O presente artigo, que tem como objeto de estudo à análise de uma problemática comum e recorrente no contexto social hodierno, qual seja, os conflitos oriundos das relações entre homem e mulher. Nesse sentido, sob a égide do olhar antropológico, tentar-se-á descobrir a lógica que norteia tais relações, objetivando, assim, explicar a violência de gênero.
A priori, buscar-se-á explicar o significado de gênero, bem como será observada a evolução histórica de tal conceito. Em seguida, será objeto de análise o fenômeno social da violência. Ademais, será analisada a Lei Maria da Penha, e por fim, à título de conclusão, serão abordados os aspectos culturais e sociais envolvidos no fenômeno ora estudado.
Diversos estudos têm demonstrado que a violência contra as mulheres é mais intensa e danosa do que aquelas das quais os homens são vítimas, o que pode ser explicado a partir da análise dos aspectos culturais formadores da consciência coletiva.
O gênero é a construção psicossocial do masculino e do feminino. Nesse sentido, Heleieth I. B. Saffioti reuniu diversos ensinamentos, para explicar as diferenças de gêneros:
“gênero pode ser concebido em várias instâncias: como aparelho semiótico (LAURETIS, 1987); como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de característicos e potencialidades (FLAX, 1987)”
O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. Verifica-se que a hierarquia é apenas presumida, e decorre da primazia masculina no passado remoto, transmitida culturalmente com os resquícios de patriarcalismo.
Na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e de morte sobre sua esposa e seus filhos. Hodiernamente, em que pese não mais ter o homem tal poder, são freqüentes os casos em que homens matam suas companheiras, por motivos diversos, dentre os quais predominou, por longo tempo, o da livre defesa da honra masculina, conforme vê-se na obra “A paixão no banco dos réus – casos passionais célebres: de Pontes de Miranda a Pimenta Neves” de autoria da Dr.ª Luiza Nagib Eluf.
Na sobredita obra, a autora aborda o tema da violência de gênero sob uma perspectiva criminológica e dogmática, analisando desde o que leva alguém a cometer um “homicídio passional”, bem como explicando o crime sob o ponto de vista jurídico e psicológico, concluindo com o entendimento de que é totalmente descabida a tese defensiva da “legítima defesa da honra”, tese muito recorrente como justificativa para tal violência de gênero.
O fenômeno da violência, na modalidade ora estudada, pode ser explicada como uma questão cultural que se situa no incentivo da sociedade para que os homens exerçam sua força de dominação e potência contra as mulheres, sendo essas dotadas de uma virilidade sensível.
Dessa forma, as violências física, sexual e moral não ocorrem isoladamente, visto que estão sempre relacionadas à violência emocional.
Linda Gordon, apud Heleieth I. B. Saffioti, afirma que a violência não é expressão unilateral do temperamento violento, ela origina-se conjuntamente no seio familiar, ou seja, é formada por elementos que emanam do própio pensamento social.
É fato que a violência de gênero, como fenômeno social, encontra-se presente em todas as classes e “tipos” de cultura. Nesse ponto, faz-se mister destacar o conceito de cultura, assentado por Edward Tylor apud Roque de Barros, in vebis: “[...] todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.”
A história da humanidade registra poucos casos de esposas ou companheiras que praticaram violência contra seus cônjuges ou companheiros. Essa conduta é tipicamente masculina. A violência de gênero costuma ser uma reação daquele que se sente “possuidor” da vítima. Esse sentimento de posse, por sua vez, decorre não apenas do relacionamento sexual, mas também do fator econômico. O homem, geralmente, sustenta a mulher, o que lhe dá a sensação de tê-la comprado. Por isso, quando se vê contrariado, repelido ou traído, acha-se no direito de repreendê-la com violência.
A violência de gênero pode ser observada como uma problemática que, necessariamente, abrange questões ligadas à igualdade entre sexos. É, pois, um tema com elevado grau de complexidade, tendo em vista que é fortemente marcada por uma elevada carga ideológica.
Como é inevitável quando se trata da abordagem do ser humano refletir a respeito do indivíduo, da família, do sexo, do gênero, da isonomia, é indagação ontológica e histórica, tarefa que se impõe, sobretudo, em tempos de transformação da sociedade e de crise de valores.
A violência decorrente da diversidade de gênero encontra-se inserida em um contexto social marcado por um pensamento que enaltece as desigualdades entre os sexos. Nesse sentido, pode-se dizer que tal pensamento, fundado na desigualdade de gêneros e na inferioridade feminina, ensejou a inovação legislativa para proteger essa parte da população vítima da violência de gênero.
A biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, em 1983, foi vítima de um tiro nas costas que a deixou paraplégica, aos 38 anos de idade. O autor do disparo, seu marido e professor universitário, Marco Antônio Heredia Viveros, foi condenado e preso em 28 de outubro de 2002, mas apenas cumpriu dois anos de prisão.
Eis que surge no ordenamento jurídico brasileiro, em 7 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi, então, batizada de Lei Maria da Penha em homenagem a uma vítima da violência doméstica.
A sobredita Lei criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme prevê art. 226, § 8º, da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, dispondo inclusive sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; além de estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. As Delegacias de Defesa da Mulher foram criadas para dar maior sustentação às reclamações da população feminina contra as agressões sofridas, na maioria das vezes, no âmbito doméstico.
Dessa forma, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Pode, então, a violência doméstica ser compreendida como uma espécie da violência de gênero.
Da análise dos dados informativos sobre a violência de gênero, pode-se dizer que é pequeno o número de casos em que a mulher figura no pólo ativo do conflito, fato que pode ser explicado pela herança cultural, desenvolvida através de muitas gerações. Nesse sentido, as mulheres adquiriram características de fragilidade, sensibilidade, dependência e afetividade, enquanto os homens herdaram como características determinantes a virilidade, a racionalidade e a agressividade, razão pela qual as mulheres sentem-se menos poderosas socialmente e menos proprietárias de seus parceiros.
Nesse sentido, vários são os aspectos envolvidos no problema da violência de gênero, quais sejam, ideológicos, culturais, sociais, religiosos, etc.
Quanto ao aspecto ideológico, observe-se que as mulheres diante da consolidação de um pensamento patriarcal, foram, ao longo do tempo, e ainda são, em algumas sociedades, educadas para “compreender” o universo masculino, e se submeterem à força de uma ideologia machista, a qual, por sua vez, lastreia-se na força física masculina.
No âmbito cultural pode-se dizer que a violência de gênero é fruto de hábitos e costumes que estão presentes na consciência coletiva, sendo, portanto, conseqüência da permanência de uma estrutura de poder patriarcal que ainda predomina no tempo hodierno. Outrossim, na sociedade atual ainda existem “cidadãos” que não conhecem seus direitos fundamentais, o que faz com que muitas pessoas deixem de reclamar judicialmente o fato de serem vítimas de violência de gênero, permitindo, assim, a continuidade desse problema social.
Sobre o aspecto social, é possível dizer que a estruturação dos papéis sociais é feita com base na idéia de hierarquia entre gêneros, que ainda paira em muitas sociedades, seja nas atividades privadas ou íntimas da seara familiar, seja nas atividades públicas, no espaço do trabalho, do lazer coletivo, “justificando” a dominação masculina sobre as mulheres, sendo a violência um meio de manutenção de tal relação de dominação.
Outro aspecto que merece destaque no estudo da violência de gênero é a religião. Observe-se que muitas religiões pregam a superioridade do homem sobre a mulher, o que faz com que alguns homens sintam-se no direito de exercer o seu “domínio” sobre a mulher, mesmo que para tanto seja necessário o uso da violência.
Assim, pode extrair-se de tudo que foi exposto, que a violência de gênero representa um retrocesso social, visto que, uma sociedade marcada por altos índices dessa modalidade de violência aproxima-se mais dos tempos primevos e distancia-se do futuro, onde as diferenças entre homens e mulheres estarão restritas as características biológicas e anatômicas, não havendo assim submissão de um gênero ao outro.
ELUF, Luíza Nagib. A paixão no banco dos réus. Editora Saraiva, 2002.
GUERREIRO, Silas (org.). Antropos e Psique o outro e sua subjetividade. São Paulo: Olho d’Água, 2001.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 20 ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
Acadêmica do Curso de Direito e Técnica do Ministério Público de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Glaucia Fontes de. Violência de gênero e a lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2010, 09:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21763/violencia-de-genero-e-a-lei-maria-da-penha. Acesso em: 23 dez 2024.
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