A Justiça do Trabalho evoluiu institucionalmente para exercer, a partir da E.C. n. 45/2004, uma função que nunca antes lhe tinha sido atribuída.
A partir do marco que representa a citada reforma constitucional este ramo do Poder Judiciário passou a ser competente para processar e julgar as ações decorrentes da relação de trabalho, segundo nos informa a simples leitura do inciso I, artigo 114, da Carta Constitucional.
E quais ações decorrentes da relação de trabalho estariam inseridas na nova competência da Justiça especializada? Somente as recorrentes reclamatórias trabalhistas envolvendo o reconhecimento de uma relação de trabalho subordinado e os seus consectários legais?
Certamente que não. A reforma constitucional evidencia que não apenas as ações trabalhistas em sentido estrito estão agora na esfera de atuação da Justiça Laboral, mas todas, sem distinção de sua natureza, sejam elas civis ou penais, desde que presente a nova “roupagem” do conflito entre capital e trabalho mencionada por SOUTO MAIOR (2005, p. 187), por ser este um critério interpretativo válido, em nosso pensar, da expressão relação de trabalho.
A objetivação do critério delimitador da competência juslaboral através do termo “relação de trabalho” é de fundamental importância para estas conclusões. Através da mudança da perspectiva – da qualificação dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica de emprego para a expressão relação de trabalho – da competência da Justiça especializada é que se tornou possível afirmar que as ações penais, tema central deste trabalho, estariam agora inseridas na competência da Justiça Laboral, rompendo com uma lição processual que sempre afirmou o contrário.
Para ilustrar nosso entendimento, vejamos o tradicional pensamento da doutrina processual acerca da distribuição da jurisdição penal em nosso sistema processual:
A jurisdição penal é exercida pelos juízes estaduais comuns, pela Justiça Militar estadual, pela Justiça Militar federal, pela Justiça Federal e pela Justiça Eleitoral; em suma, apenas a Justiça do Trabalho é completamente desprovida de competência penal. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p. 143, sem grifos no original).
Como afirmamos, ao ficar estabelecido pelo inciso I, artigo 114, da Carta Constitucional a competência da Justiça especializada para as ações decorrentes da relação de trabalho, as lides que lhe serão atribuídas não necessitam mais ser exclusivamente vinculadas aos sujeitos da relação de emprego, o que amplia sua competência para outras ações, inclusive as ações penais que decorram da relação de trabalho, por inexistir qualquer vedação neste sentido. Esta conclusão, por certo, redundará na modificação do antigo postulado processual.
E não apenas este dispositivo nos informa que à Justiça do Trabalho caberia dirimir lides penais, mas os demais incisos II, IV e IX, assim redigidos:
Artigo 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
[...]
II – as ações que envolvam o exercício do direito de greve;
[...]
IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
[...]
IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
Discorreremos sobre o conteúdo de cada dispositivo acima mencionado nas próximas linhas, sua importância na caracterização da competência penal da Justiça do Trabalho e outros fatores que nos levam a crer na existência desta competência.
01. RAZÕES DE ORDEM JURISDICIONAL
A necessidade em se estabelecer a competência da Justiça do Trabalho para solucionar lides de natureza penal decorre, dentre vários fatores, de razões de ordem jurisdicional.
A partir do novo texto do artigo 114 da Constituição Federal, principalmente seu inciso primeiro, que atribuiu competência à Justiça Laboral para processar e julgar as ações decorrentes da relação de trabalho, não mais subsistem os motivos que antes determinavam a apreciação, por órgãos jurisdicionais distintos, das questões decorrentes do ilícito trabalhista.
Anteriormente, na vigência do paradigma da relação de trabalho subordinado como marco da competência juslaboral, somente os efeitos patrimoniais da violação ao ilícito trabalhista eram destinados à Justiça do Trabalho. A esta, caberia identificar a existência da relação de emprego, a violação à norma trabalhista e, por fim, fixar a indenização cabível, tencionando restabelecer o equilíbrio que deveria existir, mas que fora rompido.
Atualmente, através da fixação da competência da Justiça Laboral para apreciar as ações decorrentes da relação de trabalho, os efeitos decorrentes do ilícito trabalhista, em todas as suas vertentes (estritamente patrimoniais, administrativos e penais), devem ser analisados somente pela Justiça do Trabalho.
Não existem, a partir do novo paradigma instituído pela E.C. n. 45/2004, motivos para que seja dividida a jurisdição penal-trabalhista, ponto que nos atemos, entre vários órgãos do Poder Judiciário. Assim entendemos, primeiramente, pela literalidade do inciso I, do artigo definidor da competência juslaboral.
Em segundo lugar, percebemos que a Justiça do Trabalho é o órgão constitucionalmente encarregado da proteção do trabalho enquanto valor fundamental e, certamente, o mais preparado e identificado com a matéria. A repartição da jurisdição penal, como veremos no próximo item, somente enfraquece a integridade da proteção ao valor trabalho e o cumprimento das normas voltadas a este fim.
Por fim, vislumbramos o intento do legislador em unificar em um só órgão jurisdicional a competência para analisar todos os aspectos do ilícito trabalhista, adotando como conseqüência a idéia da unidade de jurisdição.
A unidade de jurisdição representa, em nosso entender, a unificação da competência para todas as ações decorrentes de um mesmo fato jurídico (vinculado, essencialmente, à relação de trabalho) em um só órgão jurisdicional (a Justiça do Trabalho). Não a competência em sua tradicional definição de “medida da jurisdição”, mas entendida como adequação legítima entre o processo e o órgão jurisdicional.
Sobre a teoria da adequação legítima, essenciais são os ensinamentos de Celso Neves:
Percebe-se, pois, que o vocábulo jurisdição é inexpressivo de todas essas atividades atribuídas ao juiz no processo civil, servindo para designar apenas, uma das funções que, aí, a ele são atribuídas. Por isso, preferimos dizer que o juiz exercita, no processo, não apenas a jurisdição, mas a função de tutela jurídica processual que, além dessa atividade, compreende as demais que acabamos de especificar.
Tal posicionamento reclama, para a competência, um outro significado que, se já se impunha, quando se dizia jurisdicional a função do juiz, mais se torna imperativa quando a esse vocábulo se prefere a locução tutela jurídica processual. O certo é que, já em 1963 – antes mesmo de chegarmos a tais especificidades – elaboramos conceito de competência que a retira dos padrões quantitativos em que, geralmente, é colocado, para defini-la qualitativamente, em duplo aspecto, subjetivo e objetivo. Subjetivamente, tivemo-la, àquela época, como o atributo para o exercício da jurisdição, decorrente de investidura legítima. Objetivamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional. Hoje, substituindo o vocábulo jurisdição por tutela jurídica processual, o conceito permanece o mesmo, em seus demais elementos, desvinculado de qualquer influência quantitativa, em função da diferença específica que há entre a competência e essa tutela. (NEVES, 1993, pp. XI-XII, grifos no original).
Uma vez pertinente a conceituação de competência como a adequação legítima entre o processo (não obstante direito abstrato, reconhecido como instrumento para a realização do direito material) e o órgão jurisdicional, se à Justiça Laboral foi destinada constitucionalmente a competência para a apreciação das ações decorrentes da relação de trabalho é porque mostra-se como o órgão jurisdicional legítimo e constitucionalmente adequado para a apreciar as ações e, consequentemente, os processos (e a subjacente questão de direito material, inclusive de natureza penal) que envolvam a relação de trabalho.
Além da caracterização da competência como adequação legítima, outras razões se somam ao reconhecimento da competência penal-trabalhista da Justiça Laboral, principalmente quando se reconhece o direito social como direito fundamental insculpido na Carta Constitucional. Tais razões, objetivando este sentido, foram denominadas por Guilherme Guimarães Feliciano como razões de ordem jusfundamental, senão vejamos:
2.10 A abonar essa tese – não apenas a mais acertada do ponto de vista político-judiciário, como também mais defensável constitucionalmente –, há fortes argumentos de caráter jusfundamental. A par do quanto já se escreveu a respeito (em torno da teoria da <adequação legítima> entre a competência penal trabalhista e a Justiça do Trabalho, que a nós diz bem pouco) existe um aspecto jusfundamental que, como razões melhores e mais nítidas, parece afinal justificar a exegese da outorga, à Justiça do Trabalho, de competência para o processo e julgamento das infrações penais indicadas no tópico 2.9 (supra). Vejamos.
2.11 Impende reconhecer, com ALEXY, que a teoria abstrata da ação (DEGENKOLB, 1877) não pode levar à extrema conseqüência de apartar, qual compartimentos estanques, o processo/procedimento (incluído, no binômio, o conceito de competência, que é um dos institutos fundamentais da Teoria Geral do Processo) e o direito material resistido, especialmente em se tratando de direitos humanos fundamentais. Bem ao revés, há uma conexão fundamental entre os direitos fundamentais – entre os quais os direitos sociais positivados no artigo 7º da CRFB – e os procedimentos jurídicos predispostos para a sua satisfação, de modo que “o aspecto procedimental e o material têm de ser reunidos em um modelo dual que garanta o primado do aspecto material”. De outra forma, o processo perderia, pela abstração, a sua mais evidente característica contemporânea, a saber, a instrumentalidade. Consequentemente, ali onde as normas processuais e/ou procedimentais podem aumentar a proteção de determinado direito fundamental, tais normas estão exigidas “prima facie” por princípios jusfundamentais (entre os quais o da unidade da Constituição, o da máxima efetividade e o da força normativa da Constituição). [...] (FELICIANO, 2006, pp. 8-9)
Na verdade, o reconhecimento da unidade de jurisdição atrela-se de modo indissociável ao reconhecimento da unidade do processo objetivando unicamente a proteção efetiva do direito do trabalho (direito material subjacente ao processo) enquanto direito fundamental. De outro modo, da própria noção de unidade de jurisdição decorre a referência à unidade de processo.
Como mencionado por Raimundo Cândido citado por Antônio Álvares da Silva em sua lição sobre a natureza unitária do processo:
Este conjunto de normas prefixadas para aplicação do direito constitui o direito processual, que se divide em direito processual penal e direito processual civil. Esta divisão não é estanque, pois ambos são galhos de um mesmo tronco: o direito constitucional; mantêm estreita afinidade entre muitos de seus institutos, daí poder afirmar D’Agostinho que ‘o conceito de unidade da função jurisdicional se desenvolve, contemporaneamente, com o da unidade do processo, considerando-se que o princípio processual cinde-se na tutela dos vários ramos do direito substancial pela natureza diversa dos interesses tutelados, mas nos caracteres formais essenciais permanecem imutáveis, pela identidade de função e de escopo’. (CÂNDIDO apud SILVA, 2006, p. 36).
É esta a atual tendência verificada no direito processual moderno: unificar os ramos do processo visando à satisfação do direito substancial tutelado e a uma efetiva prestação jurisdicional. A tutela ampla e efetiva do direito material através da unificação do processo, originalmente unitário, obedecendo a critérios de economia processual e racionalidade na divisão da competência, decorre concretamente da unidade de jurisdição e, conseqüentemente, de processo.
Outro não é o entendimento de Antônio Álvares da Silva:
Portanto o que existe de fato é a unidade de jurisdição, mas isto não impede a divisão em ramo para atender a aspectos pragmáticos e necessidades concretas de aplicação da norma. Porém estas divisões, que atendem a interesses concretos, não rompem com o fio que as une ao tronco comum, que se personifica na unidade de jurisdição.
Não há que se falar em divisões estanques ou cortes profundos entre os diferentes ramos da jurisdição, que não podem erigir-se em instituições autônomas, como se gozassem de vida própria e princípios distintos, em torno dos quais fixassem sua razão de ser. (SILVA, 2006, pp. 36-37).
E conclui o citado autor:
Diante de todos estes fatos, o reconhecimento da unidade da jurisdição penal trabalhista e juntamente com ela a aplicação de multas administrativas nada mais é do que um princípio de economia processual, que centraliza em um só ramo jurídico as conseqüências de um ilícito que tenha várias repercussões.
De fato era uma aberração lógica que se fundasse uma jurisdição especializada apenas para a solução de conflitos individuais de trabalho, considerando o lado meramente patrimonial desta relação, remetendo-se para outras jurisdições a aplicação de sanções que a própria lei trabalhista prevê para o preceito violado. (SILVA, 2006, p. 37).
Além destes argumentos trazidos à baila em defesa da competência penal da Justiça Laboral, vislumbramos mais dois pontos relacionados à racionalidade na divisão da competência penal e a caracterização da adequação legítima do processo penal ao órgão jurisdicional laboral, quais sejam: a desnecessidade da competência penal vir expressa no texto constitucional e a competência penal fundada na “natureza da infração”.
Quanto ao primeiro ponto, entendemos que, da mesma maneira com o que se passa com a Justiça Comum estadual, que não possui sua competência penal firmada expressamente na Carta Constitucional de 1988, e com a Justiça Eleitoral, ramo especializado como a Justiça do Trabalho, que igualmente à Justiça Comum estadual não possui sua competência penal atribuída explicitamente na Carta Magna, mas sim no Código Eleitoral, é plenamente possível ser exercitada pela Justiça Laboral a jurisdição penal.
Em nosso entender, o que existe em relação à tradicional noção de atribuição expressa de competência penal no texto constitucional (noção equivocada, como demonstrado pelos exemplos acima desenhados) é uma confusão entre a idéia de atribuição de competência penal a um órgão jurisdicional e o conhecido princípio da reserva legal em termos de direito material penal.
Explique-se: uma coisa é o imperativo de definição legal de crime para efeitos de atribuição de uma conduta ao indivíduo infrator. Uma outra, completamente distinta, é a atribuição de competência penal a um órgão jurisdicional por determinação da Constituição. Aquela é indispensável que venha ela explicitada; esta, não, devendo obedecer, como dito anteriormente, a critérios de economia processual e racionalidade em sua divisão.
Em relação ao segundo ponto, atendendo aos ditames da adequação legítima entre o processo e o órgão jurisdicional, está a expressa fixação da competência penal pelo Código de Processo Penal com base na “natureza da infração”.
Conforme o inciso III, do artigo 69 do Código de Processo Penal:
Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:
[...]
III – a natureza da infração;
Uma vez sendo reconhecida a identificação da infração com a matéria trabalhista, não se olvidando da noção de adequação legítima entre o processo e o órgão judiciário, deverá ser atribuída à Justiça Laboral a competência penal para a análise destas infrações.
Sobre este ponto, assim se manifesta José Eduardo de Resende Chaves Júnior:
Daí que a adequação legítima corresponde, perfeitamente, ao critério de fixação da competência penal, atinente à natureza jurídica da infração, previsto pelo inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, em outras palavras, a Justiça que lida com a proteção do trabalho é que, sem dúvida, tem maior grau de adequação e legitimidade para avaliar o teor ofensivo das condutas reprimidas pela ordem penal-trabalhista. (CHAVES JÚNIOR, 2005, p. 225)
Deste modo, fundindo-se a noção de adequação legítima à disposição do Código de Processo Penal acima mencionada, outra não será a conclusão senão a que atribua à Justiça do Trabalho competência penal para apreciar as causas em que se vislumbre na infração a natureza trabalhista.
Por fim, persistindo qualquer dúvida a respeito da atribuição de competência penal à Justiça Laboral em relação a questões de ordem jurisdicional, indispensável a noção inserta no princípio da unidade de convicção.
Sobre o tema observe-se o Conflito de Competência n. 7.204-1 - Minas Gerais, do qual foi relator o Sr. Ministro Carlos Britto, em que o Pretório Excelso, por maioria, definiu a competência da justiça trabalhista, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, para julgamento das ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, vencido, no caso, o Senhor Ministro Marco Aurélio. O voto do Ministro Peluso, não obstante referir-se às ações acidentárias, é bastante interessante quanto à percepção pelo Supremo Tribunal Federal das novas atribuições da Justiça do Trabalho após a E.C. n. 45/2004. Vejamos seu posicionamento:
[...] Recebi, depois, um trabalho muito bem fundamentado e muito bem documentado de um juiz do TRT de Minas Gerais, Dr. Sebastião Geraldo de Oliveira, cujas considerações levaram-me a rever aquela posição. E tal posição, que teve modesta influência no teor do acórdão, baseou-se no princípio fundamental da chamada unidade de convicção, segundo o qual, por conta dos graves riscos de decisões contraditórias, sempre ininteligíveis para os jurisdicionados e depreciativas para a Justiça, não convém que causas, com pedidos e qualificações jurídicos diversos, mas fundadas no mesmo fato histórico, sejam decididas por juízos diferentes. O princípio, a meu ver, é irretocável e ainda é o que deve presidir a solução da questão da competência neste caso.
Mas parece-me que, conforme propôs o eminente Ministro-Relator, deva ser outra a resposta que promana daquele princípio.
É que a revisão do tema me convenceu de que tanto as ações acidentárias, evidentemente oriundas de relação de trabalho, como, sem exceção, todas as demais ações resultantes de relação de trabalho, devam, em nome do mesmo princípio, ser atribuídas à Justiça do Trabalho. A especialização e a universalidade desta já recomendariam, quando menos em teoria, tal solução, por razões mais que óbvias, como acabou de demonstrar o voto do eminente Ministro Carlos Britto.
[...]
Antes da Emenda nº 45, parecia deveras consistente a leitura de que, se estavam excetuadas da competência da Justiça Federal as causas de acidente do trabalho, em que sempre é interessada autarquia federal, só podiam elas caber na competência da Justiça dos Estados, porque a mesma norma as excluía das que eram, por outras regras, sujeitas à Justiça do Trabalho.
Mas, de lá para cá, a evolução da legislação acidentária, sobretudo com a equiparação dos valores dos benefícios acidentários e previdenciários, e a disseminação dos órgãos da Justiça trabalhista, competentes para tantas outras causas ligadas à própria segurança do trabalho, desenharam nova realidade judiciária, que as próprias exigências da unidade de convicção e da especialização de conhecimentos não poderiam deixar de considerar nas perspectivas da revisão daquela exceção constitucional. Isso, sem cogitar da necessidade de coerência axiológica que impunha a vigente Constituição da República, ao conceber a indenização acidentária como direito típico da condição jurídica do empregado e, portanto, como irradiação da relação de trabalho, como se vê ao art. 7º, inc. XXVIII, da mesma Constituição.
É, portanto, dentro desse quadro, que há de interpretar-se a Emenda nº 45, quando, explicitando, no inc. I do art. 114, o caráter geral da competência da Justiça do Trabalho, nela incluiu todas as ações oriundas da relação de trabalho.
[..]
Essa interpretação acomoda ambas as cláusulas constitucionais, reverencia a especialização e a funcionalidade da Justiça do Trabalho, alivia a Justiça estadual e sustenta-se na necessária unidade de convicção, sem esvaziar o disposto no inc. VI, onde apenas se divisa a positivação, mediante relevo destinado a superar todas as dúvidas, da jurisprudência desta Corte, que, sob a redação original do art. 114, caput, entendia – a meu ver, com indiscutível acerto - que, para efeito dessa competência distribuída com apoio em vários princípios, entre os quais o da unidade de convicção, era e é irrelevante a província taxinômica das normas aplicáveis ao caso, se direito trabalhista ou civil, e, pois, também a natureza mesma da responsabilidade, se negocial ou aquiliana.
Essa conjugação conduz, portanto, a meu ver, ao seguinte resultado prático: são, agora, da competência exclusiva da Justiça do Trabalho todas as ações oriundas da relação de trabalho, sem exceção alguma, trate-se de ações acidentárias típicas ou de indenização de outra espécie e de outro título.
O princípio, como bem mencionado pelo Ministro Peluso, demonstra que não existem benefícios na repartição ilógica da competência, principalmente se for compreendida a nova dimensão do artigo 114 da Carta Constitucional.
Se um fato, afeto à relação de trabalho, gerar diversas conseqüências jurídicas, não existem razões para que se divida a apreciação da ações decorrentes deste fato entre diversos órgãos jurisdicionais distintos, sob pena de enfraquecimento e esvaziamento do ideal de Justiça causados pela ausência de resposta eficaz, congruente e completa que a cisão de competência provoca.
Como bem disse o Ministro Cezar Peluso são, agora, da competência exclusiva da Justiça do Trabalho todas as ações oriundas da relação de trabalho, sem exceção alguma. É este o órgão jurisdicional encarregado constitucionalmente de zelar pela proteção do trabalho e, consequentemente, destinado, a partir da E.C. n. 45/2004, a dar uma resposta efetiva ao combate às irregularidades trabalhistas.
A idéia de eficácia na prestação jurisdicional afeta ao processo entendido como instrumento não se realiza com cisão na competência. Ao contrário, a eficácia no combate às constantes violações às normas trabalhistas só ocorrerá com a concentração na Justiça do Trabalho da competência para apreciar todas as ações decorrentes da relação de trabalho, inclusive as lides de natureza penal.
02. RAZÃO DE ORDEM PRÁTICA: O EFETIVO COMBATE ÀS VIOLAÇÕES À LEI TRABALHISTA
A noção de unidade de convicção estreitamente vinculada à efetividade do processo traduz-se na necessidade de uma Justiça consciente de que o combate às diversas irregularidades trabalhistas somente se realiza de maneira eficaz e completa com uma atuação definida por uma competência unificada e sem repartições desnecessárias e burocráticas.
A constatação da ocorrência de diversas irregularidades ocorridas no meio trabalhista e suas constantes repetições sem que sejam concretizadas medidas tendentes à sua eliminação demonstra que os instrumentos atualmente adotados pelos órgãos competentes não são detentores de eficácia.
A negativa de jurisdição penal à Justiça do Trabalho talvez possa explicar as constantes violações ao ordenamento juslaboral, ante a ineficiência da resposta tradicionalmente dada pela Justiça Laboral.
Um dos fatos que nos levam a tal conclusão é o grande montante de ações repetidas que se avolumam no Judiciário Trabalhista. Certamente estas não existiriam se o modelo preventivo proporcionado pela sanção penal fosse aplicado pela Justiça do Trabalho. Como menciona Antônio Álvares da Silva acerca deste fato:
[...] assoberbam-se as varas e tribunais de ações repetidas, protelando-se a aplicação plena da norma, que se divide em órgãos e instâncias diversas, num claro exemplo de falta de lógica e de método científico de racionalização de tarefas.
A burocracia cresce, os gastos aumentam e a Jurisdição do trabalho consome em torno de 6,5 bilhões de reais para enfrentar o edifício burocrático de sua manutenção.
O empregador, sancionado apenas quanto à reposição do patrimônio, que paga apenas no final da demanda, protela enquanto pode o crédito trabalhista, transformando-o em capital de giro de suas empresas ou em dinheiro fácil que emprega no mercado de capitais. (SILVA, 2006, p. 38).
Em suma, a não aplicação da norma trabalhista em sua amplitude, com a efetivação de sanção penal nos casos em que suficientemente grave a violação aos valores sociais do trabalho, evidenciam o enfraquecimento da função protetiva do trabalho direcionada à Justiça Laboral.
E mais. Além do enfraquecimento da estrutura trabalhista (suas instituições) a partir de respostas ineficazes em seus pronunciamentos e não exercício de suas atribuições de maneira completa, parece-nos evidente o enfraquecimento da norma e do ideal de Justiça afetados pela aplicação (ou mesmo não aplicação) da norma pela metade, sem utilização de sanções de natureza penal aos reincidentes infratores.
A conseqüência direta é o nascimento do sentimento de impunidade, muito bem relatado pelas fortes palavras de Marcelo José Ferlin D`Ambroso:
Sabe-se que a impunidade e corrupção têm entre si laços indissolúveis de proximidade em relação causa-consequência. Mora e complacência na resolução de problemas não estimulam outra coisa senão o descrédito do Poder constituído, e, na medida em que isso ocorre, a própria corrupção do sistema, favorecendo as violações da lei.
No âmbito trabalhista, a situação é trágica: o título do Código Penal dedicado aos crimes contra a organização do trabalho é quase letra morta ante o desuso dos operadores do direito quanto aos tipos penais que decorrem da relação de trabalho. A pouca jurisprudência existente sobre os delitos em questão costuma ser negativa, e raras as condenações. Isto deve ser atribuído à inocorrência dos tipos ou à falta de familiaridade/especialização/sensibilidade dos juízos e tribunais a quem levada a apreciação dos mesmos, em função do substrato fático residir na relação de trabalho?
As conseqüências desastrosas dessa dura realidade são sentidas no quotidiano forense da Justiça do Trabalho – o trabalho informal, a sonegação de direitos mediante diversas fraudes (recibos em branco, truck-system, falsificação de assinaturas de empregados, controle paralelo de jornada, salário “extra-folha”, falso cooperativismo, constituição irregular de pessoas jurídicas, discriminações, e, pior, isto ocorrendo no âmbito da própria Administração Pública), ou, ainda, a simulação de ações trabalhistas para constituição de crédito privilegiado e burla a credores etc., são todas condutas gravíssimas, mas de repúdio social diminuído ante a tolerância criminal estabelecida ao longo do tempo pela falta de competência penal da Justiça especializada. [...] (D’AMBROSO, 2006, p. 183).
Em nosso sentir, a norma penal não pode ser entendida de forma a não se compatibilizar com a matéria trabalhista. Ao contrário, deve ser vista como fator de prevenção às condutas gravíssimas constantemente repetidas na seara trabalhista.
A sanção apenas como modelo de punição não se presta aos objetivos aqui delineados. Para reduzir as condutas transgressoras da norma trabalhista, a sanção penal tem que se mostrar como elemento de controle e de expectativa de cumprimento espontâneo do ordenamento jurídico.
Explique-se. Com a aplicação da sanção penal e a efetiva punição do elemento transgressor, espera-se que nasça nos outros indivíduos, a partir daquele exemplo, um sentimento que conduza suas atitudes no limite do esperado pela adequada convivência social. Então, fixados estarão o elevado valor que se atribui às normas jurídicas relacionadas ao trabalho e, conseqüentemente, seu espontâneo cumprimento.
Concordamos, portanto, com Antônio Álvares da Silva quando este assim se pronuncia:
Não se deseja apenas a punição do criminoso, mas que da punição nasça um exemplo de confiança da sociedade no ordenamento jurídico, para que haja o cumprimento espontâneo das normas sem a ameaça de sanção.
É esta reversão que se tem em mira com a competência penal trabalhista. Primeiramente, a eficácia das sanções que existem nas leis; depois, pela certeza de sua imposição, a conduta adequada, pretendida pelo legislador.
A punição não é tudo, mas tudo começa por ela. Só quem não conhece a natureza humana creria na obediência às leis por meio de simples apelos e evocações morais ou religiosas. (SILVA, 2006, p. 20).
É isto que se espera dos empregadores: que suas condutas se amoldem ao pretendido pelo legislador. Acaso haja desrespeito à lei, que seja aplicada a sanção penal como forma de repreender a transgressão, fortalecer a lei e, consequentemente, engendrar um ambiente de respeito aos direitos trabalhistas.
03. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE E A COMPETÊNCIA CRIMINAL
Afigura-nos bastante claro o disposto pela E.C. n. 45/2004 no inciso II, artigo 114 da Carta Magna no que se refere à atribuição de jurisdição penal à Justiça do Trabalho. Vejamos mais uma vez o que dispõe o referido dispositivo:
Artigo 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
[...]
II – as ações que envolvam o exercício do direito de greve;
Estabelecido foi pela reforma constitucional que todas as ações, sem exceção, relacionadas ao exercício do direito de greve são agora da competência da Justiça especializada.
João Humberto Cesário nos lembra da necessidade de interpretar esta disposição constitucional através do
[...] preceito comezinho de hermenêutica constitucional, a ditar que a Constituição deva ser interpretada pelo enfoque da máxima efetividade, com os olhos tão somente voltados aos limites da concordância prática, será paradoxalmente necessária a remessa do leitor, num primeiro momento, à legislação infraconstitucional, a fim de se estabelecer a grandiosa abrangência do preceito à balha. (CESÁRIO, 2006, p. 10)
A legislação infraconstitucional, como mencionado, se mostra absolutamente em concordância com a disposição constitucional, senão vejamos o disposto no artigo 15, da Lei n. 7.783/1989, denominada Lei de Greve:
Art. 15 - A responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal.
Logo, não existindo qualquer limitação imposta pelo texto constitucional e, muito menos, pela legislação ordinária, devemos entender pela absoluta pertinência, porque que explicitada por ambos os textos, da atribuição de jurisdição penal à Justiça especializada.
Concluímos com o autor acima citado, no sentido que
[...] se a Constituição dirige a competência da Justiça do Trabalho, sem distinções, para cognição e julgamento das ações oriundas do direito de greve, e se o direito de greve nos termo de sua lei própria será analisado pelos primas trabalhista, civil e penal, não se pode concluir de modo diverso, senão para entender que a atribuição especializada será ampla.
Somente uma visão aferrada a dogmas do passado, incompatível com a atual quadra competencial traçada pela EC 45, é que será capaz de restringir esta possibilidade, pelo que me parece sensato proclamar que doravante estão reservadas à competência do Judiciário Laboral todas as ações que envolvam o exercício do direito de greve, independentemente do objeto trabalhista stricto, civil ou penal de que possam estar impregnadas. (CESÁRIO, 2006, p. 10)
04. A NATUREZA DO HABEAS CORPUS
Além das razões acima expostas que evidenciam a competência penal da Justiça do Trabalho, mais um motivo nos é dado pelo inciso IV do artigo 114 da Carta Magna para acreditar nesta tese.
Vejamos, mais uma vez, o conteúdo do referido dispositivo:
Artigo 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
[...]
IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
Como explicitado pelo dispositivo, destinou-se à Justiça do Trabalho a competência para julgar habeas corpus quando o ato em questão envolver matéria sujeita à sua jurisdição, ou seja, quando a matéria estiver vinculada à relação de trabalho.
A explícita determinação do comando constitucional não nos deixa dúvidas de que foi atribuída, a partir da reforma constitucional, jurisdição penal à Justiça Laboral. A própria natureza do habeas corpus evidencia que foi destinada esta competência ao Judiciário Trabalhista, senão vejamos.
Conforme a lição de Fernando da Costa Tourinho Filho o habeas corpus não é um recurso, mas
[...] nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V o art. 648, é uma verdadeira ação penal cautelar, pois visa impedir que o desenrolar moroso do processo, ou de outra qualquer providência que possa ser tomada, venha acarretar maior restrição ao status libertatis do paciente. Nas hipóteses dos incs. VI e VII, se houver sentença com o trânsito em julgado, funciona ele como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa extinguir uma situação jurídica. [...] E, dependendo da hipótese concreta, o habeas corpus, com fundamento no inc. I, poderá ter a natureza de ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo declaratória. (TOURINHO FILHO, 1994, pp. 443-444, sem grifos no original).
O próprio Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou no sentido de declarar o habeas corpus uma ação de natureza penal. No julgamento do Habeas Corpus n. 85.096-1/MG, do qual foi relator o Senhor Min. Sepúlveda Pertence, o Pretório Excelso assim se manifestou::
Habeas corpus contra decreto de prisão civil de Juiz do Trabalho: coação atribuída ao Tribunal Regional do Trabalho: coexistência de acórdãos diversos para o mesmo caso, emanados de tribunais de idêntica hierarquia (STJ e TST): validade do acórdão do STJ, no caso, dado que as impetrações foram julgadas antes da EC 45/04.
Até a edição da EC 45/04, firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, a competência para o seu julgamento “será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença”; e, por isso, quando se imputa coação a Juiz do Trabalho de 1º Grau, compete ao Tribunal Regional Federal o seu julgamento, dado que a Justiça do Trabalho não possui competência criminal (v.g., CC 6.979, 15.8.91, Velloso, RTJ 111/794; HC 68.687, 2ª T., 20.8.91, Velloso, DJ 4.10.91).
Não obstante a inegável natureza jurídica do habeas corpus ser a de ação penal, algumas vozes se levantam na tentativa de ver limitada a competência penal da Justiça Laboral somente para apreciar este remédio constitucional, excluindo-se desta maneira todas as demais ações de natureza penal.
Não acreditamos ser correto este posicionamento. Não parece lógico que uma vez atribuída a competência para o julgamento de tão importante ação como o habeas corpus, instrumento de cessação de qualquer ilegalidade contra o valor liberdade, seja negada à Justiça do Trabalho a competência para o julgamento de outras ações de natureza penal.
Por estas razões estamos com José Eduardo de Resende Chaves Júnior quando afirma que
[...] se todo o sistema de definição prévia e específica do direito penal decorre da finalidade de proteção do alto valor constitucional da liberdade física, não seria razoável que se estendesse, em caráter de exceção, a competência penal justamente para o instituto que decide de uma forma mais patente e manifesta a liberdade do ser humano, sonegando-a em procedimentos com menor grau de transcendência política. (CHAVES JÚNIOR, 2005, p. 228).
Deste modo, estando explícita a determinação constitucional de atribuir uma ação de natureza penal à Justiça do Trabalho, outra não pode ser a conclusão senão aquela que afirme estabelecida definitivamente a competência penal da Justiça Laboral para todas as causas de natureza penal que estiverem vinculadas à relação de trabalho.
05. OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À COMPETÊNCIA CRIMINAL TRABALHISTA
Não obstante a força das alegações aqui lançadas em defesa da competência criminal da Justiça Laboral, surgem argumentos contrários ao exercício desta competência. Inicialmente, levanta-se como óbice ao exercício da competência penal trabalhista o inciso VI do artigo 109, da Constituição Federal deste modo disposto:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[...]
VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;
Logo, tendo-se em vista este dispositivo, não se poderia atribuir a competência para a Justiça Laboral julgar os crimes contra a organização do trabalho, que constituem em sua grande maioria os delitos que se sujeitariam à apreciação pelo Judiciário Trabalhista.
Entretanto, estes delitos não são os únicos que estarão sob competência da Justiça do Trabalho, tampouco integralmente correta a interpretação que exclui completamente a apreciação destes delitos pela Justiça Laboral.
Como veremos em tópico destinado especificamente a delimitar quais delitos estariam sujeitos à competência criminal da Justiça do Trabalho, verificaremos que além dos delitos contra a organização do trabalho, estarão sujeitos a julgamento pela Justiça do Trabalho uma gama de crimes, desde que relacionados com a relação de trabalho.
Dentre os crimes podemos citar, a título de exemplo, as fraudes trabalhistas capituladas como estelionato, as práticas discriminatórias descritas pela Lei n. 7.716/89, a lesão corporal e homicídio de natureza culposa decorrentes de acidente de trabalho, entre outras diversas condutas.
De outro modo, a interpretação dada ao dispositivo que destina à Justiça Federal a competência para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho não está completamente correta. Precisamos interpretá-lo de forma a verificar qual a sua extensão na prática, pelo que precisamos nos valer da interpretação jurisprudencial dada ao mesmo.
Vejamos o que dispõe a Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, precursor o atual Superior Tribunal de Justiça:
Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente.
Este pensamento foi igualmente adotado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 156.527-6/PA, do qual foi relator o Min. Ilmar Galvão, que deste modo se posicionou:
Em face do mencionado texto [art. 109, VI, primeira parte, da CF/88], são da competência da Justiça Federal tão-somente os crimes que ofendem o sistema de órgãos e institutos destinados a preservar, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores.
Ora, uma vez interpretado o referido dispositivo de forma a conferir competência à Justiça Federal para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho somente quando se verificar ofensa de natureza coletiva a este bem jurídico, resta à Justiça do Trabalho, diante da interpretação dada ao artigo 114 e a conseqüente atribuição de jurisdição penal a este ramo do Poder Judiciário, a competência para apreciar estes crimes quando se verificar que a lesão ocorreu na esfera individual.
Outros argumentos vêm sendo lançados contra a competência penal da Justiça do Trabalho. Um deles já aqui foi mencionado linhas atrás: a ausência de atribuição expressa de competência penal à Justiça do Trabalho.
Conforme já nos posicionamos, não há necessidade desta competência vir expressa no texto constitucional. Não existe qualquer regra neste sentido. A distribuição desta competência e de qualquer outra, ao contrário, deve obedecer a critérios de racionalidade e economia processual, buscando sempre a eficácia na prestação jurisdicional, sob pena de que o processo sofra limitações em seus objetivos de pacificar os conflitos levados ao Poder Judiciário enquanto parcela do poder estatal.
De outro modo, como já afirmamos, a Justiça do Trabalho é o órgão, diante da leitura do inciso I, do artigo 114 da Constituição Federal, adequado e legitimado para apreciar as ações penais que lhe forem atribuídas. Logo, mesmo não havendo competência expressa pelo texto constitucional, muito embora discordemos desta posição ante a interpretação aqui dada aos incisos I, II e IV, o Judiciário Trabalhista se mostra competente para julgar as ações penais que lhe forem destinadas.
Um outro argumento que merece ser rebatido é o que atribui aos profissionais que atuam na área trabalhista desconhecimento da matéria criminal.
A respeito deste argumento, assim se pronunciou o Procurador do Trabalho Marcelo José Ferlin D’Ambroso:
Há um sofisma nesta alegação porque traz, em seu bojo, uma injustificada capitis deminutio e discriminação do operador de direito trabalhista: se um bacharel em direito pode prestar concurso e demonstrar sua capacidade para se tornar detentor de atribuição penal, seja como juiz de direito, juiz federal, militar etc., no entanto um juiz do trabalho, que já demonstrou sua capacidade em concurso público, não teria condições de se preparar para a jurisdição criminal? Convenhamos... (D’AMBROSO, 2006, p. 185).
Logo, não há com base neste argumento razão em tentar imputar falta de competência (esta no sentido de capacidade) aos profissionais que atuam nesta área.
Deste modo e por todas as razões acima expostas, não subsistem os argumentos que tentam negar competência penal à Justiça do Trabalho, que se mostra, em nosso pensar, plenamente capacitada em solucionar satisfatoriamente as demandas penais que lhe forem atribuídas.
06. O CRITÉRIO PARA DELIMITAÇÃO DOS CRIMES SUJEITOS À JURISDIÇÃO TRABALHISTA
Uma vez demonstrada por todas as razões a competência da Justiça do Trabalho para a apreciação das causas em que se verificar uma relação de trabalho, inclusive as de natureza penal, objeto deste trabalho, resta definir quais crimes estariam sujeitos a julgamento por este ramo do Poder Judiciário.
Surgem para responder esta dúvida duas correntes entre os doutrinadores. A primeira busca restringir a competência da Justiça Trabalhista somente para a apreciação dos delitos que evidenciem na elementar de sua definição típica os traços de subordinação econômica presentes em qualquer relação de trabalho.
Na defesa deste pensamento, a lição de José Eduardo de Resende Chaves Júnior:
A tese da assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho não significa, contudo, que todo delito criminal oriundo da relação de trabalho seja da sua competência. [...]
Se levado a extremo a tese da competência objetiva, estaria inserida na esfera trabalhista, inclusive, a ação penal para julgamento de homicídio praticado pelo empregado contra o patrão, decorrente de desentendimento na execução dos meios de trabalho. Todavia, a prevalecer tal entendimento, a finalidade da especialização de tal ramo do Judiciário perderia sentido e adequação.
A saída para esse aparente dilema é a concepção de que a competência penal e não penal (ou econômica) da Justiça do Trabalho se guia pela teleologia da descompensação jurídica da relação de poder e sujeição que existe de fato na prestação de trabalho sob dependência e subordinação econômicas. (CHAVES JÚNIOR, 2005, p. 231)
E conclui o referido autor a sua tese:
Mais tecnicamente, fundados na lição de Damasio de Jesus, podermos afirmar que a competência penal da Justiça do Trabalho se limita aos casos em que a existência da relação de trabalho, sob subordinação econômica, constitui elementar do fato típico e não mera circunstância do crime. (CHAVES JÚNIOR, 2005, p. 232, grifos no original)
Deste modo, estariam abarcados pela competência penal da Justiça Laboral, por exemplo, os crimes contra a organização do trabalho de repercussão individual, tal qual já mencionado em conformidade com a Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, o crime de assédio sexual (artigo 216-A do Código Penal), o crime de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal), por ser a subordinação da relação de trabalho essencial na configuração de suas definições típicas.
Tal posicionamento parece também ser seguido por Guilherme Guimarães Feliciano quando, em nota de rodapé, refere-se a maior abrangência da competência penal da Justiça especializada para apreciar, além dos crimes contra a organização do trabalho,
[...] outros delitos, em cuja configuração elementar esteja a relação de emprego ou seu objeto fenomenológico (prestação de trabalho sob subordinação). Tal é o caso, p. ex., do crime de plágio ou redução à condição análoga a de escravo (artigo 149 do Código Penal) e, bem assim, do crime de assédio sexual (artigo 216-A do Código Penal), exceto na hipótese de ascendência inerente ao cargo ou função estatutários (diante dos efeitos reflexos da liminar deferida pelo Min. Nelson Jobim nos autos da ADIn n. 3395/2005, rel. Min. Cezar Peluso – ajuizada pela AJUFE). (FELICIANO, 2006, p. 8)
A segunda linha de pensamento repele a limitação imposta pelos seguidores da primeira tese. Ao contrário desta, que firma seu posicionamento na relação indissociável da Justiça do Trabalho com o conflito capital-trabalho e na fixação de sua competência para as ações em que se vislumbram na relação de trabalho a existência deste conflito, sob pena de descaracterização da Justiça Laboral como Justiça especializada, a segunda corrente interpreta o artigo 114 da Constituição Federal na amplitude de sua disposição textual.
O texto constitucional ao dispor, de forma expressa, que pertencem à Justiça do Trabalho todas as ações em que se verificar uma relação de trabalho, não limita sua competência para apreciação de certos tipos de ações. Uma vez violado o preceito legal de natureza penal no centro de uma relação de trabalho, passa a existir a ação penal correspondente de competência da Justiça Laboral.
Marcelo José Ferlin D`Ambroso, em percuciente explanação, deste modo se posiciona:
Começa a já surgir teses pregando que o marco de competência seja fixado em prol da Justiça especializada sempre que a “elementar do tipo” invocar a relação de trabalho. Assim, naturalmente os crimes contra a organização do trabalho, o art. 149 do CP, o art. 297, § 3º e 4º, do CP, a contravenção penal do art. 19, § 2º, da Lei n. 8.213/91, estariam na órbita da Justiça laboral.
Porém, o critério não é válido, porquanto o estelionato resultante de fraude ao seguro-desemprego e ao FGTS (art. 171, caput, do CP), o crime de periclitação à vida ou à saúde nos casos de exposição do trabalhador a risco (art. 132, caput, do CP), a contravenção penal de retenção indevida de CTPS (art. 3º da Lei n. 5.553/68), as discriminações raciais, religiosas, de orientação sexual praticadas na relação de trabalho (Lei n. 7.716/89), e ainda os crimes contra as pessoas portadoras de deficiência (Lei n. 7.853/89), pelo tipo não conter qualquer menção à relação de trabalho ou à direito trabalhista, fugiriam do alcance da Justiça laboral. De idêntica forma, ficariam fora da jurisdição penal trabalhista os crimes de admissão irregular de servidor (art. 1º, XII, do Decreto-lei 201/67), de lesão corporal culposa (art. 129, § 6º, do CP) e homicídio culposo em acidente do trabalho (art. 121, § 3º, do CP), falsidade ideológica (em recibos em branco, controles paralelos de jornada – art. 299 do CP), outros crimes de discriminação no emprego das Leis n. 9.099/95, Lei n. 10.741/03 (trabalho de mulher, idosos) etc.
O critério científico, pois, de fixação da competência criminal trabalhista, há de ser ex ratione materiae, na consonância do art. 114 e seus incisos: se da relação de trabalho (aí compreendidas as relações sindicais e as resultantes do exercício do direito de greve) decorrer uma conduta típica, antijurídica e culpável, não importando o tipo penal envolvido, a ação penal que nasce para o Ministério Público (do Trabalho) é da alçada da Justiça do Trabalho. (D’AMBROSO, 2006, p. 194)
Outro não é entendimento de João Humberto Cesário:
Com efeito, excetuadas as condutas criminais de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho que estejam tipificadas nos artigo 197 e seguintes do CP, todos os demais ilícitos de cunho penal-trabalhista deverão ser doravante processados e julgados perante a Justiça do Trabalho. (CESÁRIO, 2006, p. 21)
Pensamos que além da exclusão dos delitos contra a organização do trabalho de repercussão coletiva da competência penal da Justiça Laboral, como mencionado pelo autor supra citado, também deve ser excluído a homicídio doloso decorrente da relação de trabalho, em função da competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Esta interpretação não ofende de forma alguma a origem histórica da Justiça do Trabalho enquanto órgão do Poder Judiciário relacionado ao conflito capital-trabalho e a necessária vinculação da natureza deste conflito ao conceito de relação de trabalho. Ao contrário, pensamos que podem coexistir a noção de relação de trabalho a partir da nova “roupagem” do conflito capital-trabalho e uma interpretação ampla e eficaz do inciso I do artigo 114 da Carta Magna.
Acreditamos que a manutenção da interpretação histórica é importante para a percepção da evolução institucional e da função originalmente destinada à instituição. Entretanto, a interpretação do dispositivo constitucional deve igualmente levar em consideração que a nova competência destinada à Justiça do Trabalho deve ser exercida em sua máxima amplitude, sem limitações não encontradas no próprio texto.
Logo, concluímos que a Justiça do Trabalho, tal qual desenhado pelo texto constitucional, é competente para apreciar todas as ações penais que decorrerem da relação de trabalho excetuadas, como acima mencionado, os delitos contra a organização do trabalho de repercussão coletiva (de competência da Justiça Federal) e os crimes dolosos contra a vida (de competência do Tribunal do Júri).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESÁRIO, João Humberto. A Emenda Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça do Trabalho: uma polêmica que já não pode ser ignorada. Revista Decisório Trabalhista, Curitiba, ano XIII, n. 140, p. 7-22, 2006.
CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a Competência Penal da Justiça do Trabalho. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria Geral do Processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
D`AMBROSO, Marcelo José Ferlin. Competência criminal da Justiça do Trabalho e legitimidade do Ministério Público do Trabalho em matéria penal: elementos para reflexão. Revista LTr, São Paulo, ano 70, n. 02, p. 180-195, 2006.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Da competência penal na Justiça do Trabalho. Disponível em: <http://www.anamatra.org.br>. Acesso em: 26 jul. 2006.
NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. 5ª ed. Vol. VII: arts. 646 a 795. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
SILVA, Antônio Álvares da. Competência penal trabalhista. São Paulo: LTr, 2006.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Justiça do Trabalho: A Justiça do trabalhador?. In: COUTINHO, G.F. (Coor.); FAVA, M.N. (Coor.). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 16ª ed. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 1994.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe; Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL/LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENESES, Rodrigo Gonçalves. A competência criminal da Justiça do Trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 out 2010, 09:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21734/a-competencia-criminal-da-justica-do-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Maria D'Ajuda Pereira dos Santos
Por: Amanda Suellen de Oliveira
Precisa estar logado para fazer comentários.