Coautora: Denise Heuseler
É crescente no direito brasileiro contemporâneo o interesse acadêmico e legislativo em torno da função social no âmbito dos institutos jurídicos em geral, notadamente no direito privado, e especialmente no direito civil e ainda no direito empresarial.
Identificamos um fenômeno denominado como decodificação seguida da criação de microssistemas legislativos e, ainda, a constitucionalização de vários princípios e normas que passam a reger particularmente relações jurídicas onde há manifesto interesse do Estado em regular.
O surgimento da função social cuida de dar releitura a vários institutos tais como a propriedade, o negócio jurídico contratual e testamentário, a empresa, a família entre outros que outrora só conhecia uma versão individualista congruente ao liberalismo econômico.
Com o fracasso das teorias que pregavam a total liberdade e não interveniência do Estado em face da ordem econômica restou comprovada que as leis do mercado não conseguiam sozinhas afastar os abusos praticados nas atividades econômicas. Justificando assim a interferência do Estado e a participação ativa nas funções da vida social.
A presença estatal confere ao Direito uma nova função instrumental no objetivo de equilibrar as relações jurídicas, sociais e econômicas, levando-se à funcionalização de certos institutos jurídicos importantes.
Judith Martins-Costa define a funcionalização como “a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade ou a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto que concedido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, podendo atingir também a esfera dos direitos alheios”.
A funcionalização vem operar uma nova construção e arquitetura dos princípios institutos do direito privado objetivando dar equilíbrio as relações e interesses meramente individuais com as necessidades sociais e coletivas.
Tal equilíbrio é imperioso em razão da própria vida em sociedade. Pois como é sabido o ser humano é gregário e vive da colaboração como instrumento da conservação da espécie.
A relação entre a dimensão individual e a coletiva da pessoa humana força a relativização do individualismo tão marcante e peculiar das codificações oitocentistas.
O autêntico sentido da expressão função social deve corresponder à relevância da pessoa humana não apenas como uti singulus ou uti civis, mas sobretudo uti socius.
A doutrina da função social no Direito Civil emite matriz filosófica e sob a vertente histórica dando uma compreensão atual a respeito dos valores que devem informar e guiar os institutos do Direito Civil com queda da exacerbação ao individualismo.
Ao lado justificador da função social colocamos os direitos humanos e fundamentais relacionados com a moradia urbana com o trabalho e que propiciem ao atendimento do mínimo existencial da pessoa humana e de sua sobrevivência com dignidade.
Se visitarmos a etimologia para entendermos a natureza da função social, descobriremos que em latim, a palavra function é derivada do verbo fungor (functus sem, fungi), cujo significado é de cumprir algo, desempenhar dever ou tarefa, ou seja, cumprir uma finalidade, funcionalizar.
Segundo Fábio Konder Comparato a noção de função representa um poder, a saber, um poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo deve corresponder ao interesse coletivo no sentido de galgar perfeita harmonização com o interesse individual.
Quanto à natureza jurídica da função social, alguns doutrinadores tais como Antonio Junqueira de Azevedo preferem denominá-la de princípio, já outros se utilizam das expressões atributo, diretriz ou cláusula-geral (Judith Martins-Costa) e, outros doutrinadores ainda, denominam-na de doutrina da função social ou idéia-princípio (tal qual Giselda Hironaka e Tezein Júnior).
Seja qual for sua natureza jurídica, o relevante mesmo é poder compreender o seu real conteúdo e alcance e que se implementem de maneira efetiva os instrumentos aptos a cumprir sua finalidade.
Nesse sentido, é importante considerar que a tutela da propriedade, do contrato, da empresa e da família passa a ligar-se indissoluvelmente à noção de função social na perspectiva da legitimação do título dominial, contratual, empresaria e familiar.
O sistema regulatório da propriedade burguesa foi severamente alterado pela superveniência das duas grandes Guerras Mundiais. E, a Constituição de Weimar representa um marco ao início do reconhecimento de que a ordem econômica e social deveria receber tratamento diferenciado nas questões afetas à propriedade, ao contrato e à empresa.
No caso pátrio, nosso legislador primeiro episodicamente e, depois, de maneira sistemática, atua de forma a intervir na economia para reduzir as desigualdades sociais e econômicas e atender os interesses básicos da população excluída e marginalizada e, com isso, impõe sérias restrições as liberdade contratual e de utilização da propriedade.
Os movimentos sociais e filosóficos assim como a evolução econômica permitiram desmistificar a crença igualitária da Revolução Francesa. Assim substituem-se os objetivos da justiça retributiva pelos fins da justiça redistributiva, revelando acentuado intervencionismo estatal e dirigismo contratual.
Essa forte intervenção estatal explicita a necessidade de releitura dos institutos centrais do direito privado, na tentativa de soerguer o novo equilíbrio entre a esfera particular e a coletiva. Entre o privado e o público. E, com tal fito surgem diversas explicações para nova dimensão dos direitos subjetivos, notadamente do direito de propriedade, havendo até quem defendesse que a reconstrução do conceito de propriedade, como fez com que Stefano Rodotà.
Por outro lado, também surgiram os que negassem a própria existência dos direitos subjetivos enquanto categoria jurídica como fez Duguit.
Duguit rechaça a idéia de direito subjetivo e propõe sua substituição pela “noção realista de função social”.
Segundo Duguit o sistema individualista é precário e artificial. Isso porque se o direito subjetivo é um poder de querer (o poder de impor a todos o respeito de sua vontade), mas não se pode dizer qual a natureza dessa vontade, nem dizer qual vontade deve ser superior à outra, a noção de direito subjetivo é metafísica e não realista.
Desenvolve então uma concepção realista através da idéia de dever do homem porque cada um exerce uma função social, e não de direito, porque, para ele adotando as palavras de Augusto Comte, ninguém possui mais direito que de cumprir sempre com o seu dever.
Portanto, para Duguit, todo indivíduo teria uma função a desempenhar na sociedade e, por essa razão, teria de desenvolver da melhor maneira possível sua individualidade física, intelectual e moral.
Não haveria a opção de restar inativo, podendo o Estado intervir para impor o trabalho (não haveria a liberdade de não fazer nada).
Assim a partir da premissa de que a função social é um dever, Duguit consolidou o entendimento de que a propriedade não teria função social, porque seria a própria função social (“propriedade-função”).
No entanto, o excesso de sua teoria rendeu-lhe severas críticas do sistema jurídica contemporâneo, que rejeita a tese da inexistência de direitos subjetivos.
A noção de função social não pode ser confundida com o direito de propriedade porque aquela é a essência qualitativa deste.
Segundo a lição de Giselda Hironaka, in litteris:
“A propriedade não é uma função social, mas contém uma função social, de tal forma que o proprietário deve ser compelido a dar aos bens um destino social, além daquele que atende ao seu próprio interesse, na intenção de, harmonizando o uso da propriedade ao interesse coletivo, se chegar ao plano da justiça social”.
Mesmo assim com a função social da propriedade isso não significa que tenha abandonado o âmbito das relações privadas para passar a integrar o direito público.
Apenas ocorre um giro epistemológico, ou uma mutação axiológica, pois passamos considerar o tema a partir do bem (res) e de suas efetivas utilidades.
A professora Judith Martins-Costa considera que: “a função social exige a compreensão da propriedade privada já não como o verdadeiro monólito passível de dedução nos códigos oitocentistas, mas como uma pluralidade complexa de situações jurídicas reais que englobam concomitantemente um complexo de situações jurídicas subjetivas sobre as quais incidem escalonadamente, graus de publicismo e de privatismo consoante o bem o objeto da concreta situação jurídica.”
Pietro Perlingieri também entende a propriedade como situação subjetiva complexa e coloca em evidência a função social como essência qualitativa do direito e não como um elemento externo a este.
O conteúdo da função social assume um papel promocional, e a interpretação deve garantir e proteger os valores sobre os quais se funda o ordenamento, e principalmente a dignidade da pessoa humana.
No Brasil, embora as Constituições de 1934 e 1946 tenham trazido os primeiros contornos da doutrina da função social, apesar do silêncio da Constituição brasileira de 1937.
Foi com a Constituição de 1967 e com a Emenda Constitucional de 1969 que a função social foi consagrada de forma mais ampla e como condicionante de toda ordem econômica e social.
A Constituição de 1967 e a Emenda I de 1969 utilizaram a função social da propriedade pela primeira vez como princípio de fundamentação da ordem econômica e social, mas não elevaram tal princípio à categoria de garantia fundamental do cidadão como ocorre com o atual e vigente texto constitucional.
O tema “função social da propriedade” é realmente instigante embora boa parte dos juristas não tenha percebido as modificações empreendidas no curso do século XX.
A Constituição Federal brasileira de 1988 reconhecidamente introduziu profundas modificações no direito de propriedade, e, conseqüentemente nos parente mais próximo, a posse, além da empresa e a família.
Gustavo Tepedino ressalta que a função social da propriedade apresenta-se, portanto, no direito brasileiro, estranha ao Código Civil. Foi o advento do Código Civil Brasileiro de 2002 que a função social da propriedade é explicitamente referida no art. 1.228, primeiro parágrafo, mas de todo modo ainda se ressente de tratamento legislativo mais consentâneo com novos tempos e com os princípios e as regras constitucionais.
A Constituição de 1988 ainda promoveu a propriedade privada e sua função social incluindo-a no rol dos direitos e garantias fundamentais, além de inseri-los entre os alicerces da ordem econômica (arts. 5º, incisos XXII e XXIII, 170, inciso II e III).
A constituição cidadã como foi alcunhada representa um autêntico marco na constitucionalização da função social da propriedade devido à amplitude e ao detalhamento trazidos em suas normas.
A expressão função social deve ser tida como cláusula geral, permitindo ao jurista uma reflexão e construção de acordo com valores éticos, econômicos e sociais.
Não deve a função social ser entendida como o aniquilamento do direito de propriedade. Não se está a transformar a propriedade em um patrimônio coletivo, mas apenas a condicionar a sua utilização aos interesses sociais.
A função social é essência quallitativa e dinâmica do direito de propriedade, e projeta-se em todos os outros institutos do direito privado. Irradiando-se sobre os direitos reais, direitos obrigacionais, a empresa e no direito de empresa e as entidades familiares do Direito de Família e das sucessões...
A empresa por ser instituição relativamente recente no universo econômico configurando-se como legítima expressão da Revolução Industrial, é ainda mais impressionante a importância assumida na sociedade contemporânea.
A atuação mais marcante exercida pela empresa atualmente refere-se à sua influência na determinação do comportamento de outras instituições e grupos sociais que, há pouco tempo, permaneciam alheios ao alcance da órbita empresarial.
Historicamente, a atividade comercial se intensificou durante a Idade Média, quando se tornou crescente o número de feiras e de corporações nos burgos medievais.
A expansão destes e do comércio culminou com a profissionalização das atividades empreendidas pelos mais variados agentes comerciais, os quais tenderam a se agrupar na formação de uma ainda incipiente classe burguesa, contraposta à nobreza feudal.
Por peculiaridade, portanto, o direito comercial surge como direito corporativo, profissional, autônomo em relação ao direito civil e eminentemente consuetudinário, adotando-se a teoria subjetiva que considera comerciantes aqueles matriculados em uma corporação.
Aos poucos, o desenvolvimento do direito comercial como ramo jurídico consolidou instituições que se tornariam muito identificadores do mundo econômico atual, a exemplo das sociedades empresariais, através das quais se passou admitir a limitação da responsabilidade de seus integrantes.
Muito propícia ao progresso da mercancia, porém a concepção subjetivista dificultava muito a correspondência entre teoria e prática. Daí formou-se uma noção objetivista, fundada nos atos de comércio, e não focada na figura do comerciante que seria aquele que praticasse atos de comércio profissionalmente, com habitualidade, independentemente da filiação a alguma corporação de ofício, e essa posição objetiva acabou sendo assumida pelo Código Comercial Francês de 1807, bem como por posteriores codificações de outras nações, dentre as quais o Código Comercial brasileiro de 1850.
Nesse imperial diploma legal, contudo, em seu art. 4º, era possível observar o sólido resquício de subjetivismo, tese reforçada pelo fato de que esse documento legislativo não continha qualquer enumeração de atos de comércio, o que só foi feito pelo posterior Regulamento 737, em seu art. 19.
Em razão dessa indefinição inicial do legislador brasileiro sobre uma concepção segura de ato de comércio, inclusive, ganhou força entre os juristas brasileiros a denominada teoria da intermediação, segundo a qual somente seria comerciante aquele que praticasse atos com essa natureza.
Mesmo assim, a teoria objetiva persistiu no ordenamento brasileiro, a despeito de suas lacunas e das restrições que causava ao ramo do direito comercial, através da edição de leis esparsas que incluíam, expressamente, certas atividades domo comerciais.
Com o advento do Código Civil de 2002 que recepcionou a moderna teoria da empresa em moldes semelhantes ao do documento civilístico italiano de 1942, ampliando-se as fronteiras do direito comercial, doravante denominada de direito empresarial, ao menos no que tange à parte societária.
O cerne da teoria da empresa está centrada no ente economicamente organizado que se chama empresa a qual pode se dedicar tanto a atividades eminentemente comerciais como a atividades de prestações de serviços ou agricultura, antes não abrangidas pelo direito comercial.
Essa orientação pode ser depreendida no art. 966 do CC, que logra evitar a controvérsia acerca do conceito técnico-jurídico de empresa ao definir esta através da noção do empresário, consistente no perfil subjetivo do instituto em comento.
Salienta Fábio Ulhôa Coelho que: “O sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica, sintetizado pela teoria da empresa, acabou superando o francês, ou seja, as legislações de direito privado sobre matéria econômica a partir de meados do século XX, não têm mais dividido os empreendimentos em duas categorias (civis e comerciais), para submetê-los a regimes distintos.
A teoria dos atos de comércio vê-se então substituída pela da empresa, ainda que não se adotem, na lei ou na doutrina, exatamente estas designações para fazer referência, respectivamente, ao modelo francês de partição das atividades, ou ao italiano, de regime geral parcialmente excepcionado.
Assim percebe-se que a empresa corresponde a um conceito unitário e, não mais fragmentado como aquele dos atos de comércio, nos quais somente se enquadravam as atividades assim consideradas pelo legislador.
Desse modo, funcionalmente, a empresa consiste em toda atividade econômica em que haja a organização dos fatores de produção pelo seu empreendedor (empresário), de forma profissional e visando ao lucro, e dessa acepção são apenas excluídas certas atividades por determinação legislativa (a exemplo dos arts. 966 parágrafo único, 971, 984 do CC que retratam hipótese em que a atividade econômica não pode configurar uma empresa).
Em outras palavras, o conceito jurídico de empresa não é uma criação artificial do legislador, mas uma decorrência da própria realidade econômica.
Então se deu a passagem da figura do comerciante àquela do empresário sucedeu lentamente, restando despercebida por considerável parte da comunidade jurídica e dos legisladores no que tange à plenitude do tema.
Dessa maneira, visando superar tal visão ultrapassada do tema em consideração e permitir uma conciliação dos inúmeros interesses conflitantes que cercam a empresa, tornam-se fundamentais a estruturação de um parâmetro orientador do comportamento empresarial e o aprofundamento do princípio da função social da empresa e de suas esferas de atuação.
O conceito de função social se espalhou pelas ciências sociais progressivamente, inclusive pelo direito, no qual surgiu, inicialmente, à propriedade.
A difusão da noção de função social para o Direito teve dois notáveis vetores e propagadores, quais sejam, Karl Renner e León Duguit embora as visões de ambos fossem claramente distintas sobre o assunto.
Para o primeiro doutrinador, (influenciado pelo pensamento marxista) a função social de um instituto jurídico corresponderia à imagem da função econômica do mesmo instituto, e, uma vez alterado o domínio econômico, imediatamente se conformaria a imagem respectiva no direito a essa nova realidade.
Por tal raciocínio, ilustrativamente, bastaria à empresa, para exercer sua função social, ser um centro produtor de riquezas, congregando capital e trabalho, perfil este que se enquadra perfeitamente na tradicional concepção individualista e liberal que tem esse instituto enquanto mero gerador de dividendos para os empresários e os investidores.
De acordo com Duguit, a idéia de função social deveria substituir aquela de direito subjetivo, o qual é expressão da vontade humana individualista e não tinha preocupação com o exercício legítimo de institutos como a própria a propriedade.
Através da função social cria-se uma nova categorização dos bens, de acordo com sua destinação, dividindo-os entre bens de produção e de consumo.
Realmente só os primeiros são considerados fontes de riquezas da sociedade, deveriam ter seu emprego pautado pelo atendimento de uma função social, já que os segundos não poderiam, a priori, ser destinados à produção de riquezas, sendo, pelo contrário, apenas representações da identidade da pessoa que os detém.
A mais atualizada concepção de função social também se distingue das anteriores teorias por se estruturar no binômio direito subjetivo e dever jurídico, visto que, conforme bem elucida Fábio Konder Comparato:
“Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato de função, em suas múltiplas espécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente é sempre o interesse alheio e não o próprio do titular do poder. O desenvolvimento da atividade é, portanto, um dever, mais exatamente, um poder-dever; e isto, não no sentido negativo, de respeito a certos limites estabelecidos em lei para o exercício da atividade, mas na acepção positiva, de algo que deve ser feito ou cumprido.” (in Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais, São Paulo, no. 732 p.41, out. 1996).
A essa superposição de uma estrutura fundada na relação direito-dever sobre o titular desse poder jurídico em que se configura a função social, cabe realçar que alguns a equiparam à boa-fé objetiva no campo contratual, da qual decorrem, igualmente, direitos e deveres para os contratantes.
Porém, a relevância da boa-fé objetiva bem como o fenômeno da funcionalização da propriedade bem como dos demais institutos jurídicos traz objetivamente a valorização da dignidade da pessoa humana que é capaz de condicionar o exercício dos respectivos direitos aos interesses maiores da sociedade e, a grande questão que se coloca é justamente aquela de definir em que consistiriam esses interesses.
Como se assentou a idéia da Constituição como norma, dotada de plena eficácia horizontal e condicionadora de todo ordenamento jurídico, posto que seu compromisso com a unidade e segurança do sistema demanda que a definição de tais interesses maiores da sociedade deva corresponder às melhores escolhas democráticas do legislador constituinte...
Assim a existência da função social da empresa não seria mera conseqüência da associação entre o poder de controle empresarial, na direção dos bens incorporados a uma exploração por uma empresa, e a função social da propriedade em si.
Assim o fenômeno da funcionalização seria estendido a todos os institutos jurídicos, considerados em si mesmos e dentro de suas potencialidades.
Portanto, a inobservância da função social implicaria nas hipóteses de desvio no exercício do direito concernente, recaindo-se em uma das modalidades de abuso de direito como bem preleciona certa doutrina.
Por isso, a realização da empresa deve se ater ao princípio da livre iniciativa, aos demais parâmetros constitucionais que regem a atividade econômica, quando só então merecerá a devida tutela.
Analisando assim o art. 170 da Constituição Federal em seu caput e incisos, é evidente que os princípios da propriedade privada e da função social são propositalmente repetidos, tendo em vista que já integravam o rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, inciso XXII e XXIII).
De forma que se percebe que é adotado o sistema econômico da iniciativa privada, que pressupõe a concessão de significativa liberdade aos indivíduos na consecução de seus interesses particulares, através dos recursos que cada um possui, mas condicionada essa mesma liberdade que envolve a empresa, ao asseguramento de uma existência digna a todos e a observância da justiça social.
A iniciativa econômica privada é amplamente condicionada pela constituição. Se ela se insere na atuação empresarial, a esta se subordina ao princípio da função social, para realizar ao mesmo tempo o desenvolvimento nacional, assegurada a existência digna de todos, conforme ditames da justiça social, bem se vê que a liberdade de iniciativa só se legitima quando voltada à efetiva consecução desses fundamentos, fins e valores de ordem econômica.
Essas considerações são ainda importantes para compreensão do princípio da necessidade que informa a participação do Estado brasileiro na economia (art. 173), pois a preferência da empresa privada cede sempre à atuação do Poder Público, quando não cumpre a função social que a Constituição impõe.
Portanto temos no princípio da livre concorrência o valor instrumental para o cumprimento de várias finalidades da área econômica, como a concentração econômica abusiva, contrária aos interesses dos consumidores.
Os princípios da atividade econômica, portanto se revelam em ser princípios de integração pois são defesas do consumidor e do meio ambiente, e buscam a redução das desigualdades regionais e socais e a busca do pleno emprego.
Se o art. 170 da CF constitui um norte para densificação do princípio da função social da empresa, não é viável afirmar o mesmo com relação ao art. 7º da CF já que este, tendo por objeto direitos econômicos e sociais, não traduz para o empresário, o poder-dever de proporcionar esses direitos aos trabalhadores mas somente responsabilidade de prestá-los.
Por derradeiro, é curial lembrar que os deveres impostos pela função social da empresa não se esgotam no texto constitucional, ou mesmo, em leis ordinárias como a Lei das Sociedades Anônimas, entre outras.
De qualquer maneira, parece viger consenso doutrinário no sentido de que o desempenho da cidadania empresarial não escusa o Estado de promover a resoluções de questões sociais, apresentando-se os empresários, no máximo, como colaboradores nessa honrosa empreitada.
É um natural corolário da função social da empresa a sua primeira vertente que corresponde ao princípio da preservação da empresa, destacando-se essa como principal foco de interesses, mesmo em detrimento dos interesses dos grupos em sua esfera de influência.
Assim é importante reconhecer na empresa fonte de emprego, tributos e de desenvolvimento econômico, social em geral através da criação e circulação de riquezas.
Daí só a título ilustrativo, apontamos o art. 51 da Lei 11.101/2005, o art. 57, 47. O que consolida que a falência é uma ultima ratio.
As limitações endógenas ao exercício da empresa dividem-se em três grupos de interesses distintos, quais sejam: dos concorrentes, dos consumidores e do meio ambiente.
Os primeiros encontram guarida especialmente no art. 170, IV da CF, bem como nas vedações instituídas pelo parágrafo 4º do art. 173 da CF.
No tocante aos consumidores (principais focos de atenção no correto exercício da empresa) e um dos maiores motivos que a Lei 8.078/90 fundamental no cumprimento da função social.
De fato, a atividade empresarial deve ser exercida de modo não causar dano ao consumidor, não apenas por deveres de abstenção, mas também de ação a exemplo dos deveres positivos anexos da boa-fé objetiva, de proteção e lealdade.
Importante ressaltar o Enunciado 53 do CJF com relação à interpretação do art. 966 do CC que in verbis:
“art. 966 – deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa”.
Outra fonte legislativa essencial sobre o tema da função social da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) que trata em seus artigos 116, parágrafo único, sobre o acionista controlador, no art. 154, sobre o administrador, e no art. 165, sobre conselho fiscal, da função social da empresa como uma das finalidades a serem observadas pelas figuras mencionadas, com efeito, a relevância desses dispositivos transpõe o tipo societário específico, aplicando-se sempre que possível aos demais tipos de maneira subsidiária, tendo em vista a falta de previsão legal determinada.
Em face da imediata exigibilidade da observância à função social da empresa, tanto em suas limitações exógenas quanto endógenas, em atendimento aos interesses maiores da sociedade e correspondente às escolhas feitas pelo constituinte, deve toda atividade empresarial ser conduzida conforme os ditames do art. 170, da CF, sem exclusão dos demais deveres imprescindíveis ao justo exercício da empresa.
De qualquer forma, a função social da empresa procura demonstrar e concretizar as diretrizes e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre os quais a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, com base nos valores democráticos da cidadania, dignidade da pessoa humana e do humanismo, que devem ser considerados igualmente mesmo nas relações privadas.
A função social do contrato e da empresa deve traduzir os inúmeros objetivos constitucionais da República, não apenas as inicialmente enumeradas no Texto Magno, mas igualmente as traçadas em seu bojo.
Portanto, o respeito à cultura, ao desenvolvimento do ensino científico e do desporto, além do meio ambiente traçam o quadro de proteção constitucional e compõem o conceito de função social.
E, devemos lembrar o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1950-SP, em que se declarou a constitucionalidade da lei paulista que determinava a fixação de desconto obrigatório em casa de diversão, esporte, cultura e lazer para estudantes regularmente matriculados em estabelecimento de ensino (a chamada “meia entrada”).
Podemos ler na ementa in litteris:
“é certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade.
Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos artigos 1,3 e 170. A livre iniciativa é expressão da liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho.
Por isso, a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina o Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (artigos 23, inciso V, 205, 208, 217, terceiro parágrafo, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.”
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Professora universitária, pedagoga, bacharel em Direito UFRJ, mestre em Direito UFRJ, mestre em Filosofia UFF, Doutora em Direito USP. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Articulista e colunista dos sites www.invetidura.com.br, www.netlegis.com.br, www.jusvi.com , possuindo vasta produção acadêmica publicada nos sites como www.ibdfam.org.br , http://egov.ufsc.br/portal/buscalegis, www.abdpc.org.br ,www.ambito-juridico.com.br , www.abdir.com.br , www.jurid.com.br .<br>
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Isnar Amaral
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
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