1. Introdução:
Apesar de todo empenho envidado pelo Parquet, as limitações ao seu poder requisitório tendem a frustrar as suas expectativas na atuação protetivo – reparadora do patrimônio público, mormente quando as instituições financeiras lhe negam o acesso aos dados cadastrais dos clientes envolvidos em improbidade administrativa.
Por isso, surge a necessidade de aumentar o espectro do poder requisitório do Ministério Público, tendo em vista a dificuldade na obtenção das provas no inquérito civil para apuração de casos de improbidade administrativa, a fim de favorecer o exercício da ação civil pública e proporcionar melhores resultados não só na efetividade da punição do agente público responsável pelos desmandos administrativos, mas também na recuperação de ativos ilicitamente desviados.
2. Sigilo Bancário e Improbidade Administrativa
Como é sabido, o sigilo bancário está disciplinado no inciso X, do art. 5º, da CRFB/88, não se confundindo com o sigilo das correspondências e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, previsto no inciso XII do art. 5º, da Carta Magna. Este busca tutelar o sigilo das comunicações, inclusive a de dados, não os denominados dados “estanques”.
Analisando o art. 5º, X da Lex mater, verifica-se a possibilidade do acesso direto do Ministério Público às informações bancárias, pois não há vedação constitucional neste sentido. No que concerne às interceptações de comunicações, a Constituição Federal, nos termos do art. 5º, XII da CRFB/88, expressamente aduziu ser imprescindível autorização judicial. Em outras palavras, a Lei Fundamental prescinde a autorização judicial para o disclosure de informações bancárias de um investigado pela prática de improbidade administrativa.
Consoante explicação dos doutrinadores Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, na obra Improbidade Administrativa, 3ª Ed. 2006, pág. 579:
É relevante notar, por outro lado, que quando o legislador constituinte desejou reservar ao Poder Judiciário o monopólio de “violação da privacidade” o fez expressamente, tal como se vê no art. 5º, XII, que possibilita a interceptação das conversações telefônicas somente por intermédio de ordem de autoridade judiciária (criminal) competente, bem assim no inciso XI do mesmo artigo, que, salvo nas situações de flagrância, desastre ou emergência, submete a possibilidade de violação do domicílio a prévia autorização judicial. Nada dizendo a respeito, que sequer conta com referência específica, ilegítimos os óbices geralmente levantados à atuação constitucionalmente arrimada pelo Parquet.
O primeiro ordenamento jurídico a permitir o acesso do Ministério Público à dados bancários sigilosos, por meio de requisição, foi a Lei nº4.595/64. O seu art. 4º, parágrafo 2º, criou para o Banco Central o dever de representar ao Ministério Público pela instauração de inquérito policial toda vez que no exercício de suas atribuições viesse a tomar conhecimento da prática de crime de ação penal pública, sendo certo que, em razão da regra contida no caput do referido dispositivo, tal material, levado ao conhecimento do Parquet, acabava por disponibilizar a este último o acesso a dados sigilosos independentemente de qualquer ordem judicial.
Posteriormente, a Lei nº 7.492/86, ao definir os crimes contra o sistema financeiro nacional, voltou a conferir pleno poder requisitório ao Ministério Público na quebra direta do sigilo bancário, senão vejamos o seu art. 29 e parágrafo único:
Art. 29. O Órgão do Ministério Público Federal, sempre que julgar necessário, poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência relativa à prova dos crimes previstos nesta Lei.
Parágrafo único: O sigilo dos serviços e operações financeiras não pode ser invocado como óbice ao atendimento da requisição prevista no caput deste artigo.
No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente também conferiu poder requisitório ao Parquet, em seu artigo 201, VI, b, in verbis:
Art. 201. Compete ao Ministério Público:
VI – instaurar procedimentos administrativos e, para instruí-los:
b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias.
Finalmente, foram as leis 8.625/93 e a Lei Complementar nº 75/93. O art. 26 da lei 8.625/93 é categórico ao aduzir:
Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:
b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;
Prevê a Lei Complementar 75/93:
Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:
II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;
IV - requisitar informações e documentos a entidades privadas;
VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública;
§ 2º Nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido.
§ 3º A falta injustificada e o retardamento indevido do cumprimento das requisições do Ministério Público implicarão a responsabilidade de quem lhe der causa.
No dizer de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, na obra Improbidade Administrativa, 3ª Ed. 2006, pág. 577:
As leis 8.625/93 e a Lei Complementar nº 75/93, de forma bastante esclarecedora, ressaltam a possibilidade de acesso direto a tais dados pelo Ministério Público ao preverem a responsabilização, civil e criminal, de seus membros ”pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar, inclusive nas hipóteses legais de sigilo” (art. 26, parágrafo 2º, da Lei nº 8.625/93 e art. 8º, parágrafo 2º, da Lei Complementar nº 75/93), parecendo óbvio que a previsão de tal sancionamento significa que o acesso aos dados sigilosos, quaisquer que sejam, lhe foi permitido.
Em posição contrária, Waldo Fazzio Júnior argumenta: (FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos, 2ª Ed., São Paulo: Atlas, 2001).
Embora o art. 26, inciso I, alínea b, da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) assegure ao membro do Parquet o direito de requisitar documentos de quaisquer órgãos ou autoridades, a mencionada lei é ordinária e, portanto, não tem o condão superar lei complementar.
Em que pese a opinião supracitada, data máxima vênia, a mesma não merece ser acatada, pois olvidou quanto à existência da Lei Complementar 75/93, a qual prevê o acesso incondicional do Ministério Público a dados sigilosos. Com efeito, este regramento é aplicável aos Ministérios Públicos Estaduais por força do comando normativo esculpido no art. 80 da Lei nº 8.625/93.
Por outro lado, é sabido que a abrangência do sigilo bancário não guarda qualquer correlação com a organização do sistema financeiro, sendo, antes aspecto relacionado ao direito à intimidade, a cujo respeito não há qualquer reserva à Lei Complementar, podendo, por conseguinte, ser disciplinado por lei ordinária.
Comungando com esse entendimento, elucida o brioso Mazzilli:
Exceto em matéria em que a própria Constituição exija quebra do sigilo sob autorização judicial, no mais, autoridade alguma poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da substância do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento.
Atualmente, a Lei Complementar 105/2001 dispõe nos artigos 3º, 4º, 5º e 6º as hipóteses em que a lei afasta o sigilo das operações bancárias e financeiras, independentemente de autorização judicial, quando se tratar, dentre outras, de requisições oriundas do Poder Legislativo, da Advocacia – Geral da União e do Fisco.
O legislador não previu expressamente a possibilidade de quebra direta do sigilo bancário pelo Ministério Público. Nada obstante isto, a lei o fez tacitamente, consoante reza o artigo 9º da Lei Complementar 105/2001, “quando, no exercício de suas atribuições, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários verificarem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos”.
Destarte, conforme bem apontou Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves,
É evidente que, em tal hipótese, caracterizando-se a conduta criminosa também num atuar timbrado pela improbidade, tais informações poderão e deverão ser utilizadas pelo Parquet no inquérito Civil.” Além disso, a Constituição Federal, ao cuidar, no art. 58, parágrafo 3º, das Comissões Parlamentares de Inquérito, também prevê o envio de documentos e informações, inclusive sigilosos, ao Ministério Público... para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
E acrescenta:
Pensamos que a omissão da referida lei quanto ao acesso ao sigilo bancário por parte do Ministério Público não lhe afasta tal possibilidade uma vez que a base de sua atuação, em qualquer hipótese, vai repousar no texto constitucional.
A opinião dos doutrinadores supracitados tem guarida em nosso ordenamento constitucional, pois a efetividade da persecução da improbidade repercute, necessariamente, pela identificação dos meandros tomados pela malversação do erário. Além disso, não há quem discorde da plena aplicabilidade do art. 129, III e VI, da Constituição Federal. Aquele inciso comete ao Ministério Público a promoção do inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público, e este último confere a possibilidade de requisitar informações e documentos para instruir o procedimento administrativo.
Uma vez mais, de forma brilhante explicam Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:
Não satisfeito com a enunciação genérica contida no art. 129, III, o legislador constituinte foi mais longe, estabelecendo o inciso VI do mesmo art. 129 o poder de requisição de informações e documentos para instruir os procedimentos administrativos da atribuição do Ministério Público (cíveis ou criminais), não citando como se extrai do texto, qualquer restrição. E, atualmente, como já ressaltado, a plena aplicabilidade da regra viu-se alcançada pela edição da legislação orgânica (Lei nº 8.625/93 e Lei Complementar nº 75/93) referida no próprio texto constitucional (“na forma da Lei Complementar respectiva”).
Da análise dos argumentos expandidos no presente estudo, percebe-se nitidamente uma inclinação na defesa do amplo poder requisitório do Ministério Público, inclusive para a quebra direta do sigilo bancário nos casos de improbidade administrativa. Não obstante, urge trazer em comento a corrente contrária a esse entendimento, a fim de ser analisada e debatida.
A Jurisprudência do Pretório Excelso exteriorizava o entendimento de que o acesso a dados considerados sigilosos somente seria permitida por meio de ordem judicial. Quando instado a se manifestar a respeito, através do Recurso Extraordinário nº 215.301-CE, considerou a 2ª Turma que
“...por se tratar de um direito que tem status constitucional, a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade. Somente a autoridade judiciária, que tem o dever de ser imparcial, por isso mesmo poderá com cautela, com prudência e com moderação, é que, provocada pelo Ministério Público, poderá autorizar a quebra do sigilo. O Ministério Público, por mais importante que sejam as suas funções, não tem a obrigação de ser imparcial”. (Informativo do STF nº 145. O relator (Min. Carlos Velloso), em seu voto, faz referência a mesmo entendimento já firmado por ocasião do julgamento do MS nº 21.729-DF, rel. Min. Marco Aurélio).
E esse era o entendimento dos Tribunais Superiores, a exemplo do Superior Tribunal de Justiça, que exteriorizou a sua posição quando da apreciação do RHC nº 1.290-MG, rel. Min. Costa Lima, acórdão publicado no Diário de Justiça de 21/10/91, o STJ, por sua 5ª Turma, asseverou a impossibilidade de acesso a tais dados pelo Parquet senão através de ordem judicial, admitindo o acesso direto, no entanto, em se tratando de crimes contra o sistema financeiro, diante do que dispõe o art. 29 da Lei 7.492/86.
Urge esclarecer que esta decisão foi proferida antes da vigência da Lei nº 8.625/93 e da Lei Complementar nº 75/93, ainda sob a égide da Lei Complementar nº 40/81, a qual vedava expressamente o acesso do Ministério Público a informações sigilosas.
No dizer de Alexandre de Moraes:
A única limitação constitucional ao poder de requisição do Ministério Público é a determinação de regulamentá-lo por meio de Lei Complementar (CF, art. 129, VI). Uma vez que houve a citada regulamentação (LC 75/93), e, expressamente, se proibiu a alegação da exceção de sigilo às requisições dos membros do Ministério Público (LC 75/93 – art. 8º, parágrafo 2º), não pode restar dúvida que tanto Ministério Público da União quanto os Ministérios públicos estaduais (Lei nº 8.625/93 – art. 81) poderão requisitá-los diretamente. (MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais, 6ª edição, de. Atlas, 2006, p.134).
A posição do STF anteriormente contrária vem sendo mitigada quando as questionadas operações envolverem dinheiro público. O Plenário da Excelsa Corte, apreciando o Mandado de Segurança nº 21.729-4/DF, impetrado pelo Banco do Brasil contra ato do Ministério Público Federal, que requisitara àquela instituição os dados de movimentação financeira de determinados correntistas asseverou que, “...o Tribunal entendeu ser inoponível, na espécie, a exceção de sigilo bancário pela instituição financeira tendo em vista a origem pública de parte do dinheiro envolvido nas questionadas operações e o princípio da publicidade inscrito no art. 37, caput, da CF.”
No dizer de Gianpaolo Poggio Smanio:
“Acompanhamos a jurisprudência quanto à impossibilidade de obtenção de dados sigilosos diretamente pelo Ministério público, havendo necessidade de requisição judicial, com exceção da investigação por danos ao patrimônio ou por desvio de dinheiro ou verbas públicas, quando o sigilo bancário não pode prevalecer sobre o interesse público de busca e recuperação de dinheiro ou bens públicos.” (2007, pág. 51).
Vejamos, outrossim, a jurisprudência sobre o tema em comento:
Possibilidade de quebra do sigilo bancário por requisição do Ministério Público quando se tratar de envolvimento de dinheiro ou verbas públicas: A maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de o Ministério Público requisitar diretamente as informações revestidas de sigilo bancário às instituições financeiras quando se tratar de envolvimento de dinheiro ou verbas públicas, com base no poder de requisição e na publicidade dos atos governamentais (MS nº 21.729-4/DF – rel. p. Acórdão: Min. Francisco Rezek: Informativo STF nº 8, 2 a 6 de outubro, publicada no informativo nº246).
3. Conclusão
Não se pode negar o avanço no entendimento dos Tribunais Superiores, mormente o supracitado precedente do STF, o qual terá incomensurável utilidade na seara da tutela à probidade administrativa, na qual, na maioria das vezes, envolve complexos esquemas de apropriação e malversação de recursos públicos.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos, 2ª Ed., São Paulo: Atlas, 2001.
GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pachecco. Improbidade Administrativa. 3ª Ed. Rio de Janeiro. Ed. Lumen Juris. 2006.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 2001.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
______. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006.
PAZZAGLINI FILHO, Mariano; ROSA, Márcio Fernando Elias e FÁZZIO JÚNIO, Waldo. Improbidade Administrativa – Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, 3ª Ed. São Paulo. Atlas, 1998.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses difusos e coletivos. 7ª Ed., São Paulo. Atlas, 2007.
Analistas do Ministério Público de Sergipe, graduados em Direito pela Universidade Tiradentes. Ex-estagiário do Ministério Público do Estado e da Justiça do Trabalho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Vanilson Guimarães de Santana. O Poder Requisitório do Ministério Público na Quebra Direta do Sigilo Bancário nos casos de Improbidade Administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2010, 18:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21649/o-poder-requisitorio-do-ministerio-publico-na-quebra-direta-do-sigilo-bancario-nos-casos-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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