Na hodierna sistemática jurídica brasileira, que tem sua gênese na Carta Magna de 1988, o Ministério Público tem status constitucional de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988 representou para o Ministério Público a concretização de grandes e longínquos anseios almejados pela instituição, revestindo-o de prerrogativas e atribuições inéditas no passado.
Neste sentido, dissertou José Afonso da Silva:
O Ministério Público vem ocupando lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, dado o alargamento de suas funções de proteção de direitos indisponíveis e de interesse coletivos. A constituição de 1891 não o mencionou, senão para dizer que um dos membros do Supremo Tribunal Federal seria designado Procurador-Geral da República, mas uma lei de 1890 (de n. 1030) já o organizava como instituição. A Constituição de 1934 o considerou como órgão de cooperação nas atividades governamentais. A de 1946 reservou-lhe um título autônomo, enquanto a de 1967 o incluiu numa seção do Poder Judiciário e a sua Emenda 1/69 o situou entre os órgãos do Poder Executivo. Agora, a Constituição lhe dá relevo de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[1].
Assim, o Ministério Público passou a ter uma série de prerrogativas, como a garantia da vitaliciedade, da inamovibilidade, da consagração dos princípios da unidade e da indivisibilidade institucional, bem como da equiparação das suas vantagens pecuniárias com as dos membros do poder judiciário.
Ademais, com a atual Lei Maior, além da nobre função de fiscal da lei, passou o Ministério Público a ter legitimidade para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos interesses difusos e coletivos, para a defesa, judicialmente, dos direitos interesses das populações indígenas, para zelar pelo respeito entre os poderes, bem como para a promoção da ação civil pública e do inquérito civil, para a promoção, com exclusividade da ação penal pública, mas não para instauração de inquéritos penais e para a realização de diligências investigatórias na esfera criminal.
No âmbito penal, não parece que era vontade do legislador constituinte atribuir ao Ministério Público a realização de investigações criminais, de modo que, caso assim desejasse, teria o feito expressamente, como fez com a ação penal pública, coma ação civil pública e com o inquérito civil.
O fato é que, tendo em vista o modelo acusatório adotado no país, não é admissível, em que pese os entendimentos divergentes, a presidência e instauração de investigação criminal por parte do Ministério Público.
Ora, diversamente do sistema inquisitivo, o sistema de índole acusatória prevê um processo animado por partes, acusador e acusado, que se enfrentam, em igualdade de condições, perante um juiz delas equidistante, a quem incumbe, tão somente, instruir e julgar a causa em conformidade com aquilo que lhe foi trazido pelas partes.
Neste sentido, manifestou-se Fernando de Almeida Pedroso:
(...) enquanto o sistema inquisitivo ensejava um procedimento unilateral com um juiz de atividade multiforme, o acusatório – obtempera Florian – deu lugar, fundamentalmente, a um processo de partes. Com ele, ressalta Lucchini, procura-se atingir ao fim próximo do processo – a descoberta da verdade – coordenando entre si os interesses da acusação e da defesa, respeitando-se a igual dignidade e importância, e consagrando a imparcialidade e independência do juiz[2].
Nesse tipo de sistema, há, pois, uma nítida separação das funções de acusar, defender e julgar, senão vejamos: à polícia judiciária foi conferida a missão de investigar e apurar a infração penal, descobrindo seu(s) autor(es); ao Ministério Público cabe a propositura da ação penal, após ter formado sua opinio delicti; enquanto ao juiz compete o julgamento da causa, aplicando o direito ao caso concreto.
Ora, no processo de índole criminal, mais do que como fiscal da lei, o Ministério Público atua como parte, de modo que, se a ele for conferida a atribuição de investigar as circunstâncias de um fato que se revestiu inicialmente de aparência criminosa, em substituição à polícia, haverá ofensa ao princípio do equilíbrio das partes ou paridade de armas, que se afigura como fundamental num sistema de feições acusatórias.
Deve-se ter em consideração que o membro do parquet que toma para si a presidência das investigações tende a sofrer uma natural influência negativa no seu convencimento, de modo que buscará colher elementos informativos que sirvam à comprovação efetiva da autoria e materialidade do delito, transformando a fase investigativa em um instrumento de coleta de dados que serão utilizados pela acusação.
E, dada a imparcialidade que deve permear toda essa fase, não se deve admitir que seja ela conduzida por quem assumirá a qualidade de parte quando da eventual propositura da ação penal, uma vez que, neste momento, não se devem buscar elementos apenas de imputação, mas que se dirijam à busca da verdade, seja ela conducente à demonstração da culpa do investigado ou, diversamente, apta a demonstrar sua inocência.
O Ministro Marco Aurélio de Mello, ao ser indagado sobre o assunto, foi enfático ao afirmar que:
O Ministério Público, em si, é parte e não atua no campo da percepção criminal como fiscal da lei. E, sendo parte, deve ser preservada a postura de parte. É inconcebível que se chegue à conclusão de que o Ministério Público deva, ele próprio, atuar como parte e, também, como órgão investigador das circunstâncias de um possível crime. A Constituição Federal só prevê a titularidade do Ministério Público para o inquérito em uma hipótese, uma única hipótese (enfatiza). É quando se tem um inquérito civil e jamais um inquérito criminal[3].
Destarte, temos que o Ministério não possui legitimidade para a apuração de infração penal, porquanto tenha sido esta atribuída a outros órgãos. Eventualmente, quando da necessidade de realização de diligências investigatórias e da instauração de inquérito policial, a atuação deste órgão deve se limitar à requisição à autoridade policial, sob pena de usurpação de função, a qual, além de reprovável no âmbito constitucional, o é também processualmente.
O atual Código de Processo Penal, como não haveria de ser diferente, exige dos promotores de justiça a mesma imparcialidade exigida dos juízes. Assim, não podem os membros do parquet promover ação penal nos processos em que houver sido testemunha, ou em que ele próprio, seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até terceiro grau, tiver funcionado como autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito, consoante os artigos 258 e 252, incisos I e II do CPP.
Logo, com base nos preceitos constitucionais e processuais penais constantes do ordenamento jurídico brasileiro, construídos sob inspiração acusatória, não há que se falar em legitimidade do Ministério Público para a apuração de infrações penais.
BIBLIOGRAFIA
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal – O Direito de Defesa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
TODESCHINI, Maurício de Brito. Investigação criminal: presidência exclusiva da autoridade policial. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3426>. Acesso em: 10 setembro 2010.
Notas:
[2] Processo Penal – O Direito de Defesa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 26.
[3] Apud TODESCHINI, Maurício de Brito. Investigação criminal: presidência exclusiva da autoridade policial. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id= 3426 >. Acesso em: 01 maio 2009.
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