“O presente artigo pretende analisar, em breves linhas, a evolução hermenêutica empreendida na jurisprudência brasileira acerca dos destinatários da proteção pelo bem de família, comparando a amplitude desta proteção em diferentes linhas interpretativas.”
A LEI 8.009/90 E OS DESTINATÁRIOS DA PROTEÇÃO PELO BEM DE FAMÍLIA
A família ocupa um lugar de destaque no ordenamento jurídico, haja vista ser uma instituição essencial no seio da sociedade, na qual o indivíduo aprende as primeiras noções de ética, cidadania e respeito ao próximo.
A Constituição Federal estabelece, em seu art. 226, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Dentro dessa perspectiva da importância da família e do dever do Estado de protegê-la, foi criado o instituto do bem de família. Com inspiração no homestead americano, este instituto visa a proteger o imóvel que serve como moradia para a família e para exercer tal função, guarda-o com cláusula de impenhorabilidade, embora relativa.
Maria Helena Diniz define o bem de família, com ênfase na sua finalidade, como "um instituto originário dos Estados Unidos, que tem por escopo assegurar um lar à família ou meios para o seu sustento, pondo-a ao abrigo de penhoras por débitos posteriores à instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas condominiais”.1
Carlos Roberto Gonçalves, citando Caio Mário da Silva Pereira, diz que a instituição do bem de família “é uma forma de afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio”. 2
Definido o que seja bem de família, há que se buscar na hermenêutica a interpretação necessária para compreender quais são os destinatários desse instituto protetivo.
Preceitua que o art. 1º da Lei 8.009/90:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
A interpretação literal, nesse caso, não se mostra adequada, pois o artigo citado enumera como destinatários o casal e a entidade familiar. A primeira expressão claramente denota os cônjuges, marido e mulher casados sob a lei civil. Contudo, a segunda expressão, entidade familiar, possui um caráter mais subjetivo, de delimitação mais complexa.
Também não se vê a resolução da questão se feita a análise através da interpretação histórico-evolutiva, técnica pela qual o intérprete deve buscar o sentido da lei, analisando-a de acordo com a evolução do contexto social. O conceito de família tem se transformado ao longo do tempo e tem amplitude e sentido diferentes nas mais variadas culturas, de forma que não há consenso sobre a sua caracterização.
Pela interpretação sistemática, é possível descobrir algumas alternativas para o deslinde da questão proposta. Tal método consiste em comparar o dispositivo sujeito à interpretação, com outros do mesmo ordenamento ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto.
Deste modo, ao interpretar a Lei 8.009/90 conforme a Constituição, encontra-se novamente seu art. 226, mais precisamente os §§3º e 4º:
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
De acordo com os dispositivos constitucionais supra, é entidade familiar a união estável entre homem e mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental. Assim, pela interpretação sistemática, tem-se como destinatários a família formada pelo casamento – cônjuges e filhos, se houver –, a união estável e a família monoparental.
Então, surge a pergunta: A pessoa solteira, viúva, separada ou divorciada que vive sozinha em seu imóvel não tem direito à moradia e pode ver penhorado o imóvel em que reside, já que este não seria “bem de família”?
Com a pergunta acima exposta, vislumbra-se que a técnica de interpretação sistemática, se utilizada isoladamente, não responde satisfatoriamente ao problema apresentado.
Dessa forma, aliada à interpretação sistemática, é de grande valia a utilização da interpretação teleológica, que é aquela que tem por objeto investigar o fim colimado pela lei como elemento fundamental para descobrir o sentido e o alcance da mesma.
A norma é acompanhada de um conjunto de providências que são necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais. A melhor interpretação será a que melhor corresponda a estas finalidades e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual a norma foi regida.
Esclarece Carlos Roberto Gonçalves que, “embora já se tenha decidido que a impenhorabilidade não alcança o imóvel do devedor solteiro, que reside solitário, a jurisprudência tomou outro rumo, passando a admiti-la mesmo quando o ocupante do imóvel reside sozinho”.3
Foi nesse sentindo, utilizando da interpretação teleológica, que decidiu o Superior Tribunal de Justiça que a Lei 8.009/90 destina-se a proteger a pessoa, independente de ser casada, viúva, separada ou divorciada, pois o sentido social da norma busca garantir a moradia aos indivíduos que vivem no seio de uma entidade familiar bem como à pessoa que reside só, como se pode constatar no julgado abaixo transcrito:
"PROCESSUAL – EXECUÇÃO - IMPENHORABILIDADE – IMÓVEL - RESIDÊNCIA – DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO – LEI 8.009/90.
- A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão.
- É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário."(EREsp 182.223-SP, Corte Especial, DJ de 07/04/2003).4
Através da interpretação teleológica, portanto, foi possível encontrar os destinatários a que se refere a Lei 8.009/90. Todos os residentes, sujeitos do bem de família, independentemente de estado civil, são, pois, beneficiários dessa impossibilidade de apreensão judicial. Têm eles, em seu favor, esse direito ou poder de não ver constrita a casa onde moram.
Tal interpretação é a que melhor se coaduna com o direito à moradia, erigido pela Carta Magna ao status de direito social fundamental, bem como com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil.
NOTAS:
1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 5º vol. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. pág. 192
2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume VI: direito de família. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. pág. 509
3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume VI: direito de família. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. pág. 519
4 REsp 450.989/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 13.04.2004, DJ 07.06.2004 p. 217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Fontes Bibliográficas
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume VI: direito de família. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 5º vol. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Bem de família . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 369, 11 jul. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5428>. Acesso em: 20 jun. 2008.
Fontes legislativas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Diário Oficial da República Federativa do Brasil
Graduada pela Universidade Federal de Sergipe; pós-graduanda em Direito Público pela UNIDERP/ Rede de Ensino LFG. Analista do Ministério Público de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Eva de Almeida Ribeiro Vicente. A Lei 8.009/90 e os destinatários da proteção pelo bem de família Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 out 2010, 08:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21779/a-lei-8-009-90-e-os-destinatarios-da-protecao-pelo-bem-de-familia. Acesso em: 22 dez 2024.
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