1) Introdução
Publicada em 10/08/2009, a Lei nº 12.015 modificou substancialmente a disciplina dos crimes sexuais no Código Penal, criando novas figuras, modificando outras e, por fim, extinguindo algumas.
Anota SILVIA PIMENTEL apud CELSO DELMANTO1:
“(...) essa modificação responde de imediato a uma crítica quanto à linguagem. No ideário popular, a violência sexual máxima é o estupro. E ele designa mais do que a conjunção carnal com a penetração vaginal. Entendemos também por estupro a penetração anal, por exemplo. Ofende tanto quanto. Nos Estados Unidos ambos são rape. Na Inglaterra, também” (O Estado de São Paulo, de 30.08.2009, caderno “Aliás”, p. 14, entrevista “Quando gritar não é suficiente”).
Antes do advento da novel legislação, o sistema jurídico contemplava dois crimes bem autônomos e distintos expressos no Código Penal: estupro e atentado violento ao pudor. O primeiro tipo penal consistia em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, ao passo que no segundo, descrevia-se a conduta de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.
O tipo objetivo do crime de estupro (art. 213) era a prática da conjunção carnal2, mediante violência3 ou grave ameça4 (meios executivos). Somente mulheres poderiam se apresentar como sujeitos passivos do delito, ou seja, tratava-se de crime bi-próprio, o qual exigia condição especial dos dois sujeitos, ativo (homem) e passivo (mulher). Diferente, no entanto, o ilícito identificado como atentado violento ao pudor (art. 214) que previa o cometimento de qualquer ato libidinoso que não a conjunção carnal, podendo ser praticado, indistintamente, por homem ou mulher (sujeitos ativos).
Com promulgação da Lei nº 12.015/2009, as duas condutas criminosas foram fundidas na previsão do atual art. 213, com a identificação de uma única figura típica, apesar da manutenção do nomem iuris do delito de estupro. Não houve a abolição do crime de atentado violento ao pudor (abolitio criminis). Pelo contrário, o crime ainda persiste, mas com uma nova “roupagem”, passando a integrar o tipo penal do art. 213 do Código Penal. É o chamado princípio da continuidade normativo-típica.
Eis a nova redação da conduta delitógena, in verbis:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
2) Estupro e Atentado Violento ao Pudor em um mesmo contexto fático. Crime único ou concurso de crimes?
Com a fusão dos tipos penais, iniciaram-se, mais uma vez, calorosos debates jurídicos, no tocante a possibilidade de reconhecimento de concurso de crimes. Antes da Lei nº 12.015/2009, discutia-se, quando o dois delitos fossem praticados, em sequência pelo agente, se a hipótese legal evidenciada se enquadraria na situação de crime continuado (continuidade delitiva) ou de concurso material de crimes.
Não é demais salientar que ocorre concurso de crimes quando uma pessoa, com uma ou mais condutas, provoca pluralidade de crimes. Não se confunde com concurso de pessoas, onde há uma pluralidade de agentes concorrendo para a execução de um só crime. De igual forma, não se confunde, também, com conflito aparente de normas, onde há um crime aparentemente se ajustando a duas normas.
Como sabido, a doutrina identifica 3 (três) espécies de concurso de crime, a saber: a) concurso material (art. 69 do CP); b) concurso formal (art. 70 do CP); c) crime continuado (art. 71 do CP).
O concurso material decorre da pluralidade de condutas e da pluralidade de crimes consistente em ofensa a bens jurídicos distintos. Adota-se, para a fixação da pena, o critério do cúmulo material, onde se calcula a pena de cada crime per si, através do critério trifásico, realizando-se a soma posteriormente.
Para uma melhor exegese da matéria, colaciona-se o texto legal do Código Penal Repressivo pertinente ao concurso material:
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
O concurso formal, previsto no art. 705 do Código Penal Brasileiro, ocorre quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicando-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de 1/6 (um sexto) até 1/2 (metade). O critério adotado para fixação da reprimenda foi da exasperação.
O crime continuado (continuidade delitiva) ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicando-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (art. 71 do CP6).
É intuito deste trabalho traçar as diferenças das diversas modalidade de concursos de crime, permitindo a interpretação de casos em que se discute qual a espécie de concurso se configura, quando praticados pelo agente os dois antigos delitos (atentado violento ao pudor e estupro), em sequência, em um mesmo contexto fático: seria a hipótese de material ou crime continuado?
Antes da promulgação da Lei nº 12.015/2009, a jurisprudência dominante rechaçava a continuidade delitiva em face da incidência dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, por não considerá-los da mesma espécie. Por não ser conduta única, logo, impossível o reconhecimento de concurso formal. Neste sentido, os julgados dos Tribunais Superiores a seguir apresentados que serve como luva para ratificar o argumento adotado (acórdãos com transcrição parcial das ementas):
"PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PROGRESSÃO DE REGIME. REITERAÇÃO DE PEDIDO. WRIT PREJUDICADO. ALEGADA CONTINUIDADE DELITIVA. INOCORRÊNCIA. CONCURSO MATERIAL. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE EXAME
COMPARATIVO DE DNA. INOCORRÊNCIA. DISCRICIONARIEDADE REGRADA DO MAGISTRADO. PROVAS SUFICIENTES PARA A CONDENAÇÃO.
I - Considerando que a controvérsia acerca da possibilidade de progressão de regime, pelo paciente, já foi apreciada no HC 78.429/SP, perdeu o objeto, nesta parte, o presente writ.
II - Se, além da conjunção carnal, é praticado outro ato de libidinagem que não se ajusta aos classificados de praeludia coiti, é de se reconhecer o concurso material entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor. A continuidade delitiva exige crimes da mesma espécie e homogeneidade de execução.
III - O deferimento de diligências é ato que se inclui na esfera de discricionariedade regrada do Magistrado processante, que poderá indeferi-las de forma fundamentada, quando as julgar protelatórias ou desnecessárias e sem pertinência com a instrução do processo, não caracterizando, tal ato, cerceamento de defesa (Precedentes do STF e do STJ).
IV - No caso em tela, reputou o magistrado ser desnecessária a realização de exame comparativo de DNA, tendo em vista o amplo arcabouço probatório já produzido nos autos, consistente nas declarações da vítima, que reconheceu o acusado na fase policial e judicial do feito, declarações de testemunhas, inclusive do porteiro do 'drive-in' onde ocorreram os crimes, que confirmou a presença do acusado no local, na companhia da vítima, de laudo pericial atestando a conjunção carnal, além de gravação de câmera de segurança comprovando a entrada e saída do veículo do paciente do local, no dia e hora dos crimes.
V - Ademais, a palavra da vítima, em sede de crime de estupro, ou atentado violento ao pudor, em regra, é elemento de convicção de alta importância, levando-se em conta que estes crimes, geralmente, não tem testemunhas ou deixam vestígios (Precedentes). Habeas corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado (Processo HC 102362 / SP HABEAS CORPUS 2008/0059886-2 Relator(a) Ministro FELIX FISCHER (1109) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 18/11/2008 Data da Publicação/Fonte DJe 02/02/2009 ).
"DIREITO PENAL. CRIMES DE ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MESMA VÍTIMA. CONCURSO MATERIAL (E NÃO CRIME CONTINUADO). 1. O Direito Penal brasileiro encampou a teoria da ficção jurídica para justificar a natureza do crime continuado (art. 71, do Código Penal). Por força de uma ficção criada por lei, justificada em virtude de razões de política criminal, a norma legal permite a atenuação da pena criminal, ao considerar que as várias ações praticadas pelo sujeito ativo são reunidas e consideradas fictamente como delito único. 2. "Não há falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor" (HC nº 70.427/RJ, Ministro Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ 24-9-1993), ainda que "perpetrados contra a mesma vítima" (HC nº 688.77/RJ, Relator Ministro Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ 21-2-1992). 3. A hipótese dos autos demonstra que, em relação às duas vítimas, os crimes de atentado violento ao pudor não foram perpetrados como "prelúdio do coito" ou meio para a consumação do crime de estupro, havendo completa autonomia entre as condutas praticadas. 4. Tal solução não ofende as diretrizes da política criminal voltadas ao cumprimento dos objetivos expressos na Constituição da República, acentuando a própria circunstância da hediondez das condutas havidas pelo paciente por ocasião dos fatos referidos na ação penal a que respondeu, que vitimaram duas mulheres. 5. Ordem de habeas corpus denegada" (HC 91370 / SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a): Min. ELLEN GRACIE Julgamento: 20/05/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma)
O debate jurídico era deveras rotineiro, tanto que entendeu-se afetar ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, aproximadamente 2 (dois) meses antes da edição da Lei nº 12.015/2009, a decisão sobre a matéria, oportunidade em que se confirmou a jurisprudência da Corte, entendendo que “não há falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor” (STF, Pleno, HC 96.942/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 18/06/2009).
Ocorre que, a partir da alteração legislativa, o panorama mudou, reabrindo-se, consequentemente, as discussões, exatamente porque no passado não se reconhecia a continuidade entre estupro de atentado violento ao pudor por residirem os delitos em dispositivos legais distintos (crimes de espécies diferentes). Agora, havendo previsão de ambas as condutas em um mesmo artigo, inegável que os argumentos antes apontados poderão ser contestados.
Essa possível interpretação (benéfica), repercute, e muito, nas consequências do apenamento do réu. Recorde-se que a mudança legislativa provocou intensa repercussão na mídia jornalística, tendo sido o tema objeto de artigo na Folha de São Paulo (p. C1), edição do dia 15 de junho de 2010, com a seguinte manchete: “Estupradores usam nova lei para reduzir tempo na prisão”.
Considerando que o sistema penal brasileiro é pautado pelo princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica (novatio legis in mellius), tem-se que as condutas perpetradas sob a égide da lei anterior seriam beneficiadas pelo novo prisma dos crimes contra a dignidade sexual.
Na indigitada matéria jornalística, referida em artigo da lavra do Professor Luiz Flávio Gomes7, a deputada Maria do Rosário (PT-RS), relatora da lei, salientou que a interpretação dos juízes estaria equivocada, por incorrer em um absurdo. É dizer: “Se a pessoa pratica só conjunção carnal, ela vai ter pena de reclusão de seis anos. Se ela pratica coito anal, relação sexual oral, vários coitos, várias conjunções, a pena é a mesma. Isso acaba servindo de estímulo”.
Assim se apresenta a questão polêmica: o sujeito, no mesmo contexto fático, constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse "fato" (contexto fático único, contra a mesma vítima) constituiria crime único (CP, art. 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?
Em 22 de junho de 2010, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, passou a enfrentar a tormentosa questão posta no presente trabalho de o sujeito, no mesmo contexto fático, constranger uma mulher, mediante violência ou grave ameaça, e manter com ela tanto conjunção carnal como coito anal.
Pede-se venia para trazer a lume a ementa do julgado e a notícia (sem destaques o texto original) veiculados no sítio do Superior Tribunal de Justiça, informativo semanal nº 440, ad litteram:
Informativo nº 0440
Quinta Turma
CONTINUIDADE DELITIVA. ESTUPRO. ATENTADO VIOLENTO. PUDOR.
Trata-se, entre outras questões, de saber se, com o advento da Lei n. 12.015/2009, há continuidade delitiva entre os atos previstos antes separadamente nos tipos de estupro (art. 213 do CP) e atentado violento ao pudor (art. 214 do mesmo codex), agora reunidos em uma única figura típica (arts. 213 e 217-A daquele código). Assim, entendeu o Min. Relator que primeiramente se deveria distinguir a natureza do novo tipo legal, se ele seria um tipo misto alternativo ou um tipo misto cumulativo. Asseverou que, na espécie, estaria caracterizado um tipo misto cumulativo quanto aos atos de penetração, ou seja, dois tipos legais estão contidos em uma única descrição típica. Logo, constranger alguém à conjunção carnal não será o mesmo que constranger à prática de outro ato libidinoso de penetração (sexo oral ou anal, por exemplo). Seria inadmissível reconhecer a fungibilidade (característica dos tipos mistos alternativos) entre diversas formas de penetração. A fungibilidade poderá ocorrer entre os demais atos libidinosos que não a penetração, a depender do caso concreto. Afirmou ainda que, conforme a nova redação do tipo, o agente poderá praticar a conjunção carnal ou outros atos libidinosos. Dessa forma, se praticar, por mais de uma vez, cópula vaginal, a depender do preenchimento dos requisitos do art. 71 ou do art. 71, parágrafo único, do CP, poderá, eventualmente, configurar-se continuidade. Ou então, se constranger vítima a mais de uma penetração (por exemplo, sexo anal duas vezes), de igual modo, poderá ser beneficiado com a pena do crime continuado. Contudo, se pratica uma penetração vaginal e outra anal, nesse caso, jamais será possível a caracterização de continuidade, assim como sucedia com o regramento anterior. É que a execução de uma forma nunca será similar à de outra, são condutas distintas. Com esse entendimento, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, afastou a possibilidade de continuidade delitiva entre o delito de estupro em relação ao atentado violento ao pudor. HC 104.724-MS, Rel. originário Min. Jorge Mussi, Rel. para acórdão Min. Felix Fischer, julgado em 22/6/2010.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PROVAS PARA A CONDENAÇÃO. EXPERIÊNCIA DAS VÍTIMAS. CRIME HEDIONDO. LEI Nº 12.015/2009. ARTS. 213 E 217-A DO CP. TIPO MISTO ACUMULADO. CONJUNÇÃO CARNAL. DEMAIS ATOS DE PENETRAÇÃO. DISTINÇÃO. CRIMES AUTÔNOMOS. SITUAÇÃO DIVERSA DOS ATOS DENOMINADOS DE PRAELUDIA COITI. CRIME CONTINUADO. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
I - O exame do v. acórdão vergastado evidencia a existência de provas suficientes para amparar o juízo condenatório alcançado em primeiro grau. Ademais, não se admite, na via eleita, que se proceda a nova dilação probatória.
II - O consentimento da vítima ou sua experiência em relação ao sexo, no caso, não têm relevância jurídico-penal.
III - Na linha da jurisprudência desta Corte e do Pretório Excelso constituem-se os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor (na antiga redação), ainda que perpetrados em sua forma simples em crimes hediondos, submetendo-se os condenados por tais delitos ao disposto na Lei nº 8.072/90.
IV - A reforma introduzida pela Lei nº 12.015/2009 unificou, em um só tipo penal, as figuras delitivas antes previstas nos tipos autônomos de estupro e atentado violento ao pudor. Contudo, o novel tipo de injusto é misto acumulado e não misto alternativo.
V - Desse modo, a realização de diversos atos de penetração distintos da conjunção carnal implica o reconhecimento de diversas condutas delitivas, não havendo que se falar na existência de crime único, haja vista que cada ato - seja conjunção carnal ou outra forma de penetração - esgota, de per se, a forma mais reprovável da incriminação.
VI - Sem embargo, remanesce o entendimento de que os atos classificados como praeludia coiti são absorvidos pelas condutas mais graves alcançadas no tipo.
VII - Em razão da impossibilidade de homogeneidade na forma de execução entre a prática de conjunção carnal e atos diversos de penetração, não há como reconhecer a continuidade delitiva entre referidas figuras.
Ordem denegada (Processo HC 104724 / MS HABEAS CORPUS 2008/0085502-3 Relator(a) Ministro JORGE MUSSI (1138) Relator(a) p/ Acórdão Ministro FELIX FISCHER (1109) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 22/06/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 02/08/2010 ).
No julgamento do remédio heróico, a Quinta Turma do Tribunal da Cidadania posicionou-se pelo afastamento da possibilidade de continuidade delitiva entre os delitos de estupro em relação ao atentado violento ao pudor. A tese foi apresentada pelo Ministro Felix Fischer em voto-vista. Para o eminente Ministro, não há possibilidade de reconhecer a continuidade delitiva (art. 71 do CP) entre diferentes formas de penetração, ante a impossibilidade de homogeneidade na forma de execução.
Conclusivas as observações do douto Julgado:
“Se praticada uma penetração vaginal e outra anal, neste caso jamais será possível a caracterização da continuidade” (...). “É que a execução de uma forma nunca será similar a da outra. São condutas distintas (...)”.
Retomado o julgamento em 22/07/2010, a Ministra Laurita Vaz apresentou voto-vista acompanhando o voto do Ministro Fischer, cujos trechos assim expressam o entendimento:
“(...) antes da edição da Lei n. 12.015/2009, havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo (...)”.
“ (…) tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o legislador tê-las inserido num só artigo de lei (...).”
Para esta interpretação, reitere-se, haveria uma pluralidade de crimes. Considerou-se que, em se tratando de “penetração sexual” distinta, nem sequer cabível seria o crime continuado. O fundamento desta nova posição foi: “o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo”.
Para melhor elucidar o entendimento, transcreve-se o trecho dos votos- vista dos Ministros Felix Fischer e Laurita Vaz (sem destaque o texto original):
“A hipótese em exame, a meu ver, caracteriza um tipo misto cumulativo (na classificação cunhada por James Tubenchlak, tipo acumulado) no que se refere aos atos de penetração. Ou seja, dois tipos legais estão contidos em uma única descrição típica. Desse modo, constranger alguém à conjunção carnal não será o mesmo que constranger à pratica de outro ato libidinoso de penetração (sexo oral ou anal, por exemplo). Dessarte, entendo que não se revela admissível reconhecer a fungibilidade (que é característica dos tipos mistos alternativos) entre as diferentes formas de penetração. Isso poderá ocorrer - reconhecimento da fungibilidade – entre os demais atos libidinosos que não de penetração, a depender das peculiaridades do caso concreto. Em suma, a realização de diversos atos de penetração distintos da conjunção carnal implica o reconhecimento de diversas condutas delitivas, não havendo que se falar na existência de crime único, haja vista que cada ato – seja conjunção carnal ou outra forma de penetração - esgota, de per se, a forma mais reprovável da incriminação” (Voto-vista do Ministro Felix Fischer).
Como se vê, o fato de tais condutas – a conjunção carnal somada à cópula anal e ao sexo oral, acompanhados de socos e mordidas –, não serem equivalentes é o motivo pelo qual, desde há muito, a jurisprudência desta Corte, compartilhada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, entende pela impossibilidade de enxergar homogeneidade quanto ao modo de execução entre a conjunção carnal e a consumação de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, para fins de continuidade delitiva. Afirmar que a submissão da vítima à realização de conjunção carnal tem o mesmo conteúdo de injusto do constrangimento ao exercício da cópula anal é ignorar o fato de que tal prática é carregada de estigma social, decorrente de sua associação com humilhação, submissão e rebaixamento moral.
Ademais, o coito anal ainda representa a imposição de grave risco de contaminação pelo vírus HIV, pois, segundo o Ministério da Saúde, trata-se de prática sexual de risco (Aids - Leia Antes de Escrever, publicado em 01/01/2003, disponível na página de internet http://www.aids.gov.br/). Evidencia-se, assim, que entre a conjunção carnal e o ato libidinoso autônomo não há fungibilidade ou equivalência.
Assim, verifica-se a inexistência de unidade de conduta, uma vez que a prática cumulativa das condutas descritas no tipo implica um aumento qualitativo do tipo de injusto, e não meramente quantitativo. Trata-se de outro modo de dizer que as condutas descritas no caput do art. 213 do Código Penal não são fungíveis, ou seja, não são passíveis de serem substituídas por outras de mesma espécie e valor. Portanto, tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento
qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o Legislador tê-las inserido num só artigo de lei (Voto-vista da Ministra Laurita Vaz).
A doutrina partilha do mesmo posicionamento. Nesse sentido anotam ALESSANDRA ORCESI PEDRO GRECO e JOÃO DANIEL apud DELMANTO8:
“Não é porque os tipos estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela (...)”.
Na mesma direção GRECO FILHO apud DELMANTO:
“Não houve abolitio criminis, ou a instituição de crime único quando as condutas são diversas. Nada mudou para beneficiar o condenado cuja situação de fato levou à condenação pelo art. 213 e art. 214 cumulativamente; agora, seria condenado também cumulativamente à primeira parte do art. 213 e à segunda parte do mesmo artigo.”
O decidido pela Quinta Turma do STJ (em 22.06.10) diverge do entendimento já assentado pelo STF, que adotou a tese do crime único (HC 86.110-SP, rel. Min. Peluso), bem como da compreensão da Sexta Turma do STJ, no HC nº 144.870-DF, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 9/2/2010:
AÇÃO PENAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei nº 12.015/09. Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5º, XL, da Constituição Federal. HC concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A edição da Lei nº 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima (HC 86110 / SP - SÃO PAULO - Relator(a): Min. CEZAR PELUSO - Julgamento: 02/03/2010 - Órgão Julgador: Segunda Turma).
Processo HC 144870 / DF HABEAS CORPUS 2009/0159450-5 Relator(a) Ministro OG FERNANDES (1139) Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA Data do Julgamento 09/02/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 24/05/2010
HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIME CONTINUADO x CONCURSO MATERIAL. INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. MODIFICAÇÃO NO PANORAMA. CONDUTAS QUE, A PARTIR DE AGORA, CASO SEJAM PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA, NUM MESMO CONTEXTO, CONSTITUEM ÚNICO DELITO. NORMA PENAL MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO RETROATIVA. POSSIBILIDADE.
1. A Lei nº 12.015/09 alterou o Código Penal, chamando os antigos Crimes contra os Costumes de Crimes contra a Dignidade Sexual.
2. Essas inovações, partidas da denominada "CPI da Pedofilia", provocaram um recrudescimento de reprimendas, criação de novos delitos e também unificaram as condutas de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. Nesse ponto, a norma penal é mais benéfica.
3. Por força da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais favorável, as modificações tidas como favoráveis hão de alcançar os delitos cometidos antes da Lei nº 12.015/09.
4. No caso, o paciente foi condenado pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, por ter praticado, respectivamente, conjunção carnal e coito anal dentro do mesmo contexto, com a mesma vítima.
5. Aplicando-se retroativamente a lei mais favorável, o apensamento referente ao atentado violento ao pudor não há de subsistir.
6. Ordem concedida, a fim de, reconhecendo a prática de estupro e atentado violento ao pudor como crime único, anular a sentença no que tange à dosimetria da pena, determinando que nova reprimenda seja fixada pelo Juiz das execuções.
No julgamento do HC nº 144.870-DF, o Relator Ministro Og Fernandes entendeu que o tipo seria misto alternativo. Assim, ainda que praticado pelo agente, contra a mesma vítima, conjunção carnal e sexo anal, considerou-se praticado um único único crime, repercutindo na dosimetria da pena.
Notas:
1CÓDIGO PENAL COMENTADO, Editora Saraiva, São Paulo, 2010, 8ª edição, pág. 692.
2Conjunção carnal significa congresso sexual, realizado com a introdução do membro viril do homem no órgão sexual da mulher.
3A violência há de ser material, isto é, emprego de força física suficientemente capaz de impedir o sujeito passivo de reagir
4Dá-se através de violência moral, direta, justa ou injusta, situação em que a vítima não vê alternativa a não ser ceder
5Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
6Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
7GOMES, Luiz Flávio. Estupradores usam nova lei para reduzir tempo na prisão (!). Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2583, 28 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17065>. Acesso em: 31 jul. 2010.
8Ob. cit. Pag. 693.
Analista do Ministério Público de Sergipe, ocupando a função de assessor de Procurador de Justiça.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Odilon Cabral Machado. Estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo contexto fático: crime único ou pluralidade de crimes? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out 2010, 22:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21723/estupro-e-atentado-violento-ao-pudor-em-um-mesmo-contexto-fatico-crime-unico-ou-pluralidade-de-crimes. Acesso em: 23 dez 2024.
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