Coautor: HUGO VINÍCIUS ALVES[1] Analista de sistemas graduado pela Universidade Federal da Grande Dourados (2007); acadêmico do 2 º ano do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas/MS
LUIZ RENATO TELLES OTAVIANO[2]
RESUMO:
Este artigo pretende abordar as ideias favoráveis e contrárias ao projeto de lei do Senado Federal n. 552/07, que prevê cominação da pena de castração química para autores de crimes de natureza sexual, analisando-as com base na sua (in)constitucionalidade e compatibilidade com o direito penal e o ordenamento jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE:
Castração química; Constitucionalidade; Penas cruéis; Proporcionalidade; Direito Penal.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Castração: conceito e breve panorama histórico e mundial. 2 O projeto de lei SF 552/07. 3 A (in)constitucionalidade da castração química. 3.1 A proibição das sanções desumanas, cruéis e degradantes. 3.2 O princípio da proporcionalidade. 4 Castração química e Direito Penal. 5 Uma alternativa: a castração química como direito subjetivo. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Quanto mais repugnante seja um crime, maior é o seu impacto na sociedade e intensifica-se a mobilização no sentido de que se alcancem medidas para eliminar ou ao menos minimizar sua ocorrência. Esse é o caso dos crimes sexuais, cujos exemplos nacionais e mundiais atuais chocam a população pelo nível de atrocidade e pelas penas quase sempre consideradas brandas em relação ao mal causado às vítimas. Isso porque o ser humano tende a ser menos tolerante com os criminosos que cometem crimes que qualquer pessoa negaria a possibilidade de um dia cometer, estigmatizando os criminosos sexuais como rejeitados e como aqueles que devem ser punidos com maior rigor.
Destaca-se na Áustria o recente escândalo que envolveu um engenheiro aposentado, que manteve relações sexuais a com própria filha por 24 anos, mantendo-a em cárcere no porão de sua casa; resultando no nascimento de sete “filhos-netos” e na decretação de prisão perpétua. Na Irlanda, um relatório de 700 páginas veio à tona denunciando uma série de crimes sexuais cometidos por sacerdotes da igreja católica que foram ocultados durante décadas. Um sacerdote admitiu ter cometido abusos sexuais contra mais de 100 menores e outro confessou que durante 25 anos de sacerdócio abusava de menores em média a cada duas semanas (EFE, 2010, p. 1-2). No Brasil, caso semelhante ao austríaco foi descoberto no Maranhão, um lavrador mantinha relações sexuais com a própria filha desde os seus 12 anos. Teve sete filhos e mantinha-os reclusos em condições subumanas (SPIGLIATTI, 2010, p. 1).
Diante desses casos e do levante de grande parte da população a favor de medidas mais rígidas a esses criminosos e, seguindo o exemplo internacional norte americano e de alguns países europeus, onde medidas rigorosas foram adotadas, tramita no Senado Federal desde 2007 uma proposta de lei que prevê a cominação da pena de castração química aos autores de crimes sexuais que apresentarem distúrbio patológico. Brevemente, podemos definir castração química como a manutenção de hormônios femininos inibidores da libido que, se administrados periodicamente, frustram a potencialidade sexual e, conseqüentemente, a prática de novos delitos.
O fato dessa medida incidir, mesmo que temporariamente, sobre o corpo do paciente é o principal ponto polêmico da discussão sobre a legalidade da mesma dentro dos moldes do ordenamento jurídico brasileiro. Este trabalho tem a finalidade de apresentar os conceitos de castração e um rápido panorama histórico de sua utilização; em seguida, os moldes do projeto proposto pelo Senado e as emendas apresentadas por duas de suas comissões e, por fim e mais relevantes, os argumentos contrários e favoráveis à adoção da castração química, definindo sua (in)constitucionalidade sob os patamares constitucionais da vedação das penas cruéis, desumanas e degradantes e do princípio da proporcionalidade, e também analisando o assunto sob o olhar do Direito Penal. Uma alternativa proposta para a aplicação da castração química é apresentada no último capítulo.
1 CASTRAÇÃO: CONCEITO E BREVE PANORAMA HISTÓRICO E MUNDIAL
A priori, é importante que se apresente a definição de castração. Para Aguiar (2010, p. 1), podemos definir castração como o ato de extrair integralmente ou parcialmente qualquer dos órgãos reprodutores, inutilizando-os. No decorrer da história, este método foi utilizado com uma série de finalidades distintas.
Um dos primeiros registros acerca da castração encontra-se na figura dos eunucos. Muto; Navarro (2010, p. 1) situam seu surgimento por volta do ano 1050 antes de Cristo, na China Imperial, onde alguns homens eram submetidos a essa punição que posteriormente foi incluída nos códigos chineses por volta do ano 255 antes de Cristo. Os eunucos eram castrados e submetidos a trabalhos forçados, como construção de pontes e estradas. Na era da dinastia Ming, os eunucos foram em grande parte responsáveis pela expansão da Grande Muralha e pela construção da Cidade Proibida, complexo de palácios e centro do império chinês. A castração voluntária existia como forma de escapar da miséria, uma vez que apenas eunucos poderiam ser servos e co-habitar com o imperador e suas concubinas no palácio. Ainda havia a possibilidade de serem ordenados sacerdotes e alguns eram elevados a cargos de maior expressão, tornando-se servidores públicos responsáveis pela coleta de impostos, administradores, diplomatas e autoridades militares.
A castração era realizada sob condições precárias, porém com baixos índices de fracasso, e os castrados deveriam ficar três dias sem beber líquidos, para que não urinassem, além de ter de caminhar por duas horas após a cirurgia para evitar coágulos. Os genitais eram preservados em salmoura e apresentados aos superiores para comprovar a castração. Essas vasilhas com genitálias tornaram-se verdadeiros objetos de valor e moeda de troca, até a derrocada do império chinês em 1911, quando os castrados viraram sinônimo de decadência (MUTO; NAVARRO, 2010, p. 1).
No Ocidente, a castração tinha cunho religioso. Os chamados castrati eram cantores de expressão nos séculos XVII e XVIII. Geralmente recrutados dentre os filhos de trabalhadores rurais e artesãos, eram castrados na infância para que o timbre agudo de suas vozes não fosse alterado pelos hormônios produzidos na puberdade. Nesse caso eram retirados somente os testículos, o que permitia que houvesse ereção. Como conseqüência da ausência de hormônio masculino, os castrati tinham uma aparência muscular muito próxima da feminina. Muto; Navarro (2010, p. 2), destacam o viés cultural da prática da castração nas palavras de Barbier: “Os sopranos masculinos eram as estrelas do canto barroco e das óperas”. Desta forma, viviam cercados pela nobreza, clero e classe artística, até o ano de 1902, quando o papa Leão XIII proibiu a castração por interesses religiosos.
A castração era e ainda é utilizada para outros fins, conforme salienta Aguiar (2010, p. 1):
[...] terapeuticamente, para a cura do câncer testicular ou de próstata ou mesmo para mudança de sexo. Como punição é usada desde a Antiguidade para impor humilhações a vencidos de guerras e, na primeira metade do século XX, com o objetivo de “purificar” a raça, tornando vários tipos de criminosos estéreis. A castração pode ser, inclusive, decorrente de transtornos psiquiátricos.
Uma vez apresentado o conceito de castração e sua utilização histórica, pode-se apresentar o conceito principal deste trabalho. O conceito de castração química distancia-se do conceito puro de castração no que tange à decepação de órgãos. Pode-se definir castração química, no caso masculino, como a aplicação de sucessivas injeções hormonais nos testículos que inibem a ereção e tornam o indivíduo inapto para o ato sexual (SGARBOSSA; JENSEN, 2010, p. 1). Esta foi a primeira proposta de castração química, surgida nos Estados Unidos, que tem efeitos definitivos uma vez que destroem as válvulas responsáveis pelo fluxo de sangue nos corpos cavernosos do pênis. No entanto, após uma série de discussões para que se encontrasse um método de inibição do apetite sexual com um grau mínimo de malefícios físicos e psicológicos para o indivíduo, adota-se modernamente a castração química pela administração do acetato de medroxyprogesterona, conhecido como Depo Provera, que é a versão fabricada em laboratório da progesterona, hormônio feminino pró-gestação. Esse medicamento inibe a produção de testosterona, todavia a utilização do Depo Provera não é definitiva, visto que o indivíduo deve apresentar-se continuamente em prazos determinados para uma nova aplicação, sob o risco de aumento dos níveis de testosterona outrora registrados e, conseqüentemente, da libido (HEIDE, 2010, p. 3 e 4).
Em termos mundiais, conforme Heide (2010, p. 4 e 5), os Estados Unidos são os pioneiros na aplicação da pena de castração química, sobretudo no estado da Califórnia, em conseqüência da elevação do nível de encarceramento local. O Estado adotou-a em 1997, através da alteração do artigo 645 de seu Código Criminal, na modalidade facultativa para a primeira condenação e obrigatória na reincidência, com possibilidade inclusive de o ofensor sujeitar-se voluntariamente à cirurgia de retirada de testículos. A lei californiana repercutiu em outros estados, como Texas e Flórida, e inclusive já tramitam disposições semelhantes em países europeus, como Itália, Alemanha e Suécia.
Cardoso (2010, p.1) retrata o caso da Polônia, onde recentemente foi proposta uma lei de alteração ao código penal prevendo a pena de castração química compulsória de condenados ao crime de estupro de menor de 15 anos e incesto, que entrará em vigor se aprovada pelo Senado. Diante da pressão pública em torno de um caso de um homem de 45 anos que abusava da própria filha, 400 deputados dentre os 403 votantes manifestaram-se favoráveis à alteração. Contudo, a Constituição Polonesa, assim como a brasileira, prevê a garantia dos direitos fundamentais e a vedação da punição física, o que suscita uma série de questionamentos acerca da legalidade da medida. Caso o projeto seja aprovado, a Polônia será o primeiro país da União Européia a adotar a castração química na sua forma obrigatória, porém, não automática. Dinamarca, Suíça e Reino Unido são países em que o método é oferecido ao condenado, que de forma voluntária submete-se ao tratamento com medicamentos e terapia.
No Brasil tramita desde 31 de março de 2007, projeto de lei do senador Gerson Camata que prevê a cominação da pena de castração química para autores de crimes de natureza sexual, inspirando-se nas legislações de alguns estados norte-americanos e países da Europa (SGARBOSSA; JENSEN, 2010, p. 1).
2 O PROJETO DE LEI SF Nº 552/2007
Antes que se apresentem os pontos conflitantes em torno da castração química no caso brasileiro, é necessário que se faça a apresentação do projeto proposto pelo senador Gerson Camata. A ementa do projeto, disponível na página eletrônica do Senado Federal diz que o mesmo visa acrescentar o art. 216-B ao Decreto Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para cominar a pena de castração química nas situações em que o autor dos crimes tipificados nos artigos 213, 214, 218 e 224 seja considerado pedófilo, segundo o Código Internacional de Doenças.
Ainda como consta na página eletrônica do Senado Federal, atualmente o projeto encontra-se nas mãos do relator, senador Marcelo Crivella, para que esta emita relatório destinado ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, senador Cristovam Buarque (BRASIL, 2010, p. 5).
Bueno (2009, p. 2) expõe o projeto, cuja proposta inicial era:
“Artigo 226-A. Nas hipóteses em que o autor dos crimes tipificados nos artigos 213, 214, 218 e 224 for considerado pedófilo, conforme o Código Internacional de Doenças, fica cominada a pena de castração química.”
Desta forma, se o condenado fosse diagnosticado como pedófilo, a pena de castração química seria compulsória. Entretanto, o projeto chegou às mãos da Comissão de Constituição e Justiça do Senado que propôs emenda no sentido de que a castração química seja uma medida voluntária, que acarretaria diminuição de pena. Assim, haveria ressalvas na aplicação da pena. Eis a proposta da Comissão, registrada em seu parecer:
Artigo 226-A. Quando os crimes tipificados nos artigos 213, 214 e 218 forem praticados contra pessoa com idade menor ou igual à quatorze anos, observar-se-á o seguinte:
§1º. O condenado poderá se submeter, voluntariamente, sem prejuízo da pena aplicada, a tratamento químico hormonal de contenção da libido, durante o período de livramento condicional, que não poderá ser inferior ao prazo indicado para o tratamento.
§2º. A Comissão Técnica de Classificação, na elaboração do programa individualizador da pena, especificará tratamento de efeitos análagos ao do tratamento hormonal de contenção da libido, durante o período de privação de liberdade, cujos resultados constituirão condição para a realização ou não do tratamento de que trata o §1º deste artigo.
§3º. O condenado referido no §1º deste artigo que se submeter voluntariamente ao tratamento químico hormonal de contenção da libido, após os resultados insatisfatórios obtidos com o tratamento de que trata o §2º, terá a sua pena reduzida em um terço.
§4º. O condenado reincidente em qualquer dos crimes referidos no caput deste artigo que já tiver se submetido, em cumprimento anterior de pena, ao tratamento de que trata o §3º deste artigo, não se submeterá a ele novamente.
§5º. O tratamento químico hormonal de contenção da libido antecederá o livramento condicional em prazo necessário à produção de seus efeitos e continuará até a Comissão Técnica de Classificação demonstrar ao Ministério Público e ao juiz de execução que o tratamento não é mais necessário.
Como principais modificações temos:
a) a pena deixa de ser obrigatória e passa a ter status facultativo, que pode levar à redução da mesma em um terço (tratamento químico hormonal) ou à extinção da punibilidade (cirurgia);
b) O esclarecimento da definição de castração química;
c) Menção da idade da vítima (caput), que limita o conceito de pedófilo e evita futuras discussões da norma nos tribunais quanto à sua interpretação. (CARDOSO, 2010. p. 2).
Vê-se, portanto, uma adequação significativa do projeto, uma vez que a castração química passa a ter caráter voluntário. Neste artigo, busca-se analisar a pena baseando-se neste caráter voluntário, visto que a castração química, como medida obrigatória, é excessivamente gravosa ao condenado, ferindo, dentre outros, o princípio da proporcionalidade (Bueno, 2010, p. 5).
Por fim, transcreve-se abaixo a última emenda feita ao projeto, elaborada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, em abril de 2010:
Artigo 226-A. Em relação aos crimes tipificados nos artigos 217-A e 218, observar-se-á o seguinte:
I – o condenado não-reincidente poderá submeter-se, voluntariamente, sem prejuízo da pena aplicada, a tratamento químico hormonal de contenção da libido, durante o período de livramento condicional, que não poderá ser inferior ao prazo indicado para o tratamento;
II – o condenado reincidente em qualquer dos crimes referidos no caput deste artigo será obrigado a submeter-se a tratamento químico hormonal, sem prejuízo da pena aplicada, durante o período de livramento condicional, que não poderá ser inferior ao prazo indicado para o tratamento.
III - A Comissão Técnica de Classificação, na elaboração do programa individualizador da pena, especificará tratamento de efeitos análogos ao do tratamento hormonal de contenção da libido, durante o período de privação de liberdade, cujos resultados constituirão condição para a realização ou não do tratamento de que trata o §1º deste artigo.
IV - O condenado referido no §1º deste artigo que se submeter voluntariamente ao tratamento químico hormonal de contenção da libido, após os resultados insatisfatórios obtidos com o tratamento de que trata o §2º, terá a sua pena reduzida em um terço.
V - O condenado reincidente em qualquer dos crimes referidos no caput deste artigo que já tiver se submetido, em cumprimento anterior de pena, ao tratamento de que trata o §3º deste artigo, não se submeterá a ele novamente.
VI - O tratamento químico hormonal de contenção da libido antecederá o livramento condicional em prazo necessário à produção de seus efeitos e continuará até a Comissão Técnica de Classificação demonstrar ao Ministério Público e ao juiz de execução que o tratamento não é mais necessário.
Destaca-se nessa emenda a preocupação da Comissão com a efetiva minimização na ocorrência dos crimes sexuais, ao prever, no inciso II, o tratamento químico hormonal obrigatório aos reincidentes.
Uma vez apresentada a proposta de castração química dentro dos moldes fixados pelo legislativo brasileiro, expor-se-á, nos próximos capítulos, os pontos de discussão entre as correntes favoráveis e contrárias à pena, sendo o principal a definição da (in)constitucionalidade da mesma.
3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA CASTRAÇÃO QUÍMICA
A grande quantidade de princípios que norteiam o Direito causa, em certos ramos, alguns conflitos entre eles que devem ser harmonizados. No Direito do Trabalho, por exemplo, a livre iniciativa deve conviver em harmonia com os direitos dos trabalhadores; no Direito Administrativo, a Administração Pública deve garantir o funcionamento de suas instituições minimizando os conflitos com interesses do particular. O Direito Penal possui o nível de tensão mais alto, pois o que está em jogo é a defesa de bens essenciais, como a vida, a liberdade e a propriedade, aplicando como punição medidas que também vão de encontro a esses mesmos bens essenciais, como a liberdade na pena de prisão (AGUIAR, 2010, p. 2).
Desta forma, nem a segurança da população, nem a inviolabilidade física do condenado devem prevalecer uma em relação à outra. E este é o grande desafio em que se fundamenta toda a discussão em torno da castração química. Conciliar os dois lados da moeda é uma tarefa árdua tanto para o legislador, como para o intérprete da lei. A maior parte da doutrina nacional considera que qualquer punição imposta sobre o corpo do condenado é cruel, e portanto, vedada constitucionalmente, trazendo à tona uma draconização penal[3]. O que as comissões senatoriais pelas quais o projeto passou têm pretendido demonstrar é que a pena de castração química não é inconstitucional e é a única que efetivamente pode resolver com segurança e eficiência o tenso problema da pedofilia.
Neste propósito, dois princípios primordiais são discutidos pelas correntes de pensamento em torno da castração química, cada qual, valendo-se deles, buscam provar a (in)constitucionalidade da medida: a vedação das penas cruéis e o princípio da proporcionalidade.
3.1 A PROIBIÇÃO DE SANÇÕES CRUÉIS, DESUMANAS E DEGRADANTES
A Constituição Brasileira de 1988 prevê a proibição das penas cruéis, desumanas e degradantes, que é direito fundamental de qualquer cidadão. Eis alguns de seus dispositivos que tratam do assunto:
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
XLVII – não haverá penas:
e) cruéis;
De forma complementar, o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 38, prevê: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” e o artigo 40 da Lei de Execução Penal corrobora: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.”
No âmbito internacional, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, adotada no Brasil por meio do Decreto n. 40/1991, preceitua em seu artigo 16 que é responsabilidade de cada Estado proibir em qualquer território sujeito a sua jurisdição atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, cometidos por funcionário público ou no exercício de funções públicas.
Todos esses dispositivos levam a crer que a aplicação de penas cruéis é inconstitucional. Todavia, o ponto de conflito entre essas correntes está na interpretação do conceito de pena cruel. Por isso, importante é que seja definido.
Moraes (2006a, p. 338) busca esclarecer:
(...) dentro da noção de penas cruéis deve estar compreendido o conceito de tortura ou de tratamentos desumanos ou degradantes, que são, em seu significado jurídico, noções graduadas de uma mesma escala que, em todos os seus ramos, acarretam padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem os sofre. O Estado não deverá prever em sua legislação ordinária a possibilidade de aplicação de penas que, por sua própria natureza, acarretem sofrimentos intensos (penas inumanas) ou que provoquem humilhação.
Porém, as várias correntes limitam de formas diferentes o grau de padecimento físico em que se enquadra a castração química, o que implica ou não em sua constitucionalidade.
Contrários à adoção da castração química embasam-se no fato de, caso a pena seja adotada no Brasil, violará um gigantesco princípio que orienta todo o Direito Penal, que é o princípio da dignidade da pessoa humana, do qual surgem diversos outros princípios penais. Além disso, caso o projeto fosse recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro, abrir-se-iam brechas para elaboração de outros projetos tendentes a cominar pena de morte e de caráter perpétuo, configurando um retrocesso jurídico (BORGES, 2010, p. 2).
Havendo desrespeito ao princípio da dignidade de pessoa humana, o conceito de isonomia torna-se algo intangível, já que a dignidade da pessoa humana é mais que um direito, é a razão de ser de um estado republicano (PEREIRA, 2010, p. 3). Alexandre de Moraes busca expressar o significado e a importância deste superprincípio:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2006b, p. 16).
Desta forma, se a dignidade é algo tão fundamental ao ser humano, não deve ser violada por qualquer conduta que possa desigualar um ser do outro. Para os opositores da castração química, é justamente isso que acontece com àquele que é submetido à terapia química: uma violação física que torna o indivíduo, de forma negativa, diferente dos demais. Ainda que a prisão tenha o mesmo efeito, ela “permite o retorno do apenado à vida em sociedade de maneira digna e normal” (PEREIRA, 2010, p. 3).
As possíveis conseqüências estruturais no ordenamento jurídico brasileiro caso haja a adoção da pena são explanadas por Sgarbossa e Jensen:
A ser aprovado um tal projeto de lei, cuja inconstitucionalidade é patente e flagrante, invariavelmente a “lei” assim produzida viria a ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e privada de efeitos jurídicos.
Caso assim não fosse, examinemos as possíveis conseqüências, que parecem ser de duas ordens. Na primeira, encontra-se uma alteração do sistema jurídico como um todo, visto que, em não sendo declarada inconstitucional a lei em apreço, nos depararíamos com a seguinte situação surreal: a Constituição brasileira deixaria de ser rígida, passando a caracterizar-se como uma Constituição flexível, vale dizer, modificável por simples lei ordinária – donde decorreria a impossibilidade de controle de constitucionalidade das leis, cujo pressuposto lógico é a rigidez constitucional, devendo ser extirpado o próprio Supremo Tribunal Federal, por inútil doravante.
Não apenas: a cláusula de proibição de retrocesso consistente no § 4 º do artigo 60 da Constituição Federal restaria irremediavelmente inviolada, pelo que não mais haveria matéria na Carta Política insuscetível de modificação (...) seria possível tramitar no Congresso Nacional emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa do Estado brasileiro, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Por outro lado, imaginemos que a lei não fosse declarada inconstitucional em virtude da “relevância da matéria” ou da “gravidade das situações em apreço” (...) prevaleceria a “segurança nacional” que inspiraria a lei (...) Enfim, se trata de situação em que o Pretório Excelso, acessando a condição de soberano, se auto-nomearia detentor da prerrogativa de decidir em que casos se aplica a Carta Magna, e em que casos esta não se aplica (como se tal fosse possível). (SGARBOSSA; JENSEN, 2007, p. 1).
Os defensores da castração química apóiam-se no fato de que os direitos individuais não são absolutos, ou seja, direitos de igual valor podem chocar-se entre si, fazendo com que um deles tenha de prevalecer sobre o outro. Chama-se princípio da convivência das liberdades. No caso em questão temos a inviolabilidade física e moral do pedófilo de um lado e a segurança pública de outro, e, para decidir a forma de convivência entre eles, deve-se valer da análise do princípio da proporcionalidade, que será tratado no próximo subitem.
Na verdade, não existe pena que não viole em parte algum direito fundamental. O homem, a partir do momento em que teve necessidade de viver em sociedade, abdicou de parte de seus direitos, que antes eram ilimitados, para que pudesse utilizar dos demais com segurança. É o que confirma Beccaria, em sua obra Dos delitos e das penas:
(...) só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção dela, isto é, precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto. O conjunto de todas essas porções de liberdade é o fundamento de punir (BECCARIA, 2010, p. 27-28).
Bueno (2010, p. 3), também defende esse ponto de vista: “Uma pena que viole direitos fundamentais deve ser tida necessariamente como inconstitucional? Claro que não! Quem defender tal posição deverá reivindicar pela abolição da pena privativa de liberdade, que inexoravalmente viola o jus libertatis do condenado.” De igual modo, a Organização das Nações Unidas menciona em seu documento Regras Mínimas para Tratamento de Presos que uma das funções do sistema prisional é impedir que se acentue o sofrimento, o que leva-nos a crer que aplicação da pena privativa de liberdade por si só implica em sofrimento e que somente a pena que cause sofrimentos excessivos em sua natureza pode ser considerada desumana (BUENO, 2010, p. 4). O que resta saber, portanto, é se essa violação dos direitos fundamentais é compatível ou não com o ordenamento jurídico brasileiro.
A determinação da legalidade do projeto depende da definição do que seja pena cruel. Para isso, é necessário estabelecer a abrangência da dignidade da pessoa humana. Para o relator do parecer da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, a dignidade da pessoa humana é um atributo que nasce da relação social. Sendo a Constituição um contrato social entre os homens e a autoridade estabelecida, a idéia de dignidade tem relação com a idéia política de liberdade positiva (BRASIL, 2010a, p. 5). Montesquieu esclarece: “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder” (MONTESQUIEU, 2010, p. 74). Portanto, digno é “aquele que age conforme o princípio da moral, é o homem dotado de um agir universal e que sustenta no seu dia-a-dia o contrato social, o qual é a razão de ser de qualquer Constituição” (BRASIL, 2010a., p. 6). O criminoso, aquele que rompe com esse contrato, fica à margem de qualquer prerrogativa ante a sociedade.
Se até no século XVIII “o corpo era feito para ser supliciado e castigado”, a partir do século XIX, “ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve ser adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades” (FOUCAULT, 2003, p. 119). Pena cruel, então, é aquela que tem em vista apenas o corpo do condenado e a vingança, sem relacioná-la ao compromisso do contrato social e à função reformadora. Nesse sentido, também disserta Beccaria (2010, p. 28) “As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos seus súditos.”
Portanto, os defensores da castração química não a consideram cruel, uma vez que a terapêutica visa tornar possível o retorno do pedófilo ao ambiente social, para que, superada a patologia biológica, retome suas ações sociais (de interesse geral), sem constituir um perigo para os outros (BRASIL, 2010a, p. 8).
Vê-se, portanto, que ambas correntes de pensamento possuem argumentos convincentes para defender seus pontos de vista com relação à vedação das penas cruéis sob a luz da Constituição brasileira. Ainda nessa discussão, outro princípio ampara a (in)constitucionalidade do projeto de castração química: a proporcionalidade.
3.2 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
As opiniões das correntes de pensamento em torno da implantação da pena de castração química também esbarram na forma de aplicação e na medida da mesma. O princípio da proporcionalidade é aquele que visa o equilíbrio entre os meios utilizados e a finalidade da sanção.
Quando se chegar à conclusão de necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coactiva da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim. (CANOTILHO, 1993, p. 382-383)
Assim, os que são contrários à castração química refutam veementemente a atitude do relator e das comissões que deram parecer favorável ao projeto em tentar efetivar uma pena, em sua opinião, superior ao ato do delinqüente, maculando o princípio da proporcionalidade. Essa atitude poderia servir de motivação para implantação de outras penas corporais baseadas tão somente no nível de atrocidade dos delitos cometidos (PEREIRA, 2010, p. 2), bem como um retrocesso jurídico.
No Brasil, há simpatia de grande parte da população pela implantação da castração química, uma vez que crimes sexuais cometidos contra uma criança, por exemplo, causam enorme repugnância e a palavra “castração” está dentro de uma vingança adequada àqueles que cometem tal ato. Porém, mesmo sendo um processo reversível, a castração química proporciona ao delinqüente uma série de efeitos colaterais, os quais se destacam: aumento de peso, fadiga, hipertensão, leve depressão, hipoglicemia e trombose (WIKIPÉDIA, 2010, p. 1), que podem acompanhar o mesmo durante toda a vida. Desde modo, ficaria configurada uma extrapolação na forma de punir.
Encerrando este pensamento, destacam-se as palavras de Greco (2009, p. 5) no sentido de que seja adotado “um direito penal do Equilíbrio”, que leve em consideração princípios básicos, como:
lesividade, intervenção mínima, adequação social, insignificância, proporcionalidade, limitação das penas, culpabilidade, legalidade, responsabilidade pessoal, pois sendo estes vigas de todo o ordenamento não podem jamais serem ignorados sob pena de financiar o caos social, uma vez que a mídia, de forma errônea, faz transparecer a necessidade de mais tipos e penas mais duras.
Na outra mão, os favoráveis à implantação da castração química demonstram que esta medida sancionatória atende ao princípio da proporcionalidade, que, dentro do modelo desenvolvido pela doutrina alemã, subdivide-se em necessidade, adequação e proporcionalidade no sentido estrito.
A adequação se substantiva na exigência de que os meios adotados sejam apropriados à consecução dos objetivos pretendidos; a necessidade, no pressuposto de que a medida restritiva seja indispensável à conservação do próprio direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz e menos gravosa; a proporcionalidade em sentido estrito, por sua vez, consubstancia-se na ponderação da carga de restrição em função dos resultados, de modo a garantir uma equânime distribuição de ônus. Não respeitados esses subprincípios, a medida restritiva gerada pelo legislador pode ser tida como inconstitucional. (BRASIL, 2010, p. 8)
A castração química, segundo pesquisas realizadas nos países em que foi adotada, reduziu a reincidência em crimes de natureza sexual de 75% para 2%, o que é uma estatística expressiva (AGUIAR, 2010, p. 3). Portanto, a medida ajusta-se perfeitamente ao princípio da adequação, mesmo que não impeça de forma definitiva o cometimento de crimes.
Com relação à necessidade, deve ser considerada a existência de outros métodos e, se estes podem ser considerados menos gravosos e mais eficazes do que a castração química. Alguns deles, como o uso de pulseiras rastreadoras em pedófilos libertados (Espanha e França) e o monitoramento eletrônico (Argentina), revelaram-se ineficazes, e, ainda no caso argentino, houve aumento na reincidência em comparação àqueles indivíduos não monitorados. Deste modo, a castração química mostra-se necessária, uma vez que outras penas alternativas como a de morte (neste caso específico) e a perpétua não são admitidas em nosso sistema jurídico (BRASIL, 2010, p.10-11).
O último requisito, cuja medição é mais complexa, busca o alcance da proporcionalidade entre o trauma sofrido pela vítima de crime sexual e o trauma vivido pelo delinqüente ao ser submetido à terapia química e suas conseqüências sociais. Diversas investigações sobre maus tratos na infância demonstram que, mais cedo ou mais tarde, os traumas manifestam-se em algum momento da vida da vítima, seja sob forma de depressão, pensamentos suicidas, ansiedade, agressividade, entre outros (BRASIL, 2010b, p. 9-10).
Em se tratando do agressor, se analisarmos a proporcionalidade em sentido estrito quando da aplicação da pena efetivamente obrigatória (imposição), limita-se definitivamente a capacidade sexual do indivíduo, tornando a sanção mais gravosa ao condenado. No tratamento voluntário (proposto pela Comissão de Constituição e Justiça), há presunção de que não haja sofrimento intenso que influencie na ponderação dos bens jurídicos, inda que, naturalmente, o ônus maior seja suportado pela vítima da agressão. Assim, concluiu-se que a medida atende ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito (BUENO, 2010, p. 5), tornando constitucional o projeto em questão.
Isto posto, é nítido que ambas as correntes de pensamento em torno da castração química possuem fortes argumentos baseados no princípio da proporcionalidade para justificar a (in)constitucionalidade do projeto e a adoção (ou não) da castração química. O próximo capítulo contemplará como o direito penal visualiza a castração química, principalmente sob a ótica da teoria dos fins da pena.
4 CASTRAÇÃO QUÍMICA E DIREITO PENAL
Uma vez apresentada a posição da proposta legislativa de castração química ante a Constituição brasileira, é importante que se faça uma análise da compatibilidade entre esta e o os objetivos do direito penal, ou seja, se adoção desta medida efetivamente cumpre a necessidade de prevenção dos delitos e da recuperação e ressocialização dos delinqüentes que a pena deve atender.
A teoria da finalidade da pena predominantemente adotada na atualidade é a teoria unitária ou eclética, que busca conciliar a retribuição jurídica da pena, ainda que de forma acentuada, com os fins da prevenção geral e da prevenção especial. A prevenção geral tem como fundamento a necessidade de evitar a futura prática de delitos e garantir a pacificação social por meio da intimidação, ou seja, implantando um temor na sociedade de modo que atos ilícitos não sejam praticados em vista de uma sanção (prevenção geral negativa); e também visa à implantação da pena como forma de estabilizar o direito de um Estado, com o reforço da consciência jurídica da norma (prevenção geral positiva). A prevenção especial atua diretamente sobre o indivíduo, apoiando-se na periculosidade individual, visando sua eliminação ou diminuição. Ambas as prevenções devem ser conciliadas com a retribuição jurídica de Kant e Hegel, na qual o delito praticado e sua punição deve haver uma relação de igualdade (PRADO, 2008, p. 489-499).
A corrente favorável a implantação da pena de castração química defende a compatibilidade penal da mesma, no sentido de que uma pena que tem por objetivo impedir que o condenado volte a delinquir, ainda que baseada em parte na periculosidade do mesmo, busca atender ao caráter ressocializador que integra a prevenção especial e garantir a segurança jurídica.
Se a finalidade da prevenção especial fosse somente a de conseguir que os criminalizados não voltem a delinqüir, a medida da pena seria a medida da periculosidade: quanto mais inclinação ao delito mostrasse um indivíduo, maior seria a privação de bens jurídicos que seria objeto a ser logrado a título de prevenção. Nenhuma outra consideração poderia alterar essa relação. Não obstante, isto não ocorre assim, porque embora a prevenção especial deva ter por objeto conseguir que os apenados não voltem a delinqüir, não podemos esquecer que este objetivo deve ser por sua vez um meio para prover a segurança jurídica. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 397)
Já os contrários à implantação da pena de castração química conseguem vislumbrar no texto da Comissão de Cidadania e Justiça do Senado elementos de direito penal do inimigo, preocupado mais em punir o indivíduo do que o seu comportamento ilícito. A posição de Luiz Flávio Gomes, analisando pontos da conferência proferida por Zaffaroni em 2004, define como o direito penal tem sido buscado como medida máxima nos dias de hoje.
(v) o Direito penal na atualidade é puro discurso, é promocional e emocional: fundamental sempre é projetar a dor da vítima (especialmente nos canais de TV) (...) bb) o Direito penal surge como solução para aniquilar o inimigo; cc) o político apresenta o Direito penal como o primeiro remédio para isso; dd) o Direito penal tornou-se um produto de mercado; ee) o Direito penal na atualidade não tem discurso acadêmico, é puro discurso publicitário, é pura propaganda; é a mídia que domina o Estado, não o Estado que sobrepõe a ela; ff) os juízes estão apavorados; juiz garantista tem que enfrentar a mídia. (GOMES, 2010, p. 2)
Vianna (2010, p. 1) condena o parecer da comissão que, ao propor a escolha entre saúde pública ou segurança da população (BRASIL, 2010b, p. 4), somente quer apresentar um argumento político de convencimento dos demais parlamentares e cria a falácia do falso dilema. Não pode haver uma escolha entre as duas opções, o Estado deve garantir as duas de igual modo, sem exclusão. Outro trecho comentado: “Digno é aquele, portanto, que age conforme o princípio da moral, é o homem dotado de um agir universal, o qual sustenta no seu dia-a-dia o contrato social, o qual é a razão de ser de qualquer Constituição.” (BRASIL, 2010b, p. 6).
A diferenciação entre dignos (amigos do Estado que se submetem às leis, e portanto, são protegidos por ela) e indignos (inimigos que, por não respeitar as leis, não podem gozar das garantias constitucionais) é a mais pura demonstração da adoção de um direito penal do inimigo que “infringe o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que utiliza o indivíduo como meio para a consecução de fins sociais meramente utilitários, de duvidosa eficácia.” (PRADO, 2008, p. 494).
Outro grande problema para grande parte da corrente contrária à castração química é a nomenclatura “pena” utilizada na redação inicial do projeto, uma vez que a mesma possui características mais próximas à medida de segurança, por denotar fins principalmente preventivos e fundamentar-se exclusivamente na periculosidade do agente. Para Ferreira (2010, p. 2), com base nas palavras de Dalbora, a principal distinção entre pena e medida de segurança reside no fato de que a pena tem como ponto de referência atuações determinadas, legítima sanção jurídica, enquanto que a medida de segurança preocupa-se com predisposições e tendências do indivíduo, não podendo ser consideradas sanções.
Assim sendo, o legislador pretende, na verdade, criar um novo tipo de medida de segurança diverso das previstas na lei penal (internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e sujeição a tratamento ambulatorial), dando a isso o nome de pena, sem correta expressão do conteúdo e dos efeitos de uma conseqüência jurídica do delito (FERREIRA, 2010, p. 3). Entretanto, a pior implicação em denominar a castração química como pena é o conflito com a Constituição brasileira, que prevê como direito individual a vedação das penas cruéis.
Mais um argumento contrário à pena de castração química é encontrado pela análise do princípio da culpabilidade do agente como fundamento da pena, pelo princípio da nulla poena sine culpa[4], que possui três subprincípios: I – ninguém pode ser punido mediante responsabilidade objetiva; II – ninguém pode ser punido sem que seja censurável, ou seja, somente a pessoa que poderia agir de outra forma diversa da ação delituosa pode sofrer condenação. Deste modo o tratamento anularia a possibilidade de livre arbítrio, e o indivíduo perderia a liberdade de autodeterminar-se, perdendo seu caráter humano; III – As pessoas somente são punidas pelo que fazem, não pelo que são. O tratamento então, nesse caso, incidiria sobre o próprio delinqüente, e não sobre seu comportamento, tentando prevenir um hipotético evento futuro (FARAH, 2010, p. 2).
O direito penal não deve ser invocado como solução imediata dos conflitos sociais, outras formas dentro do direito devem ser utilizadas nesse sentido, ou seja, deve-se primar pela utilização de um direito penal mínimo, equilibrado, que garanta proporcionalidade, legalidade e adequação social. A gravidade da pena é um fator que pouco (ou nada) influencia na atitude de um indivíduo em cometer um delito (BORGES, 2010, p. 2). Interessante é a opinião dada em um diário não especializado em direito na internet, o blog Desfavor, em que a castração química foi abordada:
“Mas Sally, você não gostaria que um homem que te estuprou fosse castrado?”. Sim, castrado e morto. Gostaria sim. Mas não é assim que se fazem leis, pensando em revanche. Se fazem pensando no melhor para a sociedade. E nosso sistema penal não tem por objetivo a vingança (...) Se fosse comigo é claro que eu ia querer tudo de ruim para a pessoa, mas a pergunta é: eu quero viver num país onde o Estado pode fazer tudo de ruim a um condenado? Minha raiva pessoal não deve virar lei. Se virar, será um perigo (SALLY, 2010, p. 3).
Diante desse panorama, percebe-se que os argumentos contrários à adoção da pena de castração química, além de presentes em maior número, são mais bem consolidados pelos estudiosos do assunto. A castração química, como pena, encontra barreiras significativas, porém, poderia ser implantada em nosso ordenamento jurídico de forma diversa? O capítulo subseqüente procura elucidar essa questão, apresentando uma possibilidade de que isso ocorra.
5 UMA ALTERNATIVA: A CASTRAÇÃO QUÍMICA COMO DIREITO SUBJETIVO
Dada toda a exposição anterior e diante da dificuldade em se obter um pensamento comum diante da proposta de castração química, deve-se tentar responder a seguinte questão: a castração química, como pena, é a melhor solução para minimizar a ocorrência de crimes sexuais?
Se forem analisados somente os resultados dos estudos realizados chegaremos à conclusão que sim, já que pesquisas indicam a diminuição na reincidência de 73% após a aplicação dos hormônios femininos (AGUIAR, 2010, p. 4). Porém essas estatísticas não garantem que os delitos sexuais deixarão de ser cometidos. O próprio parecer da Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa do Senado propõe que as injeções de hormônios inibidores de libido sejam aplicadas somente em último caso, buscando alternativas como a utilização de outras drogas, psicoterapia ou outras medidas extrapenais (BRASIL, 2010a, p.14). É também esta a opinião de Bueno (2010, p. 5)
Não se pode olvidar que não cometer crimes não é apenas um dever, mais um direito, que implica em ser visto pela sociedade como integrante do pacto social e como gente. Desta forma, a pedofilia ainda que o mantenha imputável e plenamente capaz de entender o caráter reprovável de seus atos, e assim se autodeterminar, revela-se um obstáculo que dificulta sua resistência. E o tratamento, ainda que não impeça o cometimento de delitos, se mostra eficaz na diminuição da probabilidade de seu acontecimento.
Também não podemos dizer que a pena de prisão seja totalmente eficaz e não viole as garantias individuais constitucionais. Entretanto, até o momento, tem se mostrado o meio que menos viola o aspecto humano e pode dar uma expectativa de ressocialização dependendo do sistema penitenciário em que o criminoso foi inserido (AGUIAR, 2010, p. 4).
Os impedimentos constitucionais tornam impossível a adoção da castração física e química como pena. A castração física pelo motivo notório de que é sanção extremamente onerosa ao condenado e pelo óbice constitucional das penas de caráter perpétuo. A castração química, mais bem vista pelos olhos da sociedade, é vedada constitucionalmente com base na violação da dignidade humana e na vedação de penas cruéis, no sentido de que toda pena que incide sobre o corpo do indivíduo, por menor que sejam as conseqüências, é considerada cruel, no entendimento da maior parte da doutrina nacional. Qualquer medida por parte do legislativo que pretendesse instituir a castração química como pena levaria o ordenamento jurídico a uma desordem cujas conseqüências seriam, com certeza, abrangentes e desastrosas.
Como se poderiam, então, unir os benefícios provenientes da aplicação da castração química com a manutenção da ordem jurídica brasileira? Uma alternativa foi proposta no trabalho de Aguiar e reiterada, em certa parte, na proposta do legislativo, a qual seria aplicar a castração química como direito subjetivo do condenado. Desta forma, nada mais justo do que somente de forma voluntaria o indivíduo possa passar pelo tratamento hormonal, já que o principal aspecto para que o tratamento tenha algum sucesso e o aspecto ressocializador seja atingido é que o indivíduo mostre um posicionamento no sentido de querer contornar sua doença.
“Aquele que se dispusesse a realizar o tratamento poderia ser beneficiado com uma redução de pena que poderia variar entre um e dois terços, em analogia ao benefício da delação premiada, prevista na lei 8072/90.” (AGUIAR, 2010, p. 4). O condenado, então, poderia cumprir sua pena nos moldes atuais ou submeter-se ao tratamento, depois de confirmado que realmente é necessário e amparado por um acompanhamento psicológico. Nesse entender, suponha-se que um pedófilo seja condenado a doze anos de reclusão. Poderia cumprir de quatro a oito anos da pena, e no período restante, desde que queira, ser submetido a tratamento químico com hormônio feminino. Em caso de interrupção do tratamento, retornaria ao cumprimento da pena de reclusão. Essa não é a melhor hipótese, pois o problema não estaria resolvido se após a condenação o criminoso não comparecesse para fazer o tratamento, porém, dentro dos limites da constitucionalidade, é a que mais se enquadra.
A última emenda proposta pelo legislativo, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, dispõe essa hipótese de aplicação da castração química voluntária, no inciso I, ao condenado não-reincidente, durante o período de livramento condicional, que não poderá ser inferior ao prazo indicado para o tratamento. Entretanto, no inciso II o legislador propõe que o condenado reincidente submeta-se ao tratamento hormonal de forma obrigatória, também durante o período de livramento condicional, sem prejuízo da pena aplicada. Após toda essa análise, facilmente pode-se identificar que o inciso II foi mal elaborado, não é constitucional, pois de forma obrigatória a medida confrontaria diretamente com os dispositivos da Carta Magna.
O que cabe, portanto, é que seja feita uma nova análise do projeto, que deve ter cuidado em retirar essa obrigatoriedade da aplicação do tratamento. O que não se pode fazer é fugir do debate em torno dessa proposta, visto que a população brasileira, principalmente crianças (um quarto das vítimas) e mulheres, sofre com a violência sexual (AGUIAR, 2010, p. 4). Todavia, não é a relevância ou a emergência de uma solução que faz que a mesma seja tomada sem uma análise detalhada da recepção pelo ordenamento jurídico na qual será inserida e que, de forma alguma, deverá ser desmoronado.
CONCLUSÃO
O combate aos crimes em geral, e no caso específico deste trabalho, dos crimes sexuais, sobretudo contra menores e de forma execrável é, sem dúvida, solução a ser tomada com urgência. Cabe à sociedade, aos meios de segurança pública nacional e aos nossos legisladores atuar neste sentido, criando formas efetivas de proteção, repressão e prevenção. Por isso, não se pode deixar de lado o debate acerca da castração química, todavia, esse debate deve ser pautado pela racionalidade e obediência aos termos legais e valores constitucionais, evitando-se a abordagem sensacionalista da mídia e do pensamento extremista de alguns doutrinadores, que caracterizam a medida como nazista e medieval.
Castração química: solução ou desordem jurídica? Pode-se concluir que, se imposta como pena, apesar da discussão acalorada e do fato de ambas correntes de pensamento possuírem argumentos para justificar seu ponto de vista, a castração química é inconstitucional, pelo fato de incidir sobre o corpo do indivíduo e, conseqüentemente, violar o dispositivo da vedação das penas cruéis e o princípio da dignidade humana, implantando, por recepção, o princípio da incapacitação do ofensor no direito brasileiro; este é o pensamento dominante entre os juristas. Se houver aprovação da proposta do Senado no sentido de implantar a castração química como pena, toda a estrutura jurídica do Estado brasileiro será abalada, dando margem à adoção de outras medidas cuja Carta Magna veementemente proíbe, como a pena de morte, instaurando um regime de caos social.
Contudo, se a medida for adotada como um direito subjetivo do condenado, que, conivente com o tratamento, se submeter às doses de medicamentos para controle do apetite sexual, pode-se estar diante de uma solução que merece ser discutida e pensada. Muitos estudiosos do Direito Penal condenam o encarceramento como um erro histórico a ser repensado, portanto, nestes casos, a castração química poderia ser utilizada como alternativa.
Diante dessa análise, outros aspectos devem ser levados em consideração na discussão sobre o tema: não é somente através da virilidade masculina que podem ser cometidos crimes de natureza sexual, e também, não somente indivíduos do sexo masculino são aptos a cometê-los. Nesses casos, a mulher também poderia se submeter ao tratamento químico? Mãos, dedos, língua e outros membros também podem ser utilizados para cometer esse tipo de delito. O estado psicológico do indivíduo talvez seja mais determinante do que sua incapacidade física para impulsionar sua ação. Deve-se ter cautela na tomada dessa decisão, com o devido acompanhamento psiquiátrico para determinar quem de fato possui um transtorno patológico e quem somente cometeu o delito por motivos egoísticos.
Por fim, mais importante que definir qual alternativa é mais eficaz (prender ou castrar), é encontrar uma solução que evite não só esse tipo de crime, como todos os demais, com o menos ônus no sentido humano, econômico e social.
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[1] Analista de sistemas graduado pela Universidade Federal da Grande Dourados (2007); acadêmico do 2 º ano do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas/MS.
[2] Orientador deste trabalho. Graduado em Direito (1994) pela Faculdade de Direito das Faculdades Toledo de Araçatuba/SP, possui especialização em Direito Processual (2001) pelas Faculdades Integradas Toledo de Araçatuba/SP, e mestrado em Direito (2007) com linha de pesquisa Tutela Jurisdicional No Estado Democrático de Direito pela UNITOLEDO/SP. Professor Assistente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas/MS. Site pessoal: http://www.tellesotaviano.com.br.
[3] Drácon, legislador ateniense, no século VII a. C, criou um rígido código de leis baseado nas normas tradicionais arbitradas pelos juízes. Essa severidade fez que o adjetivo draconiano (do francês draconien) chegasse à posteridade como sinônimo de desumano, excessivamente rígido ou drástico.
[4] Não há pena sem culpa. A expressão plasma um dos princípios fundamentais do Direito penal, mediante o qual nenhuma pessoa pode ser condenada por um delito se não existe dolo ou, ao menos, culpa, na ação antijurídica que causou um dano (WIKILINGUE, 2010, p. 1).
Mestre em Direito (Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito) pela UNITOLEDO/SP; Professor da UFMS - Campus de Três Lagoas. Site pessoal: http://www.tellesotaviano.com.br<br>
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