Introdução
O estudo do tema em questão possui como objetivo analisar dois relevantes princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família, mais especificadamente no âmbito do direito a alimentos, quais sejam, o Princípio da Solidariedade Familiar e da Dignidade da Pessoa Humana.
Inicalmente, cabe ressaltar que o homem, desde o seu nascimento, necessita de auxílio de seus responsáveis para suprir suas necessidades, e, neste sentido, os alimentos são essenciais para garantir a subsistência da pessoa humana que não possui meios necessários de garantir sua manutenção. O ser humano possui o direito primordial à vida com dignidade, sendo imprescindível o instituto dos alimentos como garantia a esse direito.
Principalmente após a Constituição de 1988, um grande avanço no direito brasileiro se deu com a consagração da força normativa dos princípios constitucionais implícitos e explícitos. Estes expressam no plano jurídico os valores de uma sociedade, que se convertem em normas legais. Os princípios possuem relevância na medida em que promovem o alcance da dignidade humana em todas as relações jurídicas, deixando de lado a idéia restrita do positivismo, que impõe um sistema de regras rígido. Sobre a importância dos princípios diz Rodrigo da Cunha Pereira:
Os princípios exercem uma função de otimização do Direito. Sua força deve pairar sobre toda a organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas deixadas por outras normas, independentemente de serem positivados, ou não, isto é, expressos ou não. (PEREIRA, 2004, p. 36)
Estes princípios refletiram suas idéias também no Direito de Família, podendo ser considerado o ramo jurídico que mais sofreu alterações ao longo dos anos. A normatização de alguns princípios através da Constituição Federal causou uma revolução ao Direito de Família, rompendo com antigas concepções, a exemplo da idéia de filhos ilegítimos, a superioridade do homem sobre a mulher conforme já explicitado, bem como no campo relacionado aos alimentos.
A Magna Carta de 1988 instituiu uma nova fase para o direito civil, denominada Direito Civil Constitucional, momento em que as normas deste ramo jurídico passaram a ter como base principal os valores consagrados na Constituição. Sobre os princípios constitucionais e sua relação com o Direito Civil, leciona José Fernando Simão na Revista Brasileira de Direito das Famílias:
Todas as normas infraconstitucionais devem espelhar os princípios precisados pela Constituição Federal de 1988, sob pena de, em desarmonia com o sistema, serem consideradas inconstitucionais, tendo sua validade questionada. (SiIMÃO, p.62, 2008)
Princípio da Solidariedade Familiar
No século XX, com o advento do Estado Social, organizou-se o sistema de seguridade social, que visava a garantia de assistência social, saúde e previdência a todos como dever do Estado. Porém, é sabido que a rede pública de seguridade social não é capaz de suprir as necessidades daqueles que precisam, especialmente as crianças e adolescentes. Neste contexto, se mostram responsáveis em suprir tais necessidades, os parentes e responsáveis.
A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o artigo 3º, I da Constituição Federal, no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária, repercutindo nas relações familiares.
O princípio da solidariedade familiar possui assento constitucional, estando consagrado nos artigos 3º, 226, 227 e 230 da Constituição Federal de 1988. Assim, sob o ponto de vista da Carta Maior, o direito a alimentos funda-se no princípio da solidariedade, que implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da família, conforme leciona Carlos Roberto Gonçalves:
“O dever de prestar alimentos funda-se na solidariedade humana e econômica que deve existir entre os membros da família ou parentes. Há ´um dever legal de mútuo auxílio familiar, transformado em norma, ou mandamento jurídico. Originariamente , não passava de um dever moral, ou uma obrigação ética, que no direito romano se expressava na equidade, ou no officium pietatis, ou na caritas. No entanto, as razões que obrigam a sustentar os parentes e a dar assistência ao cônjuge transcendem as simples justificativas morais ou sentimentais, encontrando sua origem no próprio direito natural`.” (GONÇALVES, p.441, 2005)
Solidariedade implica em respeito e consideração mútuos em relação aos membros da entidade familiar. A solidariedade não é apenas patrimonial, como também afetiva e psicológica. Resume-se no dever de mútua assistência que os parentes possuem uns com os outros. Assim a fonte da obrigação alimentar são os laços de parentalidade que ligam as pessoas que constituem uma família.
Por isso, a fixação dos alimentos deve obediência a uma perspectiva solidária (CF, art. 3º), norteada pela cooperação, pela isonomia e pela justiça social, como modos de consubstanciar a imprescindível dignidade humana (CF, art. 1º, III).
Em um dos seus julgados, o Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio em voga em decisão proferida em 2001, entendendo cabível a prestação de alimentos nos casos de união estável ocorrida antes da vigência da Lei 8.971/94, com base no princípio da solidariedade familiar. Entendeu que a união estável é geradora de direitos e deveres, e, portanto, encontrando-se o companheiro em situação de necessidade, caberá pensão alimentícia com base no laço familiar que os uniu por anos de convivência. Segue adiante a ementa do referido acórdão:
Alimentos. União Estável rompida anteriormente ao advento da Lei 8.971, de 29.12.94. A união duradoura entre homem e mulher, com o propósito de estabelecer uma vida em comum, pode determinar a obrigação de prestar alimentos ao companheiro necessitado, uma vez que o dever de solidariedade não decorre exclusivamente do casamento, mas também da realidade do laço familiar. Precedentes da Quarta Turma. Recurso especial conhecido e provido, a fim de que, afastada a extinção do processo, o Tribunal a quo examine o mérito da causa.(STJ, Resp 184807/SP, Quarta Turma, julgado em 07/06/2001, DJ 24/09/2001 p. 308)
Denominado pelos doutrinadores de macroprincípio, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana está expressamente disposto no art. 1º, III da Constituição Federal, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, algo que deve ser buscado pelo Estado brasileiro. Apesar de apenas ter sido normatizado pela Carta Maior em 1988, Immanuel Kant já realizava estudos acerca do princípio em voga desde meados do século XVIII, onde podemos encontrar as bases de seu conceito.
Não foi Kant quem criou diretamente a expressão “dignidade da pessoa humana”, uma vez que em sua obra denominada “Fundamentação da metafísica dos costumes”, o filósofo utilizou a expressão “dignidade da natureza humana”. Segundo Kant, o ser humano não poderia ser utilizado como meio para obtenção de alguma finalidade, pois é da natureza do próprio homem, ser dotado de consciência, não deixar ser usado como um instrumento de outra pessoa.
Isto porque o homem não pode ser considerado como um objeto, pois possui um valor que não pode ser mensurado por um preço, estando acima de qualquer bem material. Assim, por não possuir um preço, o homem é um ser que não pode ser substituído por outro, como uma coisa, pois ele tem dignidade. Sobre o assunto diz o ilustre doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira:
O valor intrínseco que faz do homem um ser superior às coisas (que podem receber preço) é a dignidade; e considerar o homem um ser que não pode ser tratado ou avaliado como coisa implica conceber uma denominação específica ao próprio homem: pessoa. Assim, o homem, em Kant, é decididamente um ser superior na ordem da natureza e das coisas. (PEREIRA, 2004, p.96)
Assim, como se pode perceber, mesmo que não tenha criado diretamente a expressão dignidade da pessoa humana, foi Kant quem criou a concepção de que a dignidade decorre da natureza humana, a idéia de um ser superior ao bem material, que possui um valor que o faz ser único: a dignidade.
Como já foi dito, o Princípio da dignidade da pessoa humana é considerado como um macroprincípio, ou superprincípio, pois é o mais universal de todos, de onde surgem os demais. É um princípio ético que norteia vários outros, a exemplo da liberdade, da cidadania, da solidariedade, dentre outros. As normas que formam a organização jurídica contemporânea da família sempre se espelham na ótica da dignidade da pessoa humana, pois não existe ser humano sem dignidade.
É difícil conceituar tal princípio, uma vez que ele se mostra presente em infinitas situações, principalmente no Direito de família. Alguns doutrinadores, a exemplo de Novelino, entende que a Dignidade da pessoa humana não é um direito, e sim um atributo inerente a todos os seres humanos. O autor Rodrigo Toscano de Brito apresenta um conceito sugerido pelo doutrinador Ingo Wolfgang:
Para o autor, dignidade da pessoa humana é `a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.` ( BRITO, 2006, p.824)
O Princípio da dignidade da pessoa humana implica na valorização do indivíduo dentro das relações familiares, que deverá ter as suas necessidades atendidas. A família existe em razão de seus componentes, e não estes em razão daquela, valorizando de maneira definitiva a pessoa humana. Assim, a feição patriarcal na Roma clássica foi substituída pela idéia de compreender a família como um sistema democrático, onde todos possuem direitos e deveres iguais, e respeito mútuos entre si.
Aplicando-se o princípio em voga na matéria dos alimentos, assim como em todo ordenamento jurídico, o Princípio da dignidade da pessoa humana é norteador para a fixação dos alimentos, uma vez que estes são determinados de acordo com a possibilidade de quem os cede, e com a necessidade de quem os pleiteia. Assim na fixação do quantum alimentar, não é possível que haja uma afronta a este princípio, sendo ambas as partes respeitadas de acordo com suas possibilidades e necessidades, sob pena de incompatibilidade com a Carta Maior.
Diz-se que a obrigação alimentar possui como fundamento a dignidade da pessoa humana, pois o direito a alimentos possui um objetivo maior, que é preservar a vida humana, garantindo às pessoas necessitadas o mínimo para sua subsistência.
Conforme nos ensina a doutrinadora Maria Aracy Menezes da Costa no livro Família e Cidadania, realizado pelo III Congresso Brasileiro de Direito de Família:
A dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana é irrenunciável e inalienável. Assim, quando a mulher que busca alimentos tem condições de prover o próprio sustento e prefere ficar sendo mantida economicamente pelo ex-marido, como se fosse inferior a ele em condições de prover a sua mantença, ela está renunciando à sua própria dignidade, trocando-a por dinheiro.(COSTA, 2002, p.212)
Para dar maior aplicabilidade a tal princípio, outros microssistemas, a exemplo do estatuto da criança e do adolescente e o Estatuto do Idoso, buscam proteger o indivíduo sob a ótica do Princípio em voga.
Sendo assim, no momento da fixação do dever alimentar, deverá o magistrado observar, primordialmente, os Princípios da Solidariedade Familiar e da Dignidade da Pessoa Humana, vez que se apresentam como valores supremos dos quais os direitos ao seu redor gravitam.
Referências
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito de Família. VI v. São Paulo: Saraiva, 2005.
SIMÃO, José Fernando. Ser ou não ser: Outorga conjugal e solidariedade familiar. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, v.3, p. 56-74, abr./maio, 2008.
FAMÍLIA E CIDADANIA: O NOVO CCB E A VACATIO LEGIS, 2002, Belo Horizonte. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2002. 577 p.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha (cord.). Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2004.
Especialista em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera - UNIDERP; Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes- UNIT; Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Elda Maria Gonçalves. Os princípios da solidariedade familiar e dignidade da pessoa humana aplicáveis no âmbito do direito a alimentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out 2010, 08:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21720/os-principios-da-solidariedade-familiar-e-dignidade-da-pessoa-humana-aplicaveis-no-ambito-do-direito-a-alimentos. Acesso em: 23 dez 2024.
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