicti do titular da ação penal, mas em um conjunto de atos administrativos e jurisdicionais reunidos em busca da apuração da verdade acerca de um fato que se reveste de aparência criminosa.
Há alguns atos desenvolvidos pela polícia judiciária na fase investigativa que não são administrativos, uma vez que carecem do atributo da imperatividade. Dependem eles de concordância prévia do poder judiciário, na medida em que detém potencial lesividade a alguns dos direitos fundamentais do homem protegidos constitucionalmente.
Isso ocorre, por exemplo, quando da prisão temporária, da decretação da prisão preventiva, do sequestro de bens, da hipoteca legal, da quebra de sigilo (bancário, fiscal, telefônico) etc, haja vista tratar-se de atos coercitivos contra a pessoa do indiciado e/ou a seus bens.
Tais medidas, além de contribuírem para o sucesso da própria investigação, pois determinantes na busca da verdade, objetivo precípuo do inquérito, também são úteis para prevenir um eventual processo-crime e a possível aplicação da sanção.
É mormente por conta de casos tais que certos doutrinadores, a exemplo de Fauzi Hassan Chouke, tem defendido que, desde a primeira fase da persecutio criminis, devem ser observadas as garantias do contraditório e da ampla defesa.
a característica da irrepetibilidade de alguns atos existentes ao longo da investigação criminal, é que autoriza a colocação em pauta do tema do contraditório nessa fase, relacionando-se que não poderá haver um pleito de defesa se não for possibilitada a intervenção do suspeito já desde esse momento12.
Nas palavras de Ivan Nascimento de Castro:
Relevante, pois, que se faça inserir na investigação as garantias constitucionais adequadas ao exercício da missão do Estado, levando-se em conta na análise das garantias aplicáveis à finalidade e natureza da peça investigatória, buscando harmonizar sua essência com os limites da invasão pelo Estado na liberdade individual13.
Forçoso reconhecer, destarte, que, embora o material colhido durante o inquérito policial não seja sozinho, conforme construção doutrinária e jurisprudencial assente, apto a embasar sentença penal condenatória, muito do que se produz nessa fase irradia efeitos para o processo, pelo que deve ser considerado pelo juiz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Ivan Nascimento de. A aplicação dos Direitos e Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. Revista Jurídica da Universidade de Franca. Franca, Ano 8, n. 14, jan./jun. 2005.
GOMES, Margarida Maria Nunes de Abreu; RIBEIRO, Bernardo Barrozo; CRUZ, Ivna Mauro. O Princípio do Contraditório e o Inquérito Policial. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Campos dos Goitacazes: Editora FDC, Ano VIII, n. 10, p. 353-371, jan./jun. 2007.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Sacarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 6. ed. rev., ampl. e atual. com nova jurisprudência e em face da Lei 9.099/95 e das leis de 1996. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
MEHMERI, Adilson. Inquérito Policial: Dinâmica. São Paulo: Saraiva, 1992.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal – O Direito de Defesa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 6. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
ROVEGNO, André. O Inquérito Policial e os princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla defesa. Campinas: Ed. Bookseller, 2005.
TEIXEIRA, Francisco Dias. Indiciamento e Presunção de Inocência. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 6, nº 71, outubro/1998.
NOTAS
1 BRASIL. Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871. Regula a execução da Lei nº 2033 de 24 de setembro deste mesmo ano. In: PLANALTO. Legislação. Rio de Janeiro, 1871. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DIM/DIM4824.htm>. Acesso em: 25 ago. 2010.
2 O Inquérito Policial e os princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla defesa. Campinas: Ed. Bookseller, 2005, p.91.
3 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 76.
4 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 76.
5 Apud TEIXEIRA, Francisco Dias. Indiciamento e Presunção de Inocência. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 6, nº 71, p. 14, outubro/1998.
6 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 6. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p.85.
7 Apud PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal – O Direito de Defesa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 71.
8 MEHMERI, Adilson. Op. cit., p. 21.
9 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Sacarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 6. ed. rev., ampl. e atual. com nova jurisprudência e em face da Lei 9.099/95 e das leis de 1996. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 145.
10 Apud MEHMERI, Adilson. Processo Penal – O Direito de Defesa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 194.
11 Apud MEHMERI, Adilson. Op. cit., p. 194.
12 Apud GOMES, Margarida Maria Nunes de Abreu; RIBEIRO, Bernardo Barrozo; CRUZ, Ivna Mauro. O Princípio do Contraditório e o Inquérito Policial. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Campos dos Goitacazes: Editora FDC, Ano VIII, n. 10, p. 353-371, jan./jun. 2007.
13 CASTRO, Ivan Nascimento de. A aplicação dos Direitos e Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. Revista Jurídica da Universidade de Franca. Franca, Ano 8, n. 14, p. 120-123, jan./jun. 2005.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, pós-graduanda em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, Analista do Ministério Público do estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Mônica Oliveira. Do material probatório colhido em Inquérito Policial e sua influência na instrução criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2010, 07:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21552/do-material-probatorio-colhido-em-inquerito-policial-e-sua-influencia-na-instrucao-criminal. Acesso em: 23 dez 2024.
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