01. A MUDANÇA DE PARADIGMA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Justiça Laboral evoluiu institucionalmente ao longo de cerca de sete décadas para a modificação do critério delimitador de sua competência. Evoluiu ao se desvencilhar do Poder Executivo e da característica de “justiça” administrativa para assumir seu papel de dizer o direito. Alcançou respeito constitucional, ao ser encarregada da missão de salvaguardar, na perspectiva do trabalho enquanto direito fundamental, a dignidade de todo sujeito da relação de emprego. Avançou na extinção da representação paritária de empregados e empregadores nas antigas Juntas de Conciliação e Julgamento, que passaram a ser denominadas Varas do Trabalho, e nos Tribunais, afastando a atribuída pecha de “órgão arbitral”. E, por fim, consolidou seu papel de Justiça do Trabalho, entendido o trabalho como o objeto central de suas preocupações, através de um novo critério fixador de sua competência: a relação de trabalho.
A mudança de paradigma da Justiça do Trabalho passa inevitavelmente por esta evolução. A Justiça do Trabalho, antes entendida como a Justiça apaziguadora da relação capital-trabalho passa a ser, a partir da Emenda Constitucional n. 45 de 2004 (E.C. n. 45/2004), uma Justiça literalmente Social, voltada objetivamente à solução dos conflitos que decorram da relação de trabalho.
Antes de adentrarmos no estudo das modificações levadas à efeito pela E.C. n. 45/2004 e, principalmente, no estudo dos sentidos da expressão relação de trabalho, iniciemos pelas principais razões que culminaram com a alteração do critério delimitador da competência da Justiça Laboral.
O trabalho subordinado nos tempos atuais vem sofrendo inúmeras modificações. Fenômenos como a globalização, a terceirização, a tendência flexibilizadora dos direitos trabalhistas (por alguns denominada precarizadora das relações de trabalho), a crescente automação dos processos de produção e, por fim, o desemprego e o crescimento da informalidade, demonstram que a atual realidade econômica e social tende a tornar residual as relação de trabalho subordinado tal como conhecida pela Justiça da Trabalho historicamente. Outras formas de trabalho se proliferam e, naturalmente, carecem de proteção efetiva.
Esta realidade transformadora das formas de trabalho é bem relatada por Grijalbo Fernandes Coutinho:
A revolução tecnológica enfrentada nas três últimas décadas foi capaz de produzir avanços científicos tão fantásticos quanto devastadores para as relações de trabalho, deixando, segundo dados da OIT, um bilhão e duzentos milhões de pessoas no mundo trabalhando sem vínculo de emprego ou simplesmente desempregadas. Em face do uso da microeletrônica e de outros recursos, algumas tarefas foram absorvidas por esse novo processo produtivo, reduzindo-se a utilização da mão-de-obra humana e dizimando-se muitos postos de trabalho. Como sempre agiu, o capital não teve embaraços para incrementar novos meios de produção, passando da forma taylorista-fordista de organização da produção para o modelo digital-toyotista, de viés essencialmente automatizado, dirigido apenas para fatias específicas de consumidores e limitada à demanda imediata, com a substituição de grandes fábricas por empresas em rede. A automação veio acompanhada do trabalho de equipe e terceirizado, desintegrando trabalhadores e esfacelando a organização sindical. (COUTINHO, 2005, p. 129)
A nova realidade parece chocar-se com a feição constitucional atribuída à Justiça do Trabalho. Afinal, a este ramo especializado do Poder Judiciário foi dada a função de proteger o trabalho enquanto valor fundamental, representado essencialmente pela relação de emprego.
A mudança proporcionada pela E.C. n. 45/2004, em nosso pensar, vem adaptar a Justiça do Trabalho à realidade da nova formatação do trabalho no mundo contemporâneo, proporcionando a este órgão formas de proteção a toda e qualquer relação de trabalho fundadas na principiologia da Carta Constitucional.
Esta parece ser a opinião de Wilson Prudente quando afirma que
Se por um lado, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho recomendam a adoção do trabalho regulado, ou seja, o trabalho sob a proteção da legislação trabalhista; por outro lado, já não é possível desconhecer a proliferação desmedida do trabalho por conta própria , que cresce no mesmo ritmo e frenesi que a descontrolada economia informal.
É socialmente saudável, quando uma parte dos trabalhadores, se tornam auto-empregados e empresários, por iniciativa própria, e vocação. Mas quando hordas e hordas de desempregados são atirados ao mercado informal por falta de empregos, então este se torna o sintoma visível, de uma doença social, perigosamente desagragadora do tecido social, e potencialmente desmoralizadora das instituições democráticas...
Neste contexto de reconhecimento da tendente residualização do trabalho subordinado, bem como de busca da inserção no mundo da cidadania e da proteção social a este crescente exército de trabalhadores autônomos é que se dá a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. (PRUDENTE, 2006, pp. 75/76, grifos no original)
Resta à Justiça do Trabalho, diante deste contexto, assumir uma postura de proteção a toda e qualquer relação de trabalho, competência que lhe foi atribuída pela E.C. n. 45/2004. Assumir este encargo é ao mesmo tempo sinal de reconhecimento das novas formas de trabalho não-subordinadas e da residualização da relação de emprego, e garantia de tutela de do trabalho enquanto valor fundamental.
Neste sentido Antônio Álvares da Silva:
Se há uma Justiça do Trabalho, sua finalidade há de ser a aplicação do Direito do Trabalho que temos. Hoje, este Direito superou, depois da EC n. 45/04, sua origem histórica, antes limitada à relação de emprego, para expandir-se no trabalho como valor constitutivo da sociedade contemporânea e na relação de trabalho que é, nos dias atuais, o novo ambiente histórico que se coloca como cenário ao Direito do Trabalho. Realizou-se sua adequação aos tempos modernos.
À Justiça do Trabalho restam dois caminhos:
a) seguir a evolução histórica marcada pelos tempos modernos e assumir o trabalho nas novas formas em que se vem manifestando, ou
b) permanecer apenas com a parcela do trabalho subordinado, do qual se ocupou em seu passado. (SILVA, 2006, p. 45)
Não obstante este entendimento, fundado na necessidade de atualização da Justiça do Trabalho aos tempos modernos e na eficaz proteção do trabalho, seja subordinado ou não, abalizadas vozes se levantam contra o afastamento da relação de emprego do centro da competência da Justiça Laboral.
Os argumentos fundam-se na idéia que a E.C. n. 45/2004, ao modificar o critério de competência da Justiça do Trabalho, adota o ideal do fim do emprego e envelhecimento da Justiça do Trabalho, fazendo ruir o sistema de garantias e proteções dado aos trabalhadores subordinados frente ao capital (DELGADO, 2005, p. 296).
O Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, criados especificamente para proteger o hipossuficiente, personificado na pessoa do empregado, e garantir o equilíbrio na relação com o capital, constituem um núcleo institucional de resistência de direitos e garantias que, com a E.C. n. 45/2004, mostra-se inevitavelmente em confronto com os objetivos do Estado Neoliberal e as tendências flexibilizatórias dos direitos trabalhistas (PEREIRA, 2005, p. 16)
No entendimento de Jorge Luiz Souto Maior, com esta visão de atualização da Justiça especializada “despreza-se o diálogo acerca da função precípua da Justiça do Trabalho, ao mesmo tempo em que legitima a neo-opressão do capital sobre o trabalho [...].” (SOUTO MAIOR, 2005, p. 185).
Em nosso pensar, o nascimento da Justiça do Trabalho deve-se à busca pelo equilíbrio entre as forças do capital e trabalho através da proteção da parte hipossuficiente nesta relação, qual seja o empregado. No entanto, conforme já acentuado, o quadro atual do trabalho não mais permite pensar a proteção do trabalhador sob o prisma exclusivo da relação de trabalho subordinada.
A missão institucional da Justiça do Trabalho na Carta Constitucional de 1988 é a de proteger o trabalho enquanto direito fundamental e o trabalhador enquanto sujeito integrante do universo do trabalho. Não se quer negar ao trabalhador subordinado a proteção fornecida pelo aparato justrabalhista, mas ampliá-la para todo e qualquer sujeito integrante da relação de trabalho.
Refutamos o objetivo flexibilizador dos direitos trabalhistas e precarizador da relação de emprego imputado à E.C. n. 45/2004. Compreendemos a reforma constitucional, ao contrário, como um mecanismo protetor do trabalho perante os efeitos maléficos de sua atual formatação e integrante da Justiça do Trabalho a esta nova realidade.
A E.C. n. 45/2004 não pretendeu o fim da Justiça Laboral, mas a sua sobrevivência através da ampliação de sua competência para todas as relações de trabalho existentes.
Passemos, portanto, a um breve estudo do sentido da expressão relação de trabalho, tema central da nova competência laboral.
02. O SENTIDO DA EXPRESSÃO RELAÇÃO DE TRABALHO
Como já vimos a E.C. n. 45/2004 alterou profundamente a competência conferida à Justiça do Trabalho. Do que podemos observar da nova redação dada ao artigo 114 da Carta Constitucional de 1998, principalmente com a inclusão do inciso primeiro, a atribuição de competência à Justiça do Trabalho passou a se vincular à expressão relação de trabalho.
A redação do dispositivo ficou assim definida:
Artigo 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. [...]
Comparando este dispositivo com o original artigo 114 percebemos, além da modificação da competência, uma outra novidade: enquanto que o texto original referia-se a “conciliar e julgar”, o novo texto reporta à expressão “processar e julgar”.
Segundo Wilson Prudente esta mudança se mostra importante, pois a nova expressão conduz aos princípios do juiz natural e do promotor natural e, por conseguinte, a todos os demais princípios correlatos, tais como devido processo legal e contraditório e ampla defesa (PRUDENTE, 2006, p.78).
Esta expressão, segundo nosso pensamento, demonstra o inequívoco desejo do constituinte reformador em afastar definitivamente o caráter predominantemente conciliador da Justiça do Trabalho, dando-lhe subsídios para exercer de forma ampla as novas competências que lhe foram atribuídas.
Na feliz síntese do autor supracitado: “O juiz do Trabalho tornou-se um juiz pleno de jurisdição.” (PRUDENTE, 2006, p. 79, grifos no original).
Estes subsídios dados pelo legislador constituinte amoldam-se perfeitamente ao novo critério de competência atribuído à Justiça do Trabalho. A expressão relação de trabalho, enquanto tema central da competência da Justiça Laboral, necessita ser entendida tendo-se em vista a amplitude jurisdicional confiada pela E.C. n. 45/2004.
Em função desta análise corroboramos o pensamento daqueles que compreendem a expressão em seu mais amplo significado, distinguindo-o das outras redações constitucionais.
Márcio Túlio Viana mostra-se favorável à inclusão de outras formas de trabalho que não apenas o subordinado na competência da Justiça Laboral, fundando seu posicionamento na percepção de que a exploração do capital vem tomando novas formas e atingindo um número maior de trabalhadores (VIANA, 2005, pp. 261-263).
Grijalbo Fernandes Coutinho enxerga a nova competência não como um eufemismo, repetindo-se a fórmula das outras Constituições em estabelecer a competência da Justiça do Trabalho fundada na relação de emprego, mas levando-se em conta a trajetória de modernização da própria Justiça Laboral e afirmando a distinção entre a relação de emprego e a relação de trabalho como conseqüência do desejo do legislador constituinte em ver interpretada de forma ampla a nova competência (COUTINHO, 2005, pp. 134-135).
Podemos perceber, inicialmente, que a evolução institucional da Justiça Laboral ratifica a modificação levada à efeito pela E.C. n. 45/2004. Esta reforma constitucional, como discorremos, é a afirmação e síntese da transformação da Justiça do Trabalho em órgão protetor do trabalho em suas mais variadas formas e enquanto valor constitucional fundamental, adaptando o aparato trabalhista à atual realidade da exploração do trabalho.
O próprio processo legislativo da E.C. n. 45/2004, que desde o Plenário da Câmara, ainda em primeiro turno de votação, adotou a expressão relação de trabalho, demonstra a intenção da reforma constitucional. Conforme conclusão de João Oreste Dalazen:
Transparece nítida e insofismável, assim, à luz de uma interpretação histórica do processo legislativo da EC n. 45/2004, que a mens legislatoris foi a de repelir a identificação da competência material da Justiça do Trabalho estritamente com os dissídios emergentes da “relação de emprego”. Houve, sim, deliberada vontade do Congresso Nacional, expressa em sucessivos momentos, de alargar os horizontes da atuação da Justiça do Trabalho, sobretudo no que se renegou a locução “da relação de emprego”, preferindo-se a esta locução, muito mais ampla e genérica, “da relação de trabalho”. (DALAZEN, 2005, p. 151, grifos no original)
Esta distinção entre relação de emprego, antigo fundamento da competência, e a expressão relação de trabalho, mostra-se suficientemente clara pela própria leitura do dispositivo constitucional. Ao expressar-se de forma decisiva sobre o fundamento da nova competência trabalhista na relação de trabalho, o legislador constituinte rompe com o antigo conceito e estabelece um novo. Acaso fossem interpretadas como sinônimas as expressões não necessitaria a Carta Constitucional de reforma alguma.
O entendimento acolhido pela grande parte dos autores é o de que a relação de trabalho deve ser compreendida como gênero, da qual é espécie a relação de trabalho subordinada (relação de emprego). Mas não apenas esta, posto que a expressão abarca, dentro de sua ampla perspectiva, uma gama de relações “nas quais se possa vislumbrar uma espécie de exploração do trabalho alheio para a consecução de objetivos determinados (sendo marcante o conflito capital-trabalho ainda que com outra roupagem).” (SOUTO MAIOR, 2005, p. 187).
A nova “roupagem” do trabalho e de sua exploração pode ser um critério, talvez o mais válido e razoável, dentre os vários modelos de interpretação que surgirão para definir quais as demandas que serão abarcadas pela Justiça do Trabalho. Se por um lado este critério amolda-se à atual configuração do trabalho na perspectiva de direito fundamental e suas novas formas de exploração, igualmente atende ao papel da Justiça do Trabalho enquanto órgão encarregado de protegê-lo e à necessidade de ampliação de sua atuação.
Em excelente síntese, ARAÚJO (2005), após analisar o trabalho como fator de produção (modelo econômico) e como fator da divisão social da produção (modelo sociológico), chega à conclusão que a normatização do trabalho possui o objetivo de controlar o poder dos indivíduos, inseridos no processo de divisão social do trabalho, de interferir no processo de produção. Deste modo, a relação de trabalho juridicamente pensada, deveria ser caracterizado pela subordinação de seus sujeitos ao contrato ou às normas estatais de proteção aos processos de produção.
Entretanto, esta forma de pensar a relação de trabalho sob a noção de subordinação, segundo sua análise, não atende mais à modificação constitucional proporcionada pela E.C. n. 45/2004. A relação de trabalho deve ser entendida juridicamente, a partir do marco constitucional que representa a multicitada emenda, como “um contrato. Nesse sentido, regido pelo princípio da economicidade e da autonomia da vontade [...] A relação de trabalho será sempre onerosa e intuitu personae em relação ao prestador do trabalho, quer o trabalho seja autônomo ou subordinado, contínuo ou eventual.” (ARAÚJO, 2005, p. 110).
Logo, a expressão relação de trabalho deve ser entendida de maneira ampliada em comparação à noção da relação de emprego, seja a partir do entendimento de que é necessário proteger o valor trabalho frente às novas formas de sua exploração, seja a partir da efetiva residualização do trabalho subordinado em comparação a outras formas de trabalho que surgiram, para que se supere o antigo modelo limitador da competência da Justiça do Trabalho fundado exclusivamente na relação de emprego e seus sujeitos.
03. A OBJETIVAÇÃO DO CRITÉRIO FIXADOR DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Podemos afirmar que a E.C. n. 45/2004, ao estender a competência da Justiça do Trabalho para as ações oriundas da relação de trabalho, além de atribuir a esta Justiça especializada a incumbência de proteger as novas formas de exploração do trabalho, modificou de forma inédita o critério delimitador da sua competência.
Da análise da evolução institucional da Justiça do Trabalho nos textos constitucionais é possível observar que o critério delimitador de sua competência esteve sempre atrelado à qualificação jurídica dos sujeitos envolvidos em uma relação de trabalho subordinada (competência fixada em função das pessoas envolvidas nesta relação). Os textos constitucionais sempre se referiram as expressões “empregadores” e “empregados” e “trabalhadores” e “empregadores”, deixando de forma expressa sua predileção pela relação de emprego e seus sujeitos.
Dizemos, portanto, que a competência da Justiça do Trabalho, ao longo de sua história, sempre esteve fundamentada em razão das pessoas (ex ratione personae) envolvidas na relação de emprego, demonstrando de modo inequívoco o seu caráter subjetivo.
A E.C. n. 45/2004 rompe com este modelo histórico ao fundamentar a competência da Justiça Laboral na expressão relação de trabalho.
Dizemos isto, porque, a partir do texto do inciso I, artigo 114 da Constituição Federal de 1988, a competência da Justiça especializada não mais se caracteriza por ser meramente subjetiva, fundada nas pessoas envolvidas na relação de emprego e sua qualificação jurídica, mas, ao contrário, passa a ser fundamentalmente objetiva pelo caráter despersonalizador da expressão “relação de trabalho”.
A competência que se mostrava ex ratione personae, agora demonstra estar estabelecida de forma objetiva, atribuindo-se à Justiça Laboral as lides, sem distinção em sua natureza, que decorram das relações de trabalho.
Este é o entendimento de João Humberto Cesário:
Todavia a questão ganha contornos substancialmente distintos com a E.C 45, na medida em que a Constituição rompe com os estreitos limites subjetivos da matéria, para decididamente abraçar os dilatados contornos objetivos do assunto, passando a dizer que compete à Justiça do Trabalho julgar não apenas as causas entre empregados e empregadores, mas todas as ações decorrentes da relação de trabalho, sem qualquer distinção de natureza (trabalhista de sentido estrito, civil ou penal). (CESÁRIO, 2006, p. 9)
Guilherme Guimarães Feliciano, em parecer originário de consulta da ANAMATRA aos termos da ADIN n. 3684/2006 proposta pelo Procurador Geral da República, assim se manifesta:
2.5 Por conseguinte, não se pode mais afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho esteja adstrita às lides tipicamente trabalhistas, i.e., à observância/inobservância de direitos trabalhistas “strictu sensu” (artigo 7º da CFRB). A jurisprudência consolidada no âmbito dos tribunais superiores e o “telos” da Reforma do Poder Judiciário (EC n. 45/2004) demonstram, à sociedade, que a Justiça do Trabalho deixou de ser a «Justiça do trabalhador» (ou quiçá «Justiça do empregado») e passou a ser, propriamente, a Justiça do Trabalho. De uma perspectiva tuitiva “a parte subjecti” (a do trabalhador subordinado), evoluiu para uma perspectiva funcional “a parte objecti” (a do trabalho como projeção da personalidade humana), com “vis atractiva” para toda matéria concernente ao trabalho humano de fundo consensual (elemento volitivo), com pessoalidade mínima (elemento tendencial) e caráter continuativo ou coordenado (elemento funcional). (FELICIANO, 2006, pp.5-6).
Outro não é o entendimento de José Eduardo de Resende Chaves Júnior, que se posiciona da seguinte forma:
A anterior ordem constitucional firmava a competência trabalhista, em relação aos litígios decorrentes do contrato de trabalho, em função da pessoa – trabalhador e empregador – não em razão da natureza da matéria. Não é demais ressaltar que, a esse critério, deve-se aditar, naturalmente, o requisito de que a controvérsia decorresse da relação de emprego.
Em outras palavras, a competência da Justiça do Trabalho não decorria apenas de um litígio que tivesse origem na relação de trabalho subordinado, mas que, além disso, fosse qualificado pela condição jurídica das pessoas envolvidas: empregador e trabalhador. Nesse sentido, a competência material da Justiça do Trabalho – ou seja, aquela que decorresse da relação de emprego sem envolver necessariamente o trabalhador e o empregador – somente se aperfeiçoava mediante lei específica.
[...]
Após a Emenda Constitucional n. 45/04 a situação ganhou contornos bem distintos. Com a elisão dos vocábulos “empregador” e “trabalhador” do art. 114 da Constituição, a competência da Justiça do Trabalho deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo (sujeitos ou pessoas envolvidas na relação de emprego), para se orientar pelo aspecto meramente objetivo, qual seja, ações oriundas da relação de trabalho, sem qualquer referência à condição jurídica das pessoas envolvidas no litígio. (CHAVES JÚNIOR, 2005, pp. 221-222).
A partir deste entendimento podemos concluir que a Justiça do Trabalho, a partir da E.C. n. 45/2004, passa a ser competente para julgar todas as ações que decorram do aspecto objetivo que representa a expressão relação de trabalho, independentemente de sua natureza, seja ela trabalhista strictu sensu, civil e, inclusive, ações de natureza penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CESÁRIO, João Humberto. A Emenda Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça do Trabalho: uma polêmica que já não pode ser ignorada. Revista Decisório Trabalhista, Curitiba, ano XIII, n. 140, p. 7-22, 2006.
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DALAZEN, João Oreste. A Reforma do Judiciário e os novos marcos da competência material da Justiça do Trabalho no Brasil. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
DELGADO, Maurício Godinho. As duas faces da nova competência da Justiça do Trabalho. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Da competência penal na Justiça do Trabalho. Disponível em: <http://www.anamatra.org.br>. Acesso em: 26 jul. 2006.
PEREIRA, Vanessa dos Reis. O novo inciso I do art. 114 da Constituição da República de 1988: na marcha ou na contra-marcha da flexibilização?. In: DELGADO, M. G. (Coor.); TEODORO, M. C. M. (Coor.); PEREIRA, V. R. (Coor.). Relação de Trabalho: fundamentos interpretativos para a nova competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
PRUDENTE, Wilson. Crime de escravidão: uma análise da Emenda Constitucional 45 de 2004, no tocante às alterações da competência material da Justiça do Trabalho, e do “novel status” constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.
SILVA, Antônio Álvares da. Competência penal trabalhista. São Paulo: LTr, 2006.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Justiça do Trabalho: A Justiça do trabalhador?. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
VIANA, Márcio Túlio. As relações de trabalho sem vínculo de emprego e as novas regras de competência. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe; Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL/LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENESES, Rodrigo Gonçalves. A "relação de trabalho": um novo marco para a fixação da competência da justiça do trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2010, 08:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21728/a-quot-relacao-de-trabalho-quot-um-novo-marco-para-a-fixacao-da-competencia-da-justica-do-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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