Co-autor: Matheus Morais de Oliveira Melo[1]
INTRODUÇÃO
O Brasil costuma confundir os vocábulos direito e lei e isso se deve a adoção do Sistema da Civil Law, no qual primeiro surge a norma jurídica de caráter geral e abstrata para que os magistrados as apliquem no caso concreto de conflito de interesses.
Tal praxe gera insegurança jurídica em caso de omissão legislativa, pois nesse caso surgirão posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais divergentes sobre a mesma matéria, cabendo ao magistrado decidir usando como base a justiça, interpretando o direito de acordo com a realidade social.
A Lei de Execução Penal Brasileira de 1984 preceitua, em seu artigo 199, que o emprego de algemas pelas autoridades policiais será disciplinado mediante decreto federal, o que após quase 26 anos de sua entrada em vigor ainda não foi efetivado, tornando-se exemplo de lacuna legislativa.
Este fato, aliado à constante exposição pelos meios de comunicação em massa de pessoas de certo prestígio no cenário nacional detidas após investigações realizadas pela polícia federal levantou o questionamento sobre o uso lícito de algemas.
No cenário legislativo nacional e internacional existem normas relativas ao tratamento que deve ser conferido a pessoas conduzidas a delegacias e aos presos, destacando-se as regras de respeito a sua dignidade, proibindo o uso de algemas com caráter meramente vexatório e de respeito a sua incolumidade física.
Pelo exposto, observa-se a importância do tema e do presente texto científico que objetiva afastar a idéia de que o Poder Legislativo deve estabelecer normatização para que o uso desse importante instrumento de prevenção torne-se lícito, em especial após a edição pela Corte Suprema do País da Súmula Vinculante n° 11, em 13 de agosto de 2008, e o preconceito que existe em torno do tema, conscientizando a coletividade sobre sua necessidade, trazendo com isso a paz social.
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DE ALGEMAS
2.1. CONCEITO E HISTÓRICO NO BRASIL
A palavra algema origina-se do vocábulo árabe al jamad, que significa a pulseira. As algemas foram utilizadas como meio de opressão por séculos, passando a ter o sentido de aprisionar a partir de 1800.
O Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse define-as como “espécie de argola de ferro provida de fechadura, que serve para prender uma pessoa pelo pulso” (1980, p. 35).
No Brasil, o Código de Processo Criminal do Império, de 1832, (também conhecido como Código de Processo Criminal de Primeira Instância), já permitia, implicitamente, o uso de algemas no momento da prisão se o réu tentasse fugir ou se opusesse ao encarceramento. Neste momento o executor da medida constritiva tinha a prerrogativa de, através da força, garantir sua efetivação, defender a incolumidade física de possíveis vítimas e proteger o próprio corpo policial.
O processo penal brasileiro foi reestruturado pela Lei n° 2.033 de 1871 e, conforme o jurista pátrio Rodrigo Gomes Carneiro,
[...] ao cuidar da prisão e da maneira de realizá-la estabelece: ... O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando o não justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de dez a cinqüenta mil réis, pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso. [...] (2005).
O fim almejado pela mencionada norma, portanto, era proibir todo e qualquer mau trato contra o preso ou custodiado, sob pena de responsabilização do autor da infração.
Apesar do emprego da algema no momento da prisão ser uma tradição no Brasil, ainda não existe no ordenamento jurídico legislação federal que explicitamente regularize o uso de algemas e seu procedimento. Tal fato afronta o preceito contido no artigo 199 da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210 de 1984).
Isso, porém, não quer significar que a utilização de algemas na locomoção de detentos e no ato de prisão seja uma conduta ilegal ou que fica a critério puramente subjetivo das forças de segurança pública o momento em que será usada.
Hodiernamente, a utilização desse meio de neutralização da força deve obediência a uma série de disposições legais. A primeira delas é o Código de Processo Penal que em seus arts. 284 e 292 informa que somente serão empregados contra o acusado ou condenado os meios necessários para vencer a resistência ou evitar a fuga e no art. 474, § 3° dispõe que: “Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”. A Lei n° 9.537/1997 (dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional) que em seu art. 10 estabelece ser prerrogativa do comandante de embarcação a detenção de pessoa fazendo, quando necessário, uso de algemas, desde que essa medida vise a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga. O Código de Processo Penal Militar, segundo o qual a utilização de algemas será permitida somente quando houver risco de fuga ou de agressão por parte do preso (art. 234, caput e § 1°). A lei que dispõe sobre Abuso de Autoridade (Lei n° 4898/1965), que estabelece a configuração deste delito em caso de submissão de pessoa a vexame ou constrangimento não autorizado em lei (art. 4°). A Lei de Execução Penal que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos presos, sejam eles provisórios ou já condenados (art. 40) e protege o preso de qualquer forma de sensacionalismo (art. 41). E a Resolução n° 14/1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que, em seu art. 29, dispõe ser o uso de algemas ou camisas-de-força restrito aos casos de perigo de fuga.
Além do respeito às citadas normas jurídicas, o emprego de algemas deve balizar-se no respeito aos direitos fundamentais estabelecidos na Lex Legum como a vedação ao tratamento desumano ou degradante, a inviolabilidade da honra e da imagem dos indivíduos, o respeito à integridade moral da pessoa submetida à persecução penal e a dignidade da humana.
Pelo exposto depreende-se que no momento de efetivação da prisão, vigora em favor do acusado o princípio geral de que não será, em regra, permitido o emprego da força. Não se podendo, porém, estabelecer de início qual a força necessária a ser usada, pois tudo dependerá no caso concreto.
2.2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O TRATAMENTO DISPENSADO AO ACUSADO
Os direitos fundamentais, também chamados direitos humanos ou liberdades públicas surgiram a partir da necessidade de proteger o indivíduo de eventuais arbitrariedades cometidas pelo Estado, contudo, atualmente também se prestam a compelir o Poder Público a tomar um conjunto de medidas visando a melhoria nas condições sociais do cidadão.
A Constituição Federal de 1988 trata dos direitos fundamentais em seu Título II, sendo o Capítulo I, relativo aos direitos individuais e coletivos, analisado a partir deste momento.
A Carta Magna garante no art. 5°, caput, o direito à igualdade ao dispor que todas as pessoas merecem o mesmo tratamento jurídico. Tal princípio dirige-se ao legislador, ao aplicador do direito e ao particular, vedando-lhes diferenciações arbitrárias, discriminações que não estejam a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.
O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1°, inc. III da Constituição reflete na proteção constitucional contra a tortura e o tratamento degradante, art. 5°, incs. III e XLIX e na inviolabilidade à intimidade, vida privada, honra e imagem, art. 5°, inc. X, do mesmo diploma normativo. O inc. III, do art. 5° dispõe que "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante", estabelecendo garantias processuais de que o processo penal não pode expor o indivíduo a situações humilhantes, garantindo, por exemplo, a integridade física e moral do preso (art. 5° inc. XLIX), pois o processo penal não pode privar o homem da sua dignidade.
Em relação à proteção constitucional à vida privada, Alexandre de Morais expõe,
Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, III), como o direito à honra, à intimidade e à vida privada (CF, art. 5°, X) converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação [...] (2007, p. 48)
Caso qualquer dos direitos consagrados na Constituição seja desrespeitado, a mesma assegura (inc. V do art. 5°) a total reparabilidade pelos prejuízos sofridos através do direito de indenização pelo dano material, moral e à imagem, esta última protegida, inclusive, em face de outro direito tutelado pela Carta de 1988 que é o direito de informação.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu art. XI, já afirmava que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa". A Constituição Brasileira prevê o princípio da presunção de inocência / estado de inocência / presunção constitucional de não-culpabilidade no art. 5°, inc. LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A presunção de inocência constitui um princípio basilar do Estado de Direito que tutela a liberdade pessoal. Tal princípio engloba, também, aspecto referente ao ônus da prova da autoria do fato criminoso. Em caso de insuficiência de provas para a condenação, o juiz prolatará sentença penal absolutória (princípio do in dubio pro reo), pois num Estado democrático de direito é preferível a possível absolvição de um culpado, do que a condenação de um inocente.
Referidos princípios constitucionais, inerentes ao direito penal, através da limitação do poder punitivo do Estado, orientam o agir do intérprete do direito diante das normas jurídicas e das situações concretas a ele apresentadas no cotidiano.
2.3. SÚMULA VINCULANTE N° 11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O Pretório Excelso, em sua composição plenária, por unanimidade, em sessão ocorrida no dia 13 de agosto de 2008 editou a Súmula Vinculante n° 11 com o seguinte teor:
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
O Tribunal deliberou elaborar a súmula ora em comento durante o julgamento do Hábeas Corpus n° 91952 no qual foi anulado um julgamento efetuado pelo Tribunal do Júri da cidade de Laranjal Paulista no ano de 2005, em razão do réu ter ficado algemado durante a sessão de julgamento. O principal fundamento da decisão foi a potencial influência sobre os jurados da visão de um réu algemado, o que poderia levar a um pré julgamento e condenação. O princípio da dignidade humana foi ainda aviltado por não existirem dados concretos que indicassem que o acusado oferecia risco aos presentes, justificando referida medida.
Pela redação da Súmula, o STF estabelece critérios jurídicos (subjetivos) a utilização lícita de algemas, são eles: a resistência (oposição, recusa de submissão à vontade de outrem) ou o fundado receio (temor) de fuga ou de perigo à integridade física do réu ou de pessoa que esteja a seu alcance, perigo este proporcionado pelo próprio preso ou por terceiros (comparsas, por exemplo). Neste particular, contudo, não houve qualquer inovação na ordem jurídica, pois a súmula consolida entendimento do Supremo sobre o cumprimento de legislação que já trata do assunto, em especial dos arts. 284 (“Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”), 292 (“Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão [...], o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência [...]”) e 474, § 3° (“Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”) todos do Código de Processo Penal prescrevem no que concerne ao tratamento a ser dispensado ao acusado no momento da prisão e durante o processo.
A verificação da abusividade no uso de algemas será constatada através da fundamentação, por escrito, apresentada pelo agente público. Contudo, o próprio ministro Cezar Peluso ao comentar a oficialização do posicionamento do STF sobre o uso de algemas pondera que o ato de prender um criminoso e de conduzi-lo é sempre perigoso, por isso, a interpretação deve ser sempre em favor do agente do Estado ou da autoridade.
A responsabilização das autoridades que compõem o sistema de segurança pública nas esferas civil, penal e administrativa previstas na Súmula também não traz nada de novo, pois a responsabilização pelo dano moral encontra previsão na Legislação Cível, o direito penal, através da Lei n° 4898/1965, tipifica o ato como abuso de autoridade e, no âmbito administrativo tal infração pode, inclusive, implicar em demissão a bem do serviço público. Mesmo a responsabilização direta do Estado já está prevista no texto da própria Constituição, no art. 37, § 6°.
A inovação trazida pelo posicionamento vinculante aos demais órgãos dos poderes Executivo e Judiciário diz respeito a sanção de nulidade da prisão ou ato processual praticado com a colocação indevida de algemas.
Verifica-se, portanto, que a edição da Súmula Vinculante n° 11 é instrumento importante para a proteção do custodiado, pois corrobora o entendimento de que o uso indevido de algemas é degradante e ofende a dignidade da pessoa humana. Não põe fim, porém, à necessidade de uniformização quanto ao momento de justificação e de colocação das algemas.
2.4. PRÉ - REQUISITOS AO USO LÍCITO DE ALGEMAS PELA AUTORIDADE POLICIAL
Uma incorreção disseminada na sociedade brasileira é vincular o uso da algema ao emprego da força, como meio de humilhação, opressão ou forma de sanção, associando a palavra a algo depreciativo. Na verdade, a algema é instrumento de constrição física, é um meio de anular a força e imobilizar o custodiado. Sendo, segundo afirma Rodrigo Carneiro Gomes, “menos traumático, doloroso e arriscado imobilizar o meliante pelo recurso à algema do que pelo acesso a técnicas corpóreas de imobilização.” (2006), ou pelo recurso a armas de fogo.
As algemas são utilizadas para atender a diversos fins e, como noticia o Informativo 437 do Supremo Tribunal Federal, servem para proteger o próprio paciente quando atentar contra sua vida, evitam a agressão a terceiros, sendo razoável seu uso mesmo não havendo resistência, quando existir grande comoção social que o justifique.
Essa visão errônea da real necessidade da utilização das algemas é defendida por profissionais do direito quando operações policiais levam o Estado a custodiar seus clientes e todo o acontecimento é acompanhado pela imprensa.
O Superior Tribunal de Justiça autorizou a utilização de algemas contra réu, juiz de direito, desde que evidenciada sua necessidade (STJ, 5ª T, HC n. 35.540, relator mininistro José Arnaldo, j. 5.8.2005), mas sempre considerando o caráter de exceção da referida medida e nunca admitindo seu emprego com finalidade puramente infamante ou depreciativa da imagem do acusado (STJ, 6ª T., RHC 5.663/SP, relator ministro William Patterson, DJU, 23 set. 1996, p. 33157).
O policial, portanto, no exercício cauteloso de sua atividade não deve deixar de usar esse meio de contenção, em nada incompatível com o princípio da inocência, por receio de atentar contra a dignidade do preso, elegendo a imagem como valor preponderante em relação a vida e a segurança pública.
O princípio da não culpabilidade, previsto no art. 5°, inc. LVII da Constituição Brasileira, possui 03 significados, sendo entendido como garantia política do cidadão (de ver respeitada sua dignidade e os direitos essenciais da pessoa humana); regra de tratamento do acusado e regra probatória (de tratamento do acusado ao longo do processo). Desde que respeitados esses parâmetros e fundado em um juízo concreto de sua necessidade, o uso de algemas pela autoridade policial é compatível com este direito individual, que somente é afastado com a prova plena do cometimento do delito.
Percebe-se, assim, que o uso adequado da algema deve ser aferido no caso concreto, e não coibido de forma genérica. Devem prevalecer o bom senso e a segurança da equipe policial, sem deixar, contudo, de respeitar a imagem, a intimidade e a honra do conduzido ou preso, que se submete ao poder do Estado-juiz sem exageros ou abominação pública, pois não se pode admitir a Justiça Penal da humilhação.
Professa o ilustre doutrinador e delegado da Polícia Federal Rodrigo Carneiro Gomes que
[...] A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, o Pacto de San José da Costa Rica, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, bem como a Resolução da ONU de 30 de agosto de 1955 não abnegam o uso de algemas, mas o tratamento indigno do preso e o uso transverso de algemas com fins de constrangimento ou antecipação da pena. Repórteres e policiais devem respeitar o direito do preso à sua imagem, intimidade, individualidade e honra, valores assegurados pelo Estado democrático e pela Constituição Federal, em especial diante da presunção constitucional de não-culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença condenatória penal. [...] (2005).
O essencial, portanto, é atentar para a busca do equilíbrio, aplicando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no uso de algemas, que deve ser adequado ao fim a que se propõe e necessário, como toda medida restritiva de direitos deve ser.
Segundo lição de Canotilho (apud Rômulo de Andrade Moreira),
[...] no Estado Democrático de Direito deve-se atentar para o Princípio da Proibição do Excesso, impondo-se a observância de três requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade. [...] A exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conforme com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adoção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de proteção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos ‘coactivo’, relativamente aos direitos restringidos. [...] (2006).
Acrescenta o criminalista pátrio Luiz Flávio Gomes,
[...] Tudo se resume na boa aplicação do princípio da proporcionalidade, que exige adequação, necessidade e ponderação da medida. Em todos os momentos em que (a) não patenteada a imprescindibilidade da medida coercitiva ou (b) a necessidade do uso de algemas ou ainda (c) quando evidente for seu uso imoderado há flagrante violação ao princípio da proporcionalidade, caracterizando-se crime de abuso de autoridade. [...] (2006).
A utilização imoderada de algemas, portanto, atinge por via reflexa o princípio da dignidade do detido, enquanto ser humano e tipifica o delito previsto no artigo 4° da Lei 4.898/1965, por parte da autoridade pública responsável pelo ato.
O eminente jurista nacional Júlio Fabrini Mirabete afirma que
[...] Constitui crime de abuso de autoridade o uso de algemas com excesso ou desvio de poder discricionário, por constituir, contra o preso ou custodiado, atentado à incolumidade física bem como vexame ou constrangimento não autorizado em lei (arts. 3°, i e 4°, b, da Lei 4898 de 9-12-1965) [...] (2007, p. 836)
O Supremo Tribunal Federal também trata desse assunto em sua Súmula Vinculante de n° 11 na qual proíbe o uso abusivo das algemas imputando uma tríplice responsabilidade (disciplinar, civil e penal) ao agente ou autoridade pública, sem prejuízo da responsabilidade civil do próprio Estado.
3 A QUESTÃO DA LACUNA LEGISLATIVA NO BRASIL
3.1. O PODER LEGISLATIVO E O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DAS LEIS
Segundo Edilson Mougenot, “O Estado é titular de um poder que deriva da sociedade, motivo pelo qual esse poder deve ser exercido para o bem da coletividade” (2008, p. 1). Tal entendimento foi adotado pela Constituição de 1988, que em seu art. 1º, § 1° dispõe: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, estabelecendo no art. 3° como objetivo da República promover a melhoria social.
Acompanhando esse entendimento e visando garantir a manutenção do Estado Democrático de Direito, a Carta Magna consagra, ainda, a tradicional divisão funcional do poder, idealizada por Montesquieu, ao consagrar em seu art. 2° serem poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Vale frisar, que tal independência dos poderes restringe-se aos pontos de vista orgânico e funcional.
Com base nessa tripartição de poderes, o legislador constituinte originário distribui diversas funções, todas com independência, prerrogativas e imunidades próprias, a todos esses poderes, sem, porém, apesar do que possa parecer a princípio, existir exercício privativo de cada uma das funções estatais pelos diferentes poderes, pois o País adotou o sistema de freios e contrapesos. A partir dessa constatação é que se pode afirmar que cada poder possui função predominante (típica), além de outras funções previstas na própria Carta Republicana de maneira atípica.
O Poder Legislativo apresenta como funções típicas legislar e fiscalizar, prevendo, a Constituição, regras de processo legislativo, para que o Congresso Nacional elabore normas jurídicas e atribuindo ao mesmo a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo, atribuição exercida com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
Com relação à primeira função típica citada, a elaboração de normas jurídicas é feita observando uma série de regras procedimentais, constitucionalmente previstas, o que se denomina de Processo Legislativo, que é composto por três fases.
A primeira delas é a fase de iniciativa ou deflagradora, na qual o ente com competência prevista na Constituição Federal desencadeia o processo legislativo.
A segunda é a fase constitutiva, nela haverá a conjugação de vontades, pois dela participam tanto o Poder Legislativo, através da discussão e votação do projeto de lei, deliberação parlamentar, quanto o Poder Executivo, com a sanção, expressa ou tácita, ou veto, total ou parcial, mas sempre motivada, pelo Presidente da República (deliberação executiva). Em qualquer caso, com a sanção ou a derrubada do veto, é neste momento que o projeto se torna efetivamente lei.
A última fase, denominada complementar, compreende a promulgação, atestado de que uma lei existe, é válida e executável. Da leitura do art. 66, § 7° da Carta Magna depreende-se que, em regra, esse ato é realizado pelo Chefe do Executivo Nacional, no prazo de 48 horas. E a publicação, que torna a norma exigível após a inserção do texto promulgado no Diário Oficial, fato que proporciona ampla publicidade ao conteúdo da lei.
O processo legislativo proporciona, conforme visto acima, a inovação do ordenamento jurídico nacional. Ele pode tanto modificar o tratamento jurídico que se consagrava a determinada matéria, quanto tratar inicialmente de uma matéria, sanando a lacuna normativa. Tal processo faz com que todas as pessoas submetidas à jurisdição do País tenham que se comportar de certa maneira diante de um fato regulamentado, o que gera estabilidade e, por conseqüência, paz social.
3.2. A SOLUÇÃO EM CASO DE LACUNA NA LEI BRASILEIRA
No início dos tempos, a justiça que existia era aquela efetuada pelo próprio ofendido, que criava e defendia o seu direito. O Estado Moderno, porém, retirou do particular a possibilidade de fazer “justiça com as próprias mãos” (justiça privada), forma de composição de conflitos conhecida como autotutela, na qual prevalece “a lei do mais forte”, atraindo para si a função de resolver os litígios subrogando-se nos direitos do ofendido.
Ao assumir o monopólio da justiça, o Estado, através do Poder Judiciário, tomou para si a obrigação de, ao surgir um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, substituir a atuação das partes através do uso da jurisdição.
Especificamente na área do Direito Penal, compete ao juiz buscar a verdade real dos fatos, princípio geral da ação criminal, sendo-lhe vedada a condenação com base em presunções processuais. Até pela importância que uma sentença possui sobre a vida de uma pessoa, não é permitido ao magistrado recusar-se e tampouco delegar a terceiros a função de dirimir conflitos. Sua atuação deve obediência ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional que se liga ao princípio da vedação do non liquet, pois ao ser provocada a jurisdição, uma decisão deverá ser prolatada.
O art. 5°, inc. XXXV da Carta Política de 1988, assegura que à lei não é permitido excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito. Tal norma garante a qualquer pessoa não somente o acesso a justiça, como também a obtenção de uma tutela jurisdicional. Citado inciso atribui ao Estado concomitantemente o poder jurisdicional e o dever de prestar referida tutela.
O legislador, no exercício de sua função legiferante, elabora normas jurídicas que constituem regras de conduta escrita de caráter imperativo, geral, abstrata e permanente, derivada do exercício do Poder Estatal e dotadas de coercibilidade. Em função, porém, das rápidas mudanças do panorama social, o elaborador da lei não tem condições de antever todas as hipóteses que podem se realizar no plano fático, cabendo ao aplicador do direito se utilizar dos outros meios para sua manifestação, adaptada sempre a realidade moderna.
O Poder Judiciário atua por intermédio de seus juízes, que não têm a prerrogativa de não sentenciar ou despachar alegando obscuridade ou lacuna legislativa. Segundo Elpídio Donizetti, nesses casos, “no julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.” (p. 151). Tal afirmação é encontrada no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil e no art. 3º do Código de Processo Penal e corresponde ao procedimento denominado de Colmatação das Lacunas Legais do qual resulta o Princípio da Completude do Ordenamento Jurídico.
Provocada a atuação do Estado-juiz, pouco importa se existe ou não a norma jurídica, que seja ela completa ou lacunosa, cumpre ao poder judiciário resolver o litígio, efetuando a integração do direito pelo uso da analogia.
O fundamento da aplicação da analogia reside no princípio da igualdade, que exige que casos semelhantes sejam regulados por normas semelhantes e na aplicação do brocardo “ubi eadem est ratio, ibi ide ius”, ou seja, a mesma razão autoriza o mesmo direito.
Restando infrutífera a solução do conflito através da analogia, o juiz utilizar-se-á de normas consuetudinárias, entendidas como hábito, uso constante e notório do cidadão convicto de que corresponde a uma necessidade jurídica. Para que seja possível sua adoção como método de integração da norma jurídica deve tratar-se de costume extra legem (na ausência da lei) uniforme, constante e público.
Pelas palavras do doutrinador Júlio Fabrini Mirabete,
[...] O costume, regra de conduta praticada de modo geral, constante e uniforme (elemento interno), com a consciência de sua obrigatoriedade (elemento externo), é fonte formal mediata, secundária, indireta, do processo penal. Embora não mencionado no artigo 3° do CPP, que admite a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, o costume é referido pelo artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil como uma das formas integradoras do Direito, em especial na lacuna da lei, podendo ser considerado como forma de revelação do Direito Processual Penal. [...] (2007, p. 35).
Quando nem a analogia nem os costumes fornecerem a regra adequada à solução da situação de fato, para julgar a demanda o aplicador do direito recorrerá aos princípios gerais do direito.
Tendo o Estado atraído para si a função jurisdicional, a ele compete solucionar os conflitos que lhe são apresentados, visando a manutenção da harmonia social. Diante disso, caso inexista norma jurídica aplicável ao caso concreto ou sendo a mesma desconforme com o direito, cabe magistrado servir-se dos métodos de integração das leis.
4 A FALTA DE REGULAMENTAÇÃO DO ART. 199 DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL E O USO DE ALGEMAS NO BRASIL
Não restam dúvidas de que num país filiado ao Sistema do Direito Europeu Continental, de origem Romano-Germânica, baseado na elaboração prévia de normas jurídicas de caráter abstrato e genérico para posterior aplicação aos casos que forem postos a apreciação do Poder Judiciário (Direito Codificado), a falta de um regramento nacional específico sobre cada matéria constitui fonte de insegurança para a sociedade e para os próprios aplicadores do direito, uma vez que tal sistema tem a lei como fonte principal e imediata do direito.
O Brasil, apesar de ter aderido ao mencionado Sistema, conhecido como da Civil Law, admite os costumes como fonte do direito, mas somente nas hipóteses em que a lei permitir expressamente ou for omissa no tratamento de determinada questão.
Uma das lacunas legislativas existentes no Brasil diz respeito a regulamentação e ao procedimento de utilização de algemas pelo Legislativo Federal. A Lei de Execução Penal, recepcionada pela Constituição de 1988, ainda não foi regulamentada quanto ao disposto em seu artigo 199 que exige disciplina de caráter geral que uniformize o uso de algemas pelas autoridades policiais do País.
Apesar da falta de um decreto federal e da inegável necessidade de padronização, o ordenamento jurídico pátrio oferece parâmetros gerais de respeito à integridade do preso e da sociedade em geral, conforme já analisamos, que informam a maneira lícita de se empregar algemas.
O uso da algema conforme o direito também é encontrado através da interpretação doutrinária dos institutos em vigor, inclusive de normas internacionais como é o caso das regras mínimas para tratamento de prisioneiros da Organização das Nações Unidas (ONU), que ao versar sobre instrumentos de coação estabelece (n° 33) que o emprego de algemas não poderá ocorrer visando a punição do acusado ou condenado. Apesar de tratar-se de simples recomendação, que em razão de sua natureza não possui caráter cogente, pode ser utilizada como base de interpretação.
O emprego de armas incapacitantes não mortais, como é o caso das algemas, reduz, também, o risco de vitimização durante a execução do ato de prisão ou de condução de pessoas a delegacias, pois o seu caráter imobilizante, restringe a necessidade do uso da força e de arma de fogo pela autoridade policial.
Quando contestada em face de possíveis afrontas a princípios fundamentais do custodiado, deve-se entender que em caso de confronto entre direitos fundamentais, prevalecerá a proteção dos direitos fundamentais da sociedade.
Por tudo que foi dito anteriormente, não existe, no Brasil atual, qualquer obstáculo para que o detido, o conduzido às delegacias após prisão em flagrante ou o preso sejam algemados como forma de impedir eventual ataque à integridade física do policial ou de terceiros ou ação evasiva do réu, fato que inviabilizaria, em caso de sentença penal condenatória o efetivo ius puniendi (direito de punir) estatal, impondo ao praticante da infração penal a sanção cabível.
A oposição por parte do acusado ou sentenciado mediante o emprego de violência ou ameaça ao executor da medida constritiva ou a terceiro que lhe preste imediato auxílio configura crime de resistência, previsto no artigo 329 do Código Penal. Aquele, porém, que simplesmente não atende a ordem legal pratica o delito de desobediência, tipificado no artigo 330 da Lei Penal. A simples fuga do indivíduo, diante do cumprimento pelo agente público competente, de voz prisão não representa a prática de infração penal (RT, 555:311, 419:262, 551:311 e 462:376; RJTJSP, 71:317 e 13:223; JTACrimSP, 12:240).
Apesar da existência de fundamentação legal e doutrinária fartas permitindo o uso de algemas isso não soluciona importantes questionamentos ocorridos em sua aplicação no caso concreto relativos a como o acusado ou réu deverá ser algemado, se pelas mãos, pés ou em quais casos será permitida a utilização em ambos os membros do corpo. Em caso das algemas serem utilizadas somente nas mãos, como as mesmas devem ser presas, para frente ou para trás. Qual o momento adequado a colocação das algemas, o da leitura do mandado de prisão ou depois de neutralizado qualquer perigo potencial. Se é permitido algemar diante de repórteres e fotógrafos e quando isso irá configurar promoção ilícita da Polícia. Tais assuntos são resolvidos pelo agente público no momento da execução da medida constritiva, em caráter extremamente subjetivo e cuja proporcionalidade e razoabilidade somente serão avaliadas pelo juiz em momento posterior, quando então possíveis excessos serão detectados e, posteriormente, punidos.
A segurança da equipe policial, no entanto, é o primeiro valor a ser observado na guarda e transporte de algemas, para uso posterior, em um evento fortuito, pois são servidores públicos que colocam a integridade física em risco ao exercerem sua função, até por possuírem um efetivo muito inferior à demanda atual e que por isso merecem ampla proteção estatal. Também justificam o emprego dessa medida de segurança, a garantia de incolumidade física de vítimas potenciais e do próprio custodiado.
Segundo Rodrigo Carneiro Gomes,
[...] Embora a questão do uso de algemas deva ser uma questão de segurança, não se pode admitir tergiversação, ou seja, seu recurso de forma antiética, com vilipêndio da pessoa humana. Infelizmente, até pela falta de regulamentação e padronização interna, são comuns as reportagens que mostram o ato de algemar, deixando a percepção clara de que o momento foi programado para o exato ângulo das câmaras e conveniência da mídia. [...]
Algemar sem qualquer critério ou razão é medida reprovável, demonstração clara de arrogância ou ato de exibicionismo por parte da autoridade policial no exercício de suas funções que enseja ao delito de abuso de autoridade, sujeitando seu autor a sanções administrativa, que varia de uma simples advertência à demissão a bem do serviço público, civil, que consistirá no pagamento de indenização, e penal, através da aplicação de multa, detenção, perda do cargo ou inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até 03 (três) anos.
Por tudo que se disse, percebe-se que o fundamental é atentar para a busca do equilíbrio, da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação cotidiana de algemas nos custodiados, havendo constatada necessidade de padronização de seu uso a bem da obtenção da paz social.
CONCLUSÃO
De tudo que foi afirmado, percebe-se que o uso de algemas é uma realidade aceita pela lei, doutrina e jurisprudência pátrias desde que, sem dúvidas, balizada na observância dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal, até porque no Brasil se adota o princípio da hierarquia constitucional, devendo todas as demais normas, respeito aos parâmetros estabelecidos na Carta de 1988.
Contudo, em razão do País adotar o Sistema da Civil Law, necessita-se da normatização em caráter prévio, geral e uniforme para a pacificação social sobre como se portar diante de certo fato concreto. Isso, porém, não pode sobressair sobre a idéia de que o direito é a arte do bom e do justo e de que essa justiça deve ser perseguida pelo magistrado, que tem hoje em suas mãos preciosa ferramenta nesse sentido que é a Súmula Vinculante e, no que ela não disciplinar, ainda pode se socorrer das fontes de integração do direito que são a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
Ao abolir a justiça privada e consagrar o respeito ao indivíduo, o Estado assumiu a importante missão de pacificador dos conflitos sociais sempre respeitando o indivíduo em sua vida, liberdade, propriedade, devendo tratar todos os seres humanos com igualdade. Isso, porém, não o proíbe de tomar contra qualquer do povo medidas constritivas, que por si só não afastam o princípio da não culpabilidade, mas que o mitigam em razão da proteção de um bem maior que é a garantia da segurança de toda a sociedade.
O uso de algemas pela autoridade policial, nesse contexto, garante a efetivação do resultado prático de uma sentença penal condenatório. Garante, também e sobretudo a vida, em primeiro plano, e a integridade, num segundo, desses agentes públicos que apesar de previamente cientes dos riscos da profissão que escolheram, não podem, por isso, não ter seus direitos protegidos pelo Estado.
Por tudo que foi analisado na presente monografia, não existe uma real necessidade de excessiva normatização do uso de algemas. O mesmo, contudo, não se aplica a sua padronização, ou seja, seu modo de utilização, que engloba local no corpo em que deve ser usada, momento em que deve ser aplicada, isso se deve ao próprio tamanho do território nacional, de dimensões continentais, e, por isso, composto por diferentes costumes, necessitando de uniformização para uma maior segurança ao próprio indivíduo em relação a atuação estatal, respeitando o seu estado de inocência e seu status de pessoa humana, merecedora de respeito e proteção.
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Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. Pós-graduada em Direito Penal e Pcessual Penal pela Faculdade de Sergipe - FASE.<br>
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