“Ninguém mais do que eu está sempre disposto a reformar, a abandonar mesmo, como imprestáveis, as opiniões mais queridas, quando recair sobre elas qualquer suspeita de erro. Porém, quero ver as razões que me convençam.” (Tobias Barreto)
I – INTRODUÇÃO.
Não obstante o Direito, como os demais instrumentos de controle social advindos de normas de comportamento, tenha surgido com o próprio homem, com o convívio coletivo e as suas correlatas relações sociais, consoante a parêmia “ubi societates, ibi jus”, a ciência jurídica, mormente na seara do Direito Penal, envolta em um sistema orgânico de princípios penais e compreendido por um pensamento crítico e humanístico, efetivamente surgiu no Século das Luzes.
Antes dessa período de renascimento cultural e científico, as transgressões às regras de conduta que lesionavam a harmonia social ou eram encaradas sob um caráter místico e religioso, ou se encontravam sob a batuta do poder dos Príncipes, constituindo-se uma violação a esse poder e, em ambas as situações, a sanção aplicada ao infrator revestia-se de uma aterrorizante cerimônia punitiva, marcada pelo suplício, pela violência corporal, pela humilhação, enfim, pelo total desrespeito à condição humana e de ser social do ‘criminoso’.
Com a natural evolução das relações humanas e com os primeiros gritos de protestos iluministas, os quais ainda ecoam com indisfarçável atualidade, a exemplo da imortal contribuição de CESARE BONESANA, o Marquês de Beccaria[1], o Direito Penal passou a apresentar uma feição tutelar, fragmentária e de intervenção mínima, haja vista que coube a esse ramo do Direito proteger os bens jurídicos fundamentais da sociedade e, ainda assim, não de forma absoluta, resguardando somente os bens considerados os mais relevantes, como a vida, a incolumidade física, a honra, etc, amparando-os contra as condutas lesivas de maior gravidade.
Em face, portanto, da tutela dos valores primordiais da convivência humana, restringiu-se a atuação do Direito Penal somente como “ultima ratio”, ou seja, quando os demais controles sociais e formais, estes últimos presentes nos outros ramos do Direito, v.g., o Direito Civil, o Administrativo, o Comercial, etc., tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer a devida tutela.
Nesse contexto, cumpre à norma jurídica atuar na proteção e na tutela de bens e interesses de acordo com o juízo de valor que os legisladores formulam sobre os fatos sociais. Com isso, para a proteção mais enérgica e eficaz desses valores, alguns dos ataques que lhe são lesivos tomam o aspecto de fatos penalmente ilícitos porque a conduta em que se materializam, pela forma com que atingem esses bens, atentam contra as condições vitais da sociedade.
Porém, como destaca EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI[2], “o Direito Penal se apresenta como um paradoxo – tutela a liberdade privando alguém da liberdade e garante bens jurídicos com a privação de bens jurídicos”. Portanto, a legitimidade da pena somente é alcançada quando esta é empregada como meio último de combate às condutas que ameaçam a defesa social. O poder de punir que tem o Estado, embora amplo, não é ilimitado, pois ele se prende e se vincula às fontes materiais do Direito Penal, e estas, por sua vez, prendem-se a vários princípios que o liga aos interesses superiores de justiça que deve nortear o direito positivo, em harmonia com as concepções sociais dominantes, restringindo e dando substância à vontade legislativa do Estado.
II – DOS PRINCIPAIS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO DIREITO PENAL.
Objetivando apresentar uma visão panorâmica do papel tutelar do Direito Penal não se pode descurar do exame de suas bases principiológicas.
Nesse contexto, realce-se o papel de destaque ocupado pelo Princípio da Legalidade ou Princípio da Reserva Legal, justamente por impor um controle ao poder punitivo estatal, confinando sua aplicação em limites que excluam toda arbitrariedade e excesso desse mesmo poder.
Esse princípio constitui a mais importante conquista de índole política, figurando como norma básica do Direito Penal Moderno. Pelo princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege”, alguém só pode ser punido se, anteriormente ao fato por ele praticado, existir lei que o considere como crime. Entabulado no art. 5o, XXXIX da Magna Carta de 1988 e no artigo 1o do Código Penal, propugna pela reserva absoluta à lei em sentido estrito para a definição dos crimes e cominação das sanções penais, afastando, com isso, a descrição penal vaga e indeterminada do preceito primário e da cominação de penas em margens elásticas.
Ademais, não se pode prescindir, na definição do papel tutelar do Direito Penal, das razões de ordem político-humanitárias, que encontram terreno fértil no Princípio da Intervenção Mínina, dada a severa ingerência estatal na vida privada decorrente da sua sanção, somente se inferindo a legitimidade dos tipos penais que descrevem condutas que atentam gravemente contra a segurança social. Por afetar bens jurídicos elementares, o Direito Penal não deve se ocupar de condutas que não tenham relevância social, sob pena de incorrer em ilegitimidade.
Tal princípio orienta e limita o poder incriminador do Estado, visto que se outras formas de sanção ou controle social revelarem-se suficientes para a tutela de um dado bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável, deixando-se às outras áreas, como o Direito Administrativo, Civil, etc. a respectiva tutela.
Resumindo-se, antes de se socorrer ao Direito Penal, deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social, dando ensejo aos legisladores contemporâneos a adotarem medidas de desjurisdicização, despenalização e descriminalização.
Nota-se também, nesta senda limitativa da atuação do Direito Penal, a importância do Princípio da Culpabilidade, porquanto o mesmo informa que não há crime sem culpabilidade, a qual é verificada não apenas diante da pura perpetuação do ato ilícito, como também pela observância dos diversos fatores que circunscrevem a prática delituosa. Propugna-se por um fundamento social e não apenas psicológico, devendo-se verificar não apenas o delito, como também aspectos relacionados à periculosidade do infrator, a reprovabilidade social da conduta realizada, entre outros aspectos, para a cominação penal.
Pontofinalizando esse relevante tópico, mister reconhecer que o delito, em todas as épocas e sociedades, sempre se revestiu do caráter de fato sócio-cultural, posto que empreendido por um homem, um ser social.
Por isso, sem sombra de dúvidas, a questão penal, mormente nos dias atuais, é um problema a ser resolvido não só pelos diversos setores institucionais do Controle Social, mas também por toda a sociedade. É mister uma participação ativa da comunidade no papel ressocializador.
Nesse diapasão, não se pode olvidar o Princípio da Humanidade, porquanto o mesmo vem condenar as sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados. Com isso, visa-se garantir a eficácia da sanção penal, utilizando-se de um método individualizador para que o condenado não sofra mais do que o prescrito em lei e possa exercer os direitos que não foram atingidos pela pena. Esse é alerta do saudoso Nelson Hungria[3]. Litteris:
O crime não é apenas uma abstrata noção jurídica, mas um fato do mundo sensível, e o criminoso não é um impessoal ‘modelo de fábrica’, mas um trecho flagrante da humanidade. A ciência que estuda e sistematiza o direito penal não pode fazer-se cega à realidade, sob pena de degradar-se em um formalismo vazio, numa platitude obsedante de mapa mural de geometria. Ao invés de livrar-se dos pináculos da dogmática, tem de vir para o chão do átrio, onde ecoa o rumor das ruas, o vozeio da multidão, o estrépito da vida, o fragor do mundo, o bramir da tragédia humana.
Por fim, conclui-se que nenhuma pena pode ter uma finalidade que atente contra a incolumidade da pessoa como ser social, muito pelo contrário, deve visar a recuperação e reinserção social do apenado.
III – MOVIMENTO DA LEI E DA ORDEM X MOVIMENTO RENOVADOR.
Tracejados os postulados principiológicos, merece também investigação as principais correntes de política criminal que animaram a produção legislativa nos últimos tempos, haja vista que cada qual encarava de maneira diversa o papel tutelar do Direito Penal.
Em um primeiro momento, diante da crise que a humanidade se debate, mormente pelo aumento da criminalidade, produzindo na população uma sensação de total insegurança, pontencializado pelos meios de comunicação de massa que passam a veicular a criminalidade e o criminoso como um “perigoso inimigo”, floresceu o Movimento da Lei e da Ordem.
Essa corrente adotou, em reposta aos caos social, uma política criminal extremista e de feição simbólica, promocional, excessivamente intervencionista e preventiva, com fundamento na infusão do medo na população e na sugestão de suposta garantia de tranqüilidade social. Sob os influxos dessa corrente doutrinária, o Direito Penal passou a descrever, indiscriminadamente, normas incriminadoras relacionadas a um sem número de setores da atividade humana, atribuindo-se-lhe a tarefa de disciplinar os conflitos sociais antes mesmo de serem regulamentados pelas disciplinas próprias das áreas, produzindo, desta forma, efeitos negativos, como a criação de normas cada vez mais severas, a definição de novos tipos penais, o agravamento das penas já cominadas, a supressão das garantias do acusado durante o processo e a acentuação da gravidade da execução das sanções, além de prescrever normas penais, nas quais os tipos passam a ser descritos com a inclusão de regras elásticas e genéricas, enfraquecendo os princípios da legalidade e da tipicidade.
Observa-se, deste modo, a incorporação na sociedade da falsa crença de que somente se reduz a criminalidade com a definição de novos tipos penais e o agravamento das sanções já cominadas, levando-se a produção de um conjunto de normas a granel, malfeitas, sem técnica, formando um emaranhado confuso e contraditório de incontestável repressão e, por conseguinte, a perda da finalidade precípua do Direito Penal e a atuação disforme do Direito Processual Penal.
Segundo os princípios adotados por essa corrente, a pena, principalmente a Privativa de Liberdade, considerada a panacéia das aflições e conflitos sociais, passa a ser exclusivamente castigo e retribuição, separando a sociedade em dois grupos: o primeiro, composto de pessoas de bem, merecedoras de proteção legal; o segundo, de homens maus, delinqüentes, aos quais se endereça toda a rudeza e severidade penal.
Porém, logo se constatou que o Movimento da Lei e da Ordem não oferecia uma resposta eficaz para o problema da criminalidade, haja vista a tão decantada falência do sistema prisional em quase todo o mundo, aliado à reconhecida incapacidade do Estado em tratar do crime e do criminoso.
É nesse contexto que surgiu o contraponto à corrente doutrinária anterior, representado pelo Movimento Renovador, o qual apresenta a concreta preocupação de vários setores da sociedade, notadamente dos mais renomados juristas, relacionados à problemática criminal, buscando descobrir e pôr em prática novas alternativas penais, investigando soluções ao problema social instaurado no âmbito penal com medidas legais (judiciais e extrajudiciais) inovadoras.
O Brasil, nos últimos tempos, vem seguindo o caminho sugerido pelo Movimento da Lei e da Ordem, destacando-se, nesse particular, a introdução do procedimento sumaríssimo, a transação e a suspensão do processo para as infrações penais de menor potencialidade ofensiva (Lei no 9.099/95), a institucionalização das penas alternativas com a reforma do Direito Penal (Leis nos 7.209/84 e 7.210/84), sua ampliação e novo disciplinamento (Lei no 9.714/98).
Tem-se procurado, ante a reconhecida falência da pena de prisão e do tratamento ressocializador dos presídios, soluções para reduzir a burocracia processual e, principal e acertadamente, promover reformas na legislação material, que é a verdadeira fomentadora da avalanche de fatos jurídicos que, ao final, constituem-se em objeto das ações penais. Mediante um inventário dos tipos penais vigentes e sua reavaliação com fulcro na razão teleológica do poder punitivo estatal, do tipo criminal e da sanção penal, admite-se-os somente nos casos em que a sanção penal, efetivamente, mereça receber o “status” de única medida capaz de produzir a justa reprimenda ao ato ilícito.
Destarte, o aludido movimento, em consonância com os princípios do Direito Penal Mínimo, vem promovendo medidas, pelas quais se reserva o encarceramento para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do meio social, além de encampar a desjurisdicização, descriminalização, despenalização e outras formas de “diversion”, demonstrando-se, desta feita, de grande importância por realmente garantir a prevenção social e promover a ressocialização do condenado, sem, no entanto, retirar-lhe o contato com a comunidade, do qual, aliás, continua a fazer parte como ser social que é e, melhor ainda, empreende a efetiva inserção desta mesma comunidade no processo de execução da sanção penal alternativa, v.g., a Pena de Prestação de Serviços à Comunidade, contribuindo decisivamente para a sua eficácia, devido a percepção da coletividade a respeito da posse de direitos inerentes à pessoa humana do condenado e de que o delito, como todo ilícito, não se constitui em uma “anormalidade” ou “doença”, mas sim, e infelizmente, um fato sócio-cultural e natural do qual nenhuma sociedade pode fugir.
IV – CONCLUSÃO.
À guisa de conclusão, verifica-se, em linhas gerais, que o problema criminal é antes de tudo um fenômeno sócio-cultural decorrente do convívio social, porquanto somente os comportamentos humanos que violam mais gravemente a tessitura dessa organização coletiva é que merecem a rechaça do Direito Penal, o qual não deve ser erigido à ilusória condição de ‘Salvador da Pátria’ ou panacéia de todos os males.
Destarte, fácil perceber que, na atualidade e consoante as mais modernas correntes filosóficas, o Papel Tutelar do Direito Penal ocupa um espectro muito restrito, devendo este somente sair da inação e atuar concretamente como ‘ultima ratio’, quando os demais ramos do direito não consigam realizar a tutela, e ainda assim, somente quando afetados mais gravemente os bens mais caros da sociedade.
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Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. Formado pela Universidade Tiradentes (UNIT) .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MáRCIO DOS SANTOS DóRIA, . Breves Reflexões sobre o Direito Penal e seu Papel Tutelar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2010, 08:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21827/breves-reflexoes-sobre-o-direito-penal-e-seu-papel-tutelar. Acesso em: 23 dez 2024.
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