RUI STOCO ( [1])
1. INTRODUÇÃO:
Questão que vem sendo intensamente questionada e discutida refere-se ao poder de revisão dos atos administrativos, seja por parte da própria autoridade que o editou, seja por parte do Poder Judiciário, através de sua atividade jurisdicional e, ainda, do Conselho Nacional de Justiça, no exercício do controle administrativo desse Poder, por força do que dispõe o art. 103-B, § 4º da Constituição Federal, com redação da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.
Está-se falando da revisão de atos administrativos sejam eles legítimos, hipótese em que tal ocorre para atender ao interesse da Administração, no que se refere à oportunidade e conveniência dos atos discricionários, ou ilegítimos, por vício de forma ou de substância, em que se exerce o controle de regularidade e legalidade.
A discussão não é nova mas assumiu relevância a partir da explicitação legal, ou seja, a partir da fixação por lei de limite temporal para a revisão dos atos administrativos praticados por qualquer órgão de poder, ou emanados de autoridades com funções administrativas como atividade primária ou atividade-fim, como sói ocorrer com o Poder Executivo, ou como atividade secundária, no âmbito dos poderes Legislativo e Judiciário.
Cabe, contudo, delimitar o tema, e fixá-lo no âmbito da legislação posta e do entendimento que vem sendo delineado hodiernamente no plano doutrinário, por juristas de escol e pelo trabalho de construção e modulação exercido por nossos Pretórios, notadamente pela Suprema Corte e por parte do Conselho Nacional de Justiça.
2. O ATO ADMINISTRATIVO
A Administração Pública realiza sua função precípua de organizar e dirigir por meio de atos jurídicos próprios, que na origem são atos jurídicos com denominação especial de “atos administrativos”.
Como observou HELY LOPES MEIRELLES[2], “tais atos, por sua natureza, conteúdo e forma, diferenciam-se dos que emanam do Legislativo (leis) e do Judiciário (decisões judiciais) quando desempenham suas atribuições específicas de legislação e de jurisdição”.
O conceito de ato administrativo não se traduz em seara de suave colheita, nem há perfeita empatia entre os entendimentos dos doutrinadores.
Lembra MARIA SYLVIA DI PETRO[3] que “onde existe Administração Pública, existe ato administrativo”.
E, realmente, a Administração Pública, como um dos segmentos do Estado, atua através de atos administrativos, que são atos de poder, de mando, constitutivos ou de ordenação.
A autora citada, conceitua o ato administrativo como “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”[4].
Para CELSO ANTÔNIO[5], ato administrativo é: “A declaração do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.
O pranteado HELY LOPES MEIRELLES constrói entendimento parelho com os atos jurídicos em geral e conceitua o ato administrativo como “toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir; resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”.[6]
3. A DELIMITAÇÃO NO TEMPO DA REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS:
A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal preceitua no art. 54:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
Impende notar que a lei referida tem por escopo precípuo estabelecer normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração, como enuncia o seu art. 1º.
Significa, portanto e sem rebuços, que esse conjunto de normas volta-se especialmente à proteção dos administrados, ou seja, dos cidadãos como um todo. Assume natureza protetiva e garantidora, na medida em que – na parte sob estudo – impõe limite temporal para a anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários, segundo a dicção do art. 54.
Por sua vez, antiga redação do art. 95 do Regimento Interno do Egrégio Conselho Nacional de Justiça estabelecia:
Art. 95. O controle dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário será exercido pelo Plenário do Conselho, de ofício ou mediante provocação, sempre que restarem contrariados os princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição, especialmente os de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União.
Parágrafo único. Não será admitido o controle de atos administrativos praticados há mais de cinco anos.
Como se verifica, também o Egrégio Conselho Nacional da Justiça, na esteira da legislação posta e do entendimento unânime da doutrina, preocupou-se em adotar regime de revisão dos atos administrativos praticados no âmbito do Poder Judiciário com a mesma garantia e limitação temporal, preconizando o princípio da pacificação e da prevalência da estabilização dos direitos, fixando a preclusão como sistema de perpetuação dos atos administrativos e como garantia individual.
Cabe reforçar essa louvável postura do Colendo Conselho Nacional de Justiça, ao proteger os atos administrativos editados há mais de cinco anos.
Portanto, a concessão de benefícios ou a restrição de direitos por parte da Administração Pública, seja de qualquer dos poderes, decorre da lei e tais atos só podem ser revistos nesse mesmo âmbito durante determinado período de tempo.
Aliás, qualquer ato administrativo, ainda que impregnado de vício e considerado nulo, pode ser mantido ou preservado, quando se coloquem em confronto, no âmbito administrativo, os princípios da legalidade e da segurança jurídica, considerando que estes nem sempre se postam em harmonia e conjunção.
Como se infere, pode-se então sustentar, com supedâneo em forte doutrina que sempre mereceu nossa adesão, que a Administração não poderia mais rever seus próprios atos para declará-los nulos, se assim age tardiamente, após o decurso de cinco anos.
Tal entendimento encontra supedâneo, dentre outras, na obra do saudoso e sempre lembrado HELY LOPES MEIRELLES[7] quando observava: “O particular não pode ficar perpetuamente sujeito a sanção administrativa por ato ou fato praticado há muito tempo”.
Preconizava também o ilustre administrativista que também a Administração tem prazo para rever e anular seus atos.
E ninguém poderá supor que a garantia das relações humanas e das relações comerciais pode sofrer exceção, com a previsão de perecimento do direito de ação ou do direito em si apenas no âmbito judicial, afastada essa possibilidade com relação ao Poder Público.
Ora, se o particular em face da Administração ou de qualquer outra pessoa, só pode agir e pleitear dentro de determinado tempo, não há justificativa e significado que também àquela não se deva impor o mesmo critério. E o vetusto Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, preceitua que as ações contra as pessoas jurídicas de direito público prescrevem em cinco anos.
Nessa trilha caminhou a doutrina majoritária, que conforta esse entendimento, como o saudoso DIÓGENES GASPARINI[8], quando ensinou que “transcorrido o prazo prescricional, o ato, embora viciado, torna-se definitivo e intocável no âmbito da Administração Pública”.
Também DIOGO DE FIGUEIREDO[9] preconizou que a prescrição administrativa impede a Administração de rever seus próprios atos.
Acrescente-se, nessa mesma direção, o escólio de MARIA SYLVIA DI PIETRO.[10]
Essa messe de autores de nomeada consagra na doutrina o que posteriormente foi assegurado pela própria lei.
4. A POSSIBILIDADE DE CONVALIDAÇÃO DOS ATOS INVÁLIDOS PRATICADOS HÁ MAIS DE CINCO ANOS:
Não é, portanto, repugnante ao Direito Administrativo nem mesmo a hipótese de convalidação dos atos inválidos, embora a questão aqui posta deles não trate.
É que, parafraseando CELSO ANTÔNIO, a convalidação é uma forma de recomposição da legalidade ferida[11].
Invoca-se, por oportuno, a lição de MAURO ROBERTO FOMES DE MATTOS quando enfatiza: “O fato consumado no Direito Administrativo possui a força de convalidar, ou até mesmo sanear o ato nulo e anulável. A segurança jurídica funciona, assim, como resultado de um conjunto de técnicas normativas encaminhadas a garantir a própria consciência do sistema, que tem no fato consumado um dos elos de sustentação”[12].
Em julgamento histórico, a Suprema Corte, tendo como relator o Ministro e constitucionalista GILMAR FERREIRA MENDES, deixou afirmado que “o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica” e que “a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido”[13].
Em diversas oportunidades o Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela aplicação desse princípio da segurança jurídica em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito[14].
Desde sempre a melhor doutrina preconizada por REALE destacou, especialmente a partir das experiências européias, que, em razão das exigências axiológicas antes referidas – e, também, do devido processo legal – na anulação de ato administrativo devem ser considerados, como parte do problema jurídico a equacionar, a existência, de um lado, da “possibilidade de haver-se como legítimo ato nulo ou anulável, em determinadas e especialíssimas circunstâncias, bem como a constituição, em tais casos, de direitos adquiridos, e, de outro lado, considerando-se exaurido o poder revisional ex officio da Administração, após um prazo razoável”[15].
5. A SEGURANÇA JURÍDICA COMO FATOR DE PACIFICAÇÃO:
Ora, atualmente, em nome do princípio da segurança jurídica, há de se estabelecer um prazo razoável para a anulação ou revisão de atos da Administração que interfiram na esfera jurídica de terceiros.
Esse prazo, para o ilustre jurista ALMIRO COUTO E SILVA[16], deveria ser o de cinco anos, a partir da aplicação extensiva do disposto no Decreto n.° 20.910/32, no Decreto-lei n.° 4.597/42 e, especialmente, no art. 21 da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65).
Esse princípio – como acima observado – foi consagrado na Lei Federal n.° 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, tanto em seu art. 2o, que estabelece que a Administração Pública obedecerá ao princípio da segurança jurídica, quanto em seu art. 54, que fixa o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados os atos administrativos, para que a Administração possa anulá-los.
Incide o princípio da simetria, posto que se, para o particular acionar a Fazenda Pública, a legislação de regência estabelece o prazo prescricional de cinco anos, não há como admitir que a Administração Pública possa rever seus próprios atos, ainda que de forma oblíqua, através de comando emergente do Conselho Nacional de Justiça (que não tem competência jurisdicional – CF, art. 103-B, § 4o), em detrimento ou a dano do agente público ou do administrado, a qualquer tempo. Só poderá fazê-lo no mesmo prazo.
Como não se desconhece, o tempo é fator fundamental nas relações jurídicas. Tem o poder de apaziguar, superar contendas e arrostar nulidades.
Aliás, a segurança jurídica sobrepõe-se a qualquer outro interesse. Sobre ser fator de segurança é também fator de pacificação.
O Direito, como um todo harmônico e informado por princípios que sustentam o ordenamento jurídico, propõe-se a assegurar um certo equilíbrio e estabilidade nas relações humanas e um mínimo de certeza na regência da vida social.
Também CELSO ANTÔNIO[17] entende que os institutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são expressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural ao Direito.
Por sua vez, acrescentamos, o Direito Administrativo moderno, abeberando-se na sua fonte de origem – que é o Direito Constitucional – evoluiu no sentido de não mais colocar invariavelmente o Estado no vértice da pirâmide, cedendo lugar ao “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como consta do intróito da Carta Magna.
São proposições e regras de superdireito de natureza programática, colocados no frontispício do Estatuto Constitucional para restar evidenciado que exsurgem e se postam como pressupostos das demais normas constitucionais escritas.
A segurança jurídica é um valor constitucional que se qualifica como subprincípio do princípio maior do Estado de Direito, que é o da legalidade.
Segurança jurídica e legalidade são, sabidamente, os dois pilares da sustentação do Estado de Direito[18].
Advirta-se que a segurança jurídica é, ainda, a forma de expressão e projeção na sociedade de três outros princípios expressamente previstos no art. 5o, inciso XXXVI da Magna Carta: a) direito adquirido; b) ato jurídico perfeito; c) coisa julgada.
O mestre CANOTILHO[19] orienta no sentido de que “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida”. Por isso, diz: “desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito”.
CELSO ANTÔNIO[20], em outro rico trabalho doutrinário –– este mais específico –– com a proficiência de sempre, afirma a “impostergável exigência de estabilidade nas relações jurídicas”, esclarecendo que “...o Direito, postula a imutabilidade das situações constituídas”.
Historicamente sempre foi assim.
O constitucionalista LUIS ROBERTO BARROSO[21] traz lição de inexcedível clareza acerca dos valores essenciais da República:
Num Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça, tanto material como formal, prevêem-se diferentes mecanismos, que vão da redistribuição de riquezas ao asseguramento do devido processo legal. É para promovê-la que se defende a supremacia da Constituição, o acesso ao Judiciário, o respeito a princípios como os da isonomia e o da retroação da norma punitiva mais benéfica. A segurança, por sua vez, encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas. Abrigam-se em seu conteúdo, ao contrário, conceitos fundamentais da vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas.
Apenas nos últimos anos, é oportuno lembrar, a legislação da União, especialmente as Leis n.°s 9.784, de 29.01.99 (arts. 2o e 54); 9.868, de 10.11.99 (art. 27) e 9.882, de 03.12.99 (art. 11), passaram a dispor, respectivamente, acerca do processo administrativo da União, da Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, referindo-se à segurança jurídica, quer como princípio geral da Administração Pública, de matriz constitucional, a justificar a permanência no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, quer como valor constitucional a ser ponderado, em determinadas circunstâncias, em cotejo com os princípios da supremacia da Constituição e da nulidade ex tunc da lei inconstitucional.
Como advertiu o citado MAURO ROBERTO FOMES DE MATTOS[22]: “A indeterminação e a perpetuidade da Administração Pública rever seus atos ad eternum, criaria verdadeiro caos para a sociedade, administrados e servidores públicos, em razão da criação da instabilidade jurídica que seria vivida por todos”.
Essa tese da segurança jurídica foi abraçada e defendida pelo Ministro CEZAR PELUSO no julgamento das contas do Presidente da República, relativas às últimas eleições, no que foi acompanhado pelos demais integrantes do Tribunal Superior Eleitoral.
6. OS PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA:
O entendimento doutrinário acima exposto tem recebido o apoio e adesão dos tribunais e do Conselho Nacional de Justiça.
No Tribunal de Justiça de São Paulo colhe-se o seguinte julgado:
“É hoje entendimento assentado pela doutrina que, também a anulação de ato pela própria administração, sujeita-se ao prazo de cinco anos, sob o nome de prescrição ou preclusão administrativa. Nos casos de revisão de ato administrativo para efeito de anulação de licitação e do contrato firmado, impõe-se assegurar ao vencedor que adjudicou a obra ou serviço o direito de defesa, da forma mais ampla possível” (TJSP – 3a C. Dir. Público – Ap. 50.119-5/2 – Rel. Rui Stoco – j. 21.12.99 – Voto 1.301/99).
Também o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:
Mandado de segurança. Ato administrativo. Preclusão administrativa. — “I - O ato administrativo conta com a retratabilidade que poderá ser exercida enquanto dito ato não gerar direitos a outrem. Ocorrendo a existência de direitos, tais atos são atingidos pela preclusão administrativa, tornando-se irretratáveis por parte da própria administração. II – É que, exercitando-se o poder da revisão de seus atos, a Administração tem que se ater aos limites assinalados na lei, sob pena de ferir o direito líquido e certo do particular, o que configura ilegalidade e ou abuso de poder. III – Segurança concedida” (STJ – 1a Seção – MS 009-DF – Rel. Min. Pedro Accioli – j. 31.10.89 – RSTJ 17/195).
“A aplicação da denominada “teoria do fato consumado” pressupõe uma situação ilegal consolidada no tempo, em decorrência da concessão de liminar. Inaplicabilidade desse entendimento para se reconhecer o direito sobre situação que ainda não ocorreu (nomeação de candidato aprovado sub judice em concurso público)” (STJ – 3ª Seção – MS 6.215 – Rel. Min. Felix Fischer – j. 23.06.99 – RSTJ 128/403).
No âmbito do Conselho Nacional de Justiça o tema recebeu atenção especial e o posicionamento da Corte foi construído paulatinamente, após inúmeros e longos debates.
Firmou-se entendimento no sentido de que os atos administrativos praticados há mais de cinco não se submetem a controle, impondo-se a sua manutenção, como se verifica dos precedentes abaixo:
Promoção por merecimento. Controle de ato administrativo praticado em 1994. Decadência do direito. – “O CNJ não controla atos administrativos praticados há mais de 5 anos, que não afrontem diretamente a Constituição, por força do disposto no art. 95, parágrafo único do RICNJ” (CNJ – PCA 200810000006287 – Rel. Cons. Paulo Lôbo – 65ª Sessão – j. 24.06.2008 – DJU 05.08.2008).
Recurso Administrativo contra decisão monocrática. Questões relativas a concursos ocorridos em 1988 e 1992. Alegação de nepotismo no âmbito do TJSE. – “1) Não pode o CNJ controlar atos administrativos ocorridos há mais de cinco anos. II) O Requerente poderia ter promovido das medidas pertinentes à defesa dos interesses de seus associados à época em que pretensamente seus direitos teriam sido ofendidos. III) Alegação de nepotismo sem concretude e sem provas não pode ser acolhida.” (CNJ – PP 200810000014910 – Rel. Cons. Marcelo Nobre – 75ª Sessão – j. 02.12.2008 – DJU 19.12.2008).
7. CONCLUSÃO:
Todavia, a expressiva maioria dos membros do Conselho evoluiu no sentido de adotar interpretação restritiva, firmando entendimento de que o prazo decadencial de cinco anos a que se referem o art. 54 da Lei 9.784/99 e o art. 95, parágrafo único do Regimento Interno do CNJ (em sua versão antiga), estabelecido para a revisão e anulação de ato administrativo irregular, não se aplica quando este ato tiver afrontado diretamente norma constitucional, “que restaria inócua se tal revisão não pudesse ser admitida, segundo a dicção da maioria”.
Tal restrição não recebeu nossa adesão, na consideração de que onde a lei não distinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo.
Perceba-se que o referido art. 54 da Lei nº 9.784/99 negou o direito de a Administração anular atos dos quais decorram efeitos favoráveis para os seus destinatários, impondo a decadência desse direito após cinco anos.
Ora, não há como aderir ao entendimento de que não se pode pacificar e preservar atos favoráveis aos destinatários, editados há mais de cinco anos, quando tenham afrontado a Constituição Federal posto que buscou o legislador, em casos excepcionais, preservar os atos administrativos, ainda que sejam ilegais, empregada essa palavra como gênero.
Como ensinava HANS KELSON[23]: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação correta. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente”.
Cabe, por derradeiro, acrescentar que a decadência e a preclusão constituem hipóteses de perecimento, tal como ocorre com a prescrição. São figuras expressivas da necessidade de pacificação e da segurança jurídica.
Justamente por essa razão é que a imprescritibilidade só pode ocorrer quando expressamente declarada na Constituição Federal.
E esta Carta de Princípios o fez in numerus clausus, quer dizer, estabeleceu previsão taxativa das hipóteses de imprescritibilidade, não se podendo acrescentar-lhes qualquer outra, quais sejam: a) racismo (art. 5º, XLII); b) ação de grupos armados (art. 5º, XLIV); c) para alguns, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento por ilícitos praticados por servidores públicos (art. 37, § 5º); d) direito dos índios sobre terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, § 4º).
Ainda que haja maltrato a texto constitucional só se admitirá a imprescritibilidade e a retroação no tempo sem limites para a desconstituição do ato se a própria Carta Magna assim estabelecer expressamente, como efetivamente o fez para reduzidas hipóteses.
Nosso grande pensador moderno, PAULO BONAVIDES[24], assim se manifestou certa ocasião: “Como disse na tribuna portuguesa Latino Coelho, o grande publicista da liberdade, “o silêncio da Constituição é lei tão obrigatória como a sua palavra”.
Não obstante isso, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou o novo Regimento Interno na 79ª Sessão de julgamento, realizada em 3 de março de 2009 dando nova redação ao parágrafo único do art. 91, assim redigido:
Parágrafo único. Não será admitido o controle de atos administrativos praticados há mais de cinco (5) anos, salvo quando houver afronta direta à Constituição.
Durante os debates apresentamos, como Conselheiro da Corte, nossa insurgência contra essa modificação e registramos nossa discordância durante a Sessão de julgamento que aprovou o novo texto.
Caberá, então, ao colendo Supremo Tribunal Federal dirimir essa importante questão, até porque as Leis nºs 9.882/99 e 9.868/99 – que dispõem, respectivamente, acerca do processo administrativo da União, da Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – criaram a possibilidade dessa Corte fixar o momento em que a norma inconstitucional perde a eficácia, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, podendo restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Parece, dessarte, que o aplicador da lei só pode fazer a modulação prospectiva in bonam partem pois, segundo as leis referidas, tal ocorre em nome da segurança jurídica e do interesse social.
* * * * *
[1]. Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça
[2]. MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Atualizada por Eurico A. Azevedo, Délcio B. Aleixo e José E. B. Filho. 26. ed. São Paulo: Malheiro Editores, 140.
[3]. DI PETRO. Maria Sylvia Zenella. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 176.
[4]. IDEM, p. 181.
[5]. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 18ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 356.
[6]. MEIRELLES. Hely Lopes. Ob. cit., p. 141.
[7]. MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. Atualizado por Eurico A. Azevedo, Délcio B. Aleixo e José Eemmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores., 21a ed., p. 589).
[8]. GASPARINI. Diógenes. Direito Administrativo, São Paulo: Ed. Saraiva, 1993, p. 567.
[9]. MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, p. 172).
[10]. DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, p. 486.
[11]. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, p. 297.
[12]. MATTOS. Mauro Roberto Fomes de. Princípio do fato consumado no Direito Administrativo. RDA 220/195, abr.-jun/2000.
[13]. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RTJ 192/620.
[14]. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: MS 24.268, DJ 17.09.04; MS 22.357, DJ 05.11.04: RE 217.141-5, de 13.06.2006, todos relatados pelo Ministro Gilmar Mendes.
[15]. REALE. Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 67/73.
[16]. COUTO E SILVA. Almiro. Prescrição quinquenária da pretensão anulatória da Administração Pública com relação aos seus atos administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 204, p. 21-31, abril-junho/1996.
[17]. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 113.
[18]. COUTO E SILVA. Almiro do. Revista de Direito Administrativo, Renovar, v. 237, p. 280.
[19]. CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, p. 252.
[20]. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. O Direito adquirido e o Direito Administrativo, Interesse Público, Revista Notadez, Porto Alegre, ano VIII, n. 38, 2006, p. 13.
[21]. BARROSO. Luis Roberto. Autonomia do Direito Administrativo e inaplicabilidade da regra geral do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, v. 27, p. 89-107.
[22]. MATTOS. Mauro Roberto Fomes de. Princípio do fato consumado no Direito Administrativo, RDA 220/195, abr.-jun/2000.
[23]. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1997, p. 396.
[24]. BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental da quinta geração. Interesse Público. Revista Notadez, Porto Alegre, ano VIII, n. 40, 2006, p. 17.
Criado em 31 de dezembro de 2004, o CNJ está situado no Anexo I do STF, e suas principais competências estão estabelecidas no artigo 103-B da Constituição, e regulamentadas em seu próprio regimento interno. São elas: 1) zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, expedindo atos normativos e recomendações; 2) Definir o planejamento estratégico, os planos de metas e os programas de avaliação institucional do Poder Judiciário; 3) Receber reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados; 4) Julgar processos disciplinares, assegurada ampla defesa, podendo determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, e aplicar outras sanções administrativas; 5) Elaborar e publicar semestralmente relatório estatístico sobre movimentação processual e outros indicadores pertinentes à atividade jurisdicional em todo o país. Home page: www.cnj.jus.br.<br>
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