1 - INTRODUÇÃO
O presente trabalho cuida da exceção da aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda, ressalva essa que foi introduzida no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional n° 42/03, datada de 19 de dezembro de 2003.
Com efeito, o objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda é, à luz de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, inconstitucional. Têm-se, pois, como objetivos específicos os seguintes: demonstrar que a observância à anterioridade mínima (noventena) já era, antes mesmo do advento da Emenda Constitucional n° 42/03, albergada pela Constituição Federal; mostrar que a observância à noventena não pode ser abolida por meio de emenda à Constituição.
A delimitação do tema (a inconstitucionalidade da não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda) justifica-se em razão do entendimento de que o poder constituinte derivado não pode, à luz da ordem jurídica vigente, abolir garantias fundamentais outorgadas diretamente pelo poder constituinte originário aos contribuintes.
2 - A EMENDA CONSTITUCIONAL N° 42/03: O PRINCÍPIO DA NOVENTENA
A Emenda Constitucional n° 42/2003, datada de 19 de dezembro de 2003, acrescentou a alínea c ao inciso III, art. 150, da Carta Magna, ali introduzindo uma anterioridade qualificada, a qual ficou conhecida por princípio da noventena.
A norma jurídica que ali foi inserida veda, em regra, a cobrança de tributos antes de decorrido o lapso temporal de noventa dias, contados a partir da data da publicação da lei que os institui ou os aumentou. A mencionada regra também não afasta, regra geral, a observância ao princípio da anterioridade.
A propósito da Emenda Constitucional n° 42/03, Sabbag comenta:
Dessa forma, robusteceu-se o postulado em comento (princípio da anterioridade tributária), na medida em que se exigiu obediência à anterioridade anual, além da anterioridade nonagesimal, garantindo-se ainda mais o contribuinte contra uma tributação inopinada. Como é cediço, não é raro presenciar a voracidade fiscal da Fazenda Pública, que se vale da criação ou majoração de tributos nos últimos dias do ano, a fim de que possa satisfazer a volúpia arrecadatória com valores a receber, logo no início do exercício (2006, p. 26). (acrescentamos as explicações em itálico)
Todavia, não obstante o robustecimento do princípio da anterioridade, conforme mencionado pelo Professor Sabbag, o princípio da noventena não se aplica a todos os tributos.
Dito isso, traz-se à colação as regras constitucionais que expressamente veicularam o princípio da noventena, bem como aquelas que excepcionam a sua aplicabilidade: as quais, conforme antes mencionado, foram introduzidas no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional n° 42/03:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
III – cobrar tributos:
[...]
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº. 42. de 19.12.2003)
[...]
§ 1° A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso II, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, li, 111 e V; e 154, li, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, 111, e 156, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº. 42. de 19.12.2003)
Assim, em conformidade com as disposições introduzidas na CF, art. 150, § 1º, in fine, o princípio da noventena não se aplica aos empréstimos compulsórios instituídos para atender as despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência (CF, art. 148, I); ao imposto de importação (CF, art. 153, I); ao imposto de exportação (CF, art. 153, II); ao imposto sobre a renda (CF, art. 153, III); ao IOF (CF, art. 153, V); e aos impostos extraordinários de guerra (CF, art. 154, II). Ainda em consonância com o preceito constitucional acima destacado, não se sujeitam à observância do lapso temporal de noventa dias (princípio da noventena) a fixação da base de cálculo do IPVA (previsto na CF, art. 155, III) e do IPTU (previsto na CF, art. 156, I).
Portanto, conforme fora aduzido acima, o princípio da noventena não se aplica ao imposto sobre a renda. Essa ressalva, todavia - além de outras que, por não serem objeto do presente trabalho, não serão aqui analisadas -, é de duvidosa constitucionalidade, conforme será analisado nos subitens seguintes.
3 - A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 42/03 NO TOCANTE À FIXAÇÃO DA NÃO-APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NOVENTENA AO IMPOSTO SOBRE A RENDA
Conforme já mencionado no curso do presente trabalho, o § 1° (in fine) do art. 150 da CF, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional n° 42/03, datada de 19 de dezembro de 2003, excetuou o imposto sobre a renda da observância ao princípio da noventena. Para um melhor vislumbre do dispositivo em comento, ele será mais uma vez trazido à colação:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
§ 1° A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c (principio da noventena), não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III (imposto sobre a renda) e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, 111, e 156, I. (as explicações em itálico e os destaques em negrito são nossos)
Assim, tendo o constituinte derivado excepcionado o imposto sobre a renda da observância ao princípio da noventena, ele, por via transversa, autorizou o legislador infraconstitucional a, se quiser, modificar as regras atinentes ao mencionado imposto no dia 31 de dezembro de um exercício financeiro, e, já no dia seguinte, que seria um outro exercício financeiro, exigir aquela exação com base na lei recém editada.
Ora, tal autorização fere o princípio da segurança jurídica, o qual se constitui num dos mais sólidos pilares do Estado Democrático de Direito. Noutras palavras, pode-se afirmar que, em relação ao imposto sobre a renda - além de outras possíveis inconstitucionalidades que, por não serem o objeto do presente trabalho, não serão analisadas nesta oportunidade -, a Emenda Constitucional n° 42/03 aboliu a garantia da segurança jurídica que era conferida aos contribuintes de tal imposto.
Não é demais relembrar que, conforme mencionado no subitem 4.2, supra, a anterioridade que a Constituição Federal quer ver observada é a anterioridade substancial, isto é, aquela que vem conjugada com a segurança jurídica, conforme se depreende da análise das disposições albergadas no art. 150, III, b, combinadas com as disposições insertas no art. 5°, caput, todas do Texto Supremo.
Assim, diante do acolhimento da anterioridade substancial pela Constituição Federal, somado ao fato de o contribuinte não poder ser mais bem protegido pela anterioridade especial (CF, art. 195, § 6°) do que pela anterioridade propriamente dita (CF, art. 150, III, b), conforme leciona Carraza (vide subitem 4.2, supra), percebe-se que o princípio da noventena já havia sido implicitamente consagrado pelo constituinte originário.
Dessa sorte, traduzindo-se o princípio da noventena numa garantia à segurança jurídica do contribuinte, o mesmo adquire o status de cláusula pétrea, e, portanto, insuscetível de ser abolido por meio de reforma constitucional empreendida pelo poder constituinte derivado.
Não obstante as razões até aqui apresentadas, o entendimento fincado no parágrafo anterior - inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n° 42/03 no tocante à fixação da não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda - não é consensual. Exemplifica esse dissenso a doutrina de Paulsen:
=> Exceções à anterioridade mínima. As exceções alcançam, tão somente, o empréstimo compulsório de calamidade ou guerra (148, I), o II (art. 153, I), o IE (art. 153, II), o IR (art. 153, III), o IOF (art. 153, V), o imposto extraordinário de guerra (art. 154, II). E a fixação da base de cálculo do IPVA (art. 155, III) e do IPTU (art. 156, I).
- Não há que se dizer da inconstitucionalidade de se estabelecer tais exceções, mediante invocação do nível de cláusulas pétreas das garantias da anterioridade (ADIN 939), eis que a anterioridade mínima, ora excepcionada, foi estabelecida pela própria EC 42/2003 (2004, p. 286). (o destaque em negrito é nosso)
Assim, segundo as lições do Professor Paulsen, não há que falar em inconstitucionalidade da não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda, pois a anterioridade mínima (princípio da noventena) somente passou a existir no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Emenda Constitucional n° 42/03.
Com todas as vênias, porém, assim não parece. É que a anterioridade mínima, indissociável da segurança jurídica - que é uma garantia dos contribuintes, conforme se depreende da análise do art. 5°, caput, combinado com o art. 150, III, b, todos da Constituição Federal -, já estava albergada na Constituição Pátria, muito embora de forma implícita, antes mesmo do advento da Emenda Constitucional n° 42/03, conforme ficou demonstrado no subitem 4.2, supra.
O entendimento acima apresentado é abonado pela doutrina de Carraza. A propósito dessa discussão - a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n° 42/03 no tocante à fixação da não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda - o mestre da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) assevera:
Infelizmente, porém, o dispositivo (§ 10, do art. 150, da CF) foi além da marca ao estatuir que a vedação do inciso III, "c", do art. 150 da CF não se aplica ao imposto sobre a renda (art. 153, III), nem [...]
Em relação ao imposto sobre a renda (IR), a prevalecer nossa tese (que, a bem da verdade, de há muito vinha sendo brilhantemente sustentada por Luciano Amaro) - no sentido de que a lei que o majora deve preceder a todos os fatos que, de 10 de janeiro a 31 de dezembro, levam à obtenção da disponibilidade da riqueza nova -, a restrição em tela fere de morte o direito fundamental do contribuinte (cláusula pétrea) de ver adequadamente observado o princípio da anterioridade, que, como vimos, determina que a lei que cria ou majora tributo só pode incidir em dado exercício financeiro se no anterior tiver sido publicada noventa dias (ou melhor, venia concessa, noventa e um dias) antes do seu término (2006, p. 202).
Portanto, em face de uma análise sistemática da Constituição Federal, entende-se que a não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda, a qual foi introduzida no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional n° 42/03, é completamente inconstitucional.
É que a inobservância à anterioridade mínima (noventena) tolhe a segurança jurídica do contribuinte, deixando-o a mercê de súbitas investidas tributárias por parte do Fisco. E a garantia à segurança jurídica - não se pode jamais olvidar - é um direito fundamental do contribuinte, o qual, conforme determinado pelo constituinte originário (CF, art. 60, § 4°, IV), não poderá ser validamente atacado pelo constituinte reformador. Daí, uma vez que a Emenda Constitucional n° 42/03 aboliu uma garantia fundamental do contribuinte - segurança jurídica -, exsurge, nesse ponto, com toda a nitidez, a sua inconstitucionalidade.
Portanto, em face de todo o exposto, conclui-se que a não aplicação do princípio da noventena ao imposto sobre a renda, não aplicabilidade essa que foi introduzida no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional n° 42/03, é completamente inconstitucional.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Superior Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.qov.br>. Acesso em: 23/07/07.
CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. - 21. ed. - São Paulo: Malheiros, 2005.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. - 14. ed. - São Paulo: Saraiva, 2002.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. - 9 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2006.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. - 10. ed. - São Paulo Editora Método, mar/2006.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. - 27. ed. - São Paulo: Malheiros, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. - 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. - São Paulo: Atlas, 2007.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário I Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. - 6. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
QUEIROZ, Mary Elbe in: Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. I Coordenador: Eurico Marcos Diniz de Santi. - Rio de Janeiro: Forense, 2006.
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. da. Manual de direito financeiro e direito tributário. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito tributário. - 8. ed. - São Paulo: Premier Máxima, 2006. - (coleção elementos do direito).
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. – 24.ed. – São Paulo: Malheiros, 2005.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe - especialidade direito. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes em Aracaju/SE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Maraisa Lima. A inconstitucionalidade da não aplicação do princípio da noventena ao Imposto de Renda Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2010, 00:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21700/a-inconstitucionalidade-da-nao-aplicacao-do-principio-da-noventena-ao-imposto-de-renda. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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