SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONCEITOS. 3. CAUSAS DE SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR NO BRASIL. 4. O SUPERENDIVIDAMENTO À LUZ DO DIREITO COMPARADO. 5. PREVENÇÃO E TRATAMENTO PARA AS SITUAÇÕES DE SUPERENDIVIDAMENTO. 6. O SUPERENDIVIDAMENTO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 7. SOLUÇÕES/PROPOSTAS PARA O PROBLEMA. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 9. BIBLIOGRAFIA.
1. INTRODUÇÃO
“Eu não bebo, não fumo, não escuto rádio, não me drogo, como pouco. Eu diria que meus únicos vícios são Dom Quixote, A Divina Comédia e não incorrer na leitura de Enrique Larreta nem de Benavente”. (Jorge Luis Borges)
O carro do ano, dinheiro fácil e rápido na mão, um laptop de última geração, TV Full HD. Muitas famílias desfrutam de todos estes bens, adquiridos mediante uma vasta e sedutora “oferta” de crédito. Ao final, as contas se acumulam, e, mês após mês, no mínimo mais da metade do salário serve unicamente para quitar essas dívidas. A cada dia, mais pessoas assumem excessivas dívidas, não podendo fazer frente às mesmas, por não terem arrecadado/ganhado mais do que gastam. Com isto, nos deparamos com um fenômeno conhecido como "superendividamento".
O endividamento é algo intrinsecamente ligado à sociedade de consumo, tendo efeitos tanto na família do devedor, quanto em toda sua relação social. Para consumir bens e serviços, ou para expandir negócios, o acesso ao crédito é um elemento fundamental em qualquer sistema econômico-social moderno. O crédito é uma das ferramentas que permite melhorar o acesso ao consumo, e com ele, busca o consumidor, dar um salto qualitativo em sua condição de vida, sobre tudo, em relação ao atendimento das necessidades básicas do consumidor.
Portanto, o assunto ora abordado é um fato muito ligado à nossa vida em sociedade, e não deixa de ser um problema mundial, ante a gana de consumo que temos todos nós. Afinal, quem é que resiste a uma tentadora oferta de crédito “fácil”? Poucos. Como notamos, a problemática não é exclusividade do Brasil. Ao contrário. Em data comemorativa de 20 (vinte) anos do nosso Código de Defesa do Consumidor-CDC (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), vislumbramos o tema como uma questão global. Nos Estados Unidos, por exemplo, a recente crise economico-financeira de 2007/2008, teve como uma de suas causas, a situação de superendividamento do consumidor.
No Brasil, a situação do consumidor superendividado passou a existir com muito mais frequência, a partir de 1995, após a elaboração, em julho de 1994, do chamado “Plano Real”, que tinha como principal meta, fazer com que a população brasileira “consumisse mais”. Com o aumento do consumo, melhoraria a economia, pensaram os governantes. Assim, cresceu a oferta de crédito, armadilha maior, que desencadeou toda a situação de inadimplência de muitos consumidores em nosso país.
Como argumentaram Amélia Rocha e Fernanda Freitas[1], o problema do superendividamento no Brasil, apesar do notável crescimento entre os consumidores, ainda é, salvo algumas exceções, tratado como questão de (des)controle financeiro individual (e até mesmo como prodigalidade). Olvida-se que se trata, de fato, de um problema econômico e social, análise que já ocorre em outros países, como a França. Tal omissão afeta diretamente a dignidade do cidadão-consumidor que se vê, não raras vezes, sem condições de suprir suas necessidades mais básicas, como saúde e alimentação e, pelo sutil nexo de causalidade da responsabilidade pela concessão do crédito, culpa-se, e sofre pela situação.
Como é sabido, para que um fato seja regulado pelo direito, é preciso primeiro reconhecê-lo. O superendividado brasileiro ainda não possui amparo jurídico consolidado (a própria expressão "superendividamento" ainda é vista com preconceitos e forma de se eximir do pagamento de dívidas, de "estelionato por via judicial", de "proteção exacerbada"). Entretanto, o CDC é uma lei principiológica que pode e deve ser usada para enfrentar tais questões, mormente em face do seu artigo 7º, que reconhece o microssistema consumerista como um sistema aberto e estimula o diálogo das fontes.
As questões fundamentais deste trabalho investigativo concentram-se nos seguintes problemas:
a) Quais são as principais causas do superendividamento dos consumidores brasileiros?
b) Como se encontra a questão no plano mundial, à luz do direito comparado?
c) O que pode ser feito como medida de tratamento e prevenção em relação ao consumidor superendividado no Brasil?
d) Investigaremos se o superendividamento do consumidor de boa-fé, pode ser considerado ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
e) Quais são as possíveis soluções/propostas para o problema do superendividamento do consumidor brasileiro?
Esta pesquisa, sem a intenção de apresentar respostas definitivas, tem a pretensão de despertar um salutar debate, e uma reflexão sobre as idéias que serão por nós sugeridas.
2. CONCEITOS
“Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança”. (Shakespeare)
Primeiramente, nos cabe esclarecer que não se pode falar sobre o tema no Brasil, sem se mencionar o nome de Cláudia Lima Marques, que é, sem dúvida alguma, a maior especialista no assunto em nosso país. A Professora Cláudia Lima Marques[2], a respeito do problema ora examinado assevera que: “O endividamento é um fato inerente à vida em sociedade, ainda mais comum na atual sociedade de consumo. Para consumir produtos e serviços, essenciais ou não, os consumidores estão – quase todos – constantemente se endividando. A nossa economia de mercado seria, pois, por natureza, uma economia do endividamento. Consumo e crédito são duas faces de uma mesma moeda, vinculados que estão no sistema econômico e jurídico de países desenvolvidos e de países emergentes como o Brasil. O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos).” (grifamos)
Este conceito envolve a idéia de falência da pessoa física. A mesma Professora nos dá os conceitos de endividamento ATIVO e PASSIVO, que se materializam de duas formas:
a) Superendividamento Ativo, é aquele que é fruto de uma acumulação inconsiderada de dívidas, desde que de boa fé, conhecido também como endividamento compulsório. Assim, o superendividado ativo é o consumidor que age ativamente para o acúmulo das dívidas, pois gasta mais do que ganha atuando positivamente, mesmo que de boa-fé, para se colocar na posição de endividado.
b) Superendividamento Passivo, que é aquele provocado por um imprevisto da vida moderna, ou seja, a dívida proveniente do desemprego, da doença que acomete uma pessoa da família, pela separação do casal, entre outros, ou seja, superendividado passivo é aquele que não atua para colocar-se na situação de endividado, vindo a ocupar tal posição em virtude de agentes e circunstâncias externas alheios à sua vontade.
Outros conceitos pertinentes foram dados no Anteprojeto de Lei (comentaremos mais adiante), elaborados pelas Professoras Cláudia Marques, Clarissa Lima e Káren Bertoncello, como os a seguir transcritos:
I - Superendividado: toda pessoa física consumidor, de boa-fé, que se encontra impossibilitada de pagar o conjunto de suas dívidas de consumo vencidas ou a vencer, sem prejuízo grave do sustento próprio ou de sua família.
II - Superendividamento: fenômeno social, jurídico e econômico capaz de gerar a impossibilidade do consumidor, pessoa física, de boa-fé, em pagar o conjunto de suas dívidas de consumo vencidas ou a vencer, sem prejuízo grave do sustento próprio ou de sua família.
III - Dívidas de consumo: todas as dívidas da pessoa física, no mercado de consumo, que não estejam relacionadas à sua atividade profissional e que não provenham de decisões judiciais, dívidas alimentícias, fiscais e parafiscais.
IV - Mínimo existencial: quantia capaz de assegurar a vida digna do indivíduo e seu núcleo familiar destinada à manutenção das despesas mensais de sobrevivência, tais como água, luz, alimentação, saúde, educação, transporte, entre outros.
V - Boa-fé: refere-se às condições pessoais éticas e de conduta geral do consumidor, em especial quando da celebração do(s) contrato(s) que gerou (geraram) as dívidas.
Quem é consumidor no Brasil? O nosso CDC define consumidor em seu artigo 2º: "Consumidor é qualquer pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou serviço como destinatário final".
Em relação ao superendividamento brasileiro, podemos destacar o trabalho sobre o tema, e o controle do empréstimo consignado, feita por Brenda Schneider dos Santos, onde a mesma enuncia que, apesar de não existir pesquisa em âmbito nacional acerca do perfil do consumidor superendividado no Brasil, dúvidas não restam que o fenômeno atinge tanto as classes menos favorecidas (desfavorecidos) quanto as classes mais favorecidas (privilegiados). Os privilegiados são aqueles pertencentes à classe média ou alta e que possuem, diante da posição social e do poder aquisitivo, maior alcance a créditos e bens. Os desfavorecidos são aqueles que se encaixam no conceito de hipossuficientes ou hipervulneráveis trazido pelo Art. 6º, VIII, do CDC, uma vez que são os pobres ou que vivem no limiar da pobreza, com pouca cultura e discernimento.
No entanto, apesar da diferenciação entre as espécies de consumidores tendo como elemento caracterizador a classe social (classe menos favorecida x classe mais favorecida), ambos são tidos como vulneráveis. A condição social dos consumidores pertencentes às classes mais favorecidas não os afastam da condição de vulnerabilidade dos consumidores em geral, seja ela em seu aspecto jurídico, econômico ou técnico.
Ocorre que os hipossuficientes, diante do déficit relativo ao discernimento, cultura e grau de instrução, podem ser tidos como hipervulneráveis, sendo este o entendimento defendido por Simone Helege Bolson, ao preconizar que sob um viés sociológico, não é equívoco dizer que a sociedade de consumo no Brasil é composta pelos vulneráveis e pelos hipervulneráveis. Vulneráveis são todos os consumidores que de uma forma ou de outra vivem o Estado de sociedade da abundância naturalmente, seja pela condição jurídica advinda da lei e pela própria condição econômico-social, média ou alta. E os hipervulneráveis? Esses são os que ascenderam ao mercado de consumo recentemente, como os da classe C, D, E.
Assim, resguardado o alcance dos efeitos que o superendividamento ocasiona nas diferentes classes sociais, no Brasil o superendividamento é evidenciado através dos inúmeros casos levados ao conhecimento do poder judiciário, sobretudo em ações revisionais. Ademais, pesquisas já realizadas em âmbito regional levam a crer que o superendividamento é fenômeno presente em ambas as classes.
Importante citar que dentre os estudos realizados no Brasil acerca do perfil do consumidor superendividado destaca-se o projeto de Pesquisa de Rafaela Consalter, Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul, sob a coordenação da Professora Cláudia Lima Marques, ao traçar perfil do consumidor Superendividado no Estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa (já citada) foi realizada tendo como base aplicação de questionário e entrevista de 100 (cem) consumidores. Dentre algumas conclusões obtidas com o trabalho destacou-se o fato de que há nítida mudança do papel da mulher na sociedade uma vez que os questionários apontaram que o percentual de superendividadas mantenedoras da família é ligeiramente superior ao de homens nesta condição.
A pesquisa indicou que muitos dos superendividados têm idade acima dos 50 anos; cerca de 66% ou não auferem renda alguma, ou percebem remuneração de até dois salários mínimos nacionais; cerca de 70% dos pesquisados encontravam-se inscritos nos cadastros de proteção ao crédito; cerca de 90% encontravam-se com atraso no pagamento de prestações; o número de devedores passivos estavam em número quatro vezes maios que os devedores ativos. Dentre estes devedores passivos, 62,5% estão nessa condição em razão do desemprego; no total, dos 100 entrevistados, 50 deles responderam que o fator preponderante para a sua inadimplência foi, ou é, o desemprego, reflexo da estagnação da economia nacional; cerca de 49% deve para três ou mais credores; em apenas 41% dos casos o consumidor recebeu uma via do contrato ajustado; somente 22% dos entrevistados declararam que lhes foi exigida alguma forma de garantia, como fiança ou "cheques".
Por fim, apurou-se que, numa iniciativa pioneira no país, levada adiante pela Universidade Federal e pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, foi possível traçar algumas das características principais dos superendividados gaúchos. Na sua leve maioria mulheres, entre 30 e 50 anos, com até dois filhos, percebendo renda de até dois salários mínimos nacionais, devendo para mais de três credores, na sua maioria lojas e bancos, inadimplentes ou com as prestações em atraso, passivas em relação ao débito, inscritas em cadastros de devedores. Eis o triste perfil traçado.
O estudo realizado no Rio Grande do Sul corroborou a necessidade de tratamento especial ao consumidor superendividado no Brasil, que deve ser implementado através de políticas públicas e tutela legal legítimas com fito de dar respostas eficazes ao fenômeno a exemplo do que já acontece em diversos países.
3. CAUSAS DE SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR NO BRASIL
“Dólares: São esses imprudentes bilhetes americanos que têm diversos valores e o mesmo tamanho”. (Jorge Luis Borges)
Os principais fatores que levam o consumidor brasileiro ao superendividamento estão relacionados com a ausência de planejamento dos gastos, como por exemplo, se gastar mais do que se arrecada, além da falta de consulta e de pedido de orientação dos consumidores, para com os órgãos de proteção do consumidor no Brasil (Procons).
Também podemos apontar como causas do superendividamento, o abuso nas ofertas de créditos (dinheiro) aos aposentados (jubilados), aos funcionários públicos, etc., em razão das longas e altas parcelas de financiamento que lhes são oferecidas, causando amplo descontrole em seus orçamentos.
Por ora, ainda que timidamente, nosso Poder Judiciário vem protegendo o consumidor, como se vê no julgado a seguir transcrito, proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, in litteris:
"(...) É crescente a preocupação da Doutrina e da Jurisprudência com as causas e os efeitos do "superendividamento", tendo sido reconhecida, como ilícita, a conduta abusiva e irresponsável de algumas instituições financeiras que - se valendo da ingenuidade de gente humilde, especialmente, aposentados - com base em maciça campanha publicitária oferecem crédito fácil a quem não pode pagar, sem grave prejuízo de seu sustento. O ABUSO DO DIREITO DE OFERECER EMPRÉSTIMOS, SEM UMA CUIDADOSA E RESPONSÁVEL ANÁLISE DA CAPACIDADE DE ENDIVIDAMENTO DO TOMADOR, VIOLA O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E NÃO PODE CONTAR COM O BENEPLÁCITO DO JUDICIÁRIO. (...) (trecho da decisão no agravo de instrumento n. 2005.002.27037 - DES. MARCO ANTONIO IBRAHIM - Julgamento: 17/01/2006 - DECIMA OITAVA CAMARA CIVEL). (grifamos)
Outro fator, engloba a cobrança. Embora seja vedada (de acordo com o artigo 42, do CDC), além de constituir crime, à luz do artigo 71, do CDC, a cobrança também causa superendividamento em razão da pressão psicológica, das ameaças, que o consumidor/devedor de boa-fé, sofre em sua casa, em seu local de trabalho, enfim, tudo fazendo com que ele pague sua dívida, mesmo que não concorde como o seu valor ou com os cálculos ali apresentados (em regra, com multas e juros abusivos), ou ainda, tendo o consumidor, de contrair um novo empréstimo, renegociando sua dívida, o que forma uma verdadeira “bola de neve” impagável.
Como bem enfatizou, Antônio Benjamin[3], a vida de mercado busca tutelar o consumidor em dois aspectos: na sua integridade físico-psíquica, e na sua integridade econômica. Muitos alegam que a tutela da saúde do consumidor supera da sua proteção econômica. Em verdade, além desta preocupação sobre a relação ao que se proteger, há outra sobre quando tutelá-lo. Neste aspecto, a questão contratual se torna o centro das atenções. A debilidade do consumidor se manifesta com mais destaque em três momentos cruciais de sua existência no mercado: antes, durante e depois da contratação. Desse modo, voltado para o desenvolvimento da relação contratual, é que o legislador e os órgãos de defesa do consumidor atuam. Em outro dizer, toda debilidade, ou vulnerabilidade do consumidor, decorre, direta ou indiretamente, do empreendimento contratual, sendo toda proteção voltada na direção do contrato. Disso advém a importância que assume a matéria contratual no grande círculo de proteção do consumidor, pois, como dissemos, é no instante da contratação que a fragilidade do consumidor mais se evidencia.
No Brasil, como já dissemos, ainda não temos legislação própria para evitar a falência individual, como ocorre com pessoas jurídicas amparadas pela Lei de Falência (Lei n° 11.101/2005). Desse modo, neste caso faz-se urgente e necessária a aplicação concreta do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) para evitar as situações de superendividamento, seja no aspecto pré (CDC, arts. 29 a 44), como no pós-contratual (CDC, arts. 81 a 105), além do contratual propriamente dito (CDC, arts. 46 a 54).
Assim, os consumidores tornaram-se alvos fáceis diante da extrema facilidade do crédito em desrespeito as regras do direito do consumidor calcadas na proteção à informação (premissa para a liberdade de escolha que é premissa da dignidade do consumidor). Portanto, sobre este aspecto, podemos então, dividir em três fases, as causas de endividamento do consumidor brasileiro: a pré-contratual, a contratual, e a pós-contratual.
A primeira fase, a pré-contratual, ocorre antes da assinatura do contrato, e se dá através das ofertas de crédito, que não obedecem os artigos 30/35 e 48, do CDC (Código de Defesa do Consumidor), ou seja, não são claras ostensivas, etc. Também pode ocorrer via condutas de práticas abusivas, previstas nos artigos 39/41, do CDC, a exemplo das vendas casadas (carro com seguro).
Na segunda fase, contratual, encontramos a presença das taxas, correção monetária, multas, juros excessivos, mora por atraso de pagamento, tudo, em regra, em exagero, de modo muito oneroso, e com enorme abuso contra o consumidor endividado, que ocasiona sua inadimplência contratual.
Por fim, na fase pós-contratual, ocorre em desfavor do consumidor endividado, a cobrança (art. 42, do CDC) e a inscrição do nome do devedor no banco de dados, elencada nos artigos 43/44, do CDC (no Brasil, SPC-Serviço de Proteção ao Crédito, Serasa, CADIN-Cadastro de Inadimplentes, etc.)
4. O SUPERENDIVIDAMENTO À LUZ DO DIREITO COMPARADO
“Devo confessar que não consigo traçar uma linha bem distinta que divida a economia da ética. Economia que viole o bem-estar de um homem ou de uma nação é imoral, além disso, pecaminosa. Assim, a economia que permita um país espoliar outro é imoral”. (Mahatma Gandhi)
É perfeitamente possível verificar o problema em questão, na ordem mundial, sendo certo que os países mais desenvolvidos, em especial, nos Estados Unidos e nos principais países na Europa, já se tomaram as providências cabíveis para tentar sanar o problema do consumidor superendividado.
Façamos uma análise, em breves linhas, da questão do superendividamento na Argentina: No Capítulo dos novos direitos e garantias, declara o artigo 42, da Constituição Argentina: “Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno. Las autoridades proveerán a la protección de esos derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorsión de los mercados, al control de los monopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y de usuarios. La legislación establecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatorios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control”. (grifamos)
Embora não exista lei específica sobre o superendividamento, são normas legislativas que amparam o consumidor: Lei nº 24.240/93 (“Defensa Del Consumidor”), com as modificações advindas das Leis 24.787, 24.999 e 26.361, e a regulamentação pelo Decreto nº 1789/94. Há também a Lei de Defesa da Concorrência (Competência), de nº 25.156, com modificações oriundas dos Decretos 1019/99 e 396/2001, e regulamentação pelo Dec. 89/2001. O país sofreu ao longo de sua história numerosas crises econômicas, políticas e sociais, que tiveram reflexo nos consumidores de diversas maneiras. Não faz muito, no ano de 2002, a crise aguda que a Argentina atravessou, deixou como saldo, uma grande quantidade de devedores hipotecários, que perderam seus bens, pela impossibilidade de pagar a diferença gerada pela desvalorização da moeda, e ainda, a falta de uma solução concreta para eles. A desaparição completa do crédito, e a magnitude das dívidas geradas pelos cartões de crédito, fizeram que os índices de morosidade e impossibilidade de pagamento subissem na altura das nuvens.
A partir da recuperação econômica, voltou-se a incrementar as ofertas de crédito, chegando à níveis consideráveis durante o ano de 2006, até princípios de 2008. Neste período, as entidades financeiras promoveram créditos hipotecários, pessoais, e outorgaram cartões de crédito em níveis muito superiores aos anos anteriores. Mas, em nenhum momento, nem as entidades financeiras, nem as autoridades, deram as estatísticas sobre os níveis de endividamento ou morosidade do pagamento.
Desse modo, podemos afirmar que existia reticência do setor financeiro em reconhecer a existência e o aumento dos níveis inconvenientes de endividamento, bem assim, como algumas práticas que os bancos levam a cabo de forma abusiva. Porém, esta situação não era privativa da Argentina, pois vários países da América Latina apresentavam altos níveis de superendividamento, e os consumidores eram vítimas das mesmas práticas.
Assim como no Brasil, a Argentina somente possui Projetos de Lei relacionados ao tema do superendividamento. Desta maneira, se necessita de uma legislação específica para legislar/disciplinar o problema entre o consumidor de boa fé, e suas grandes dívidas.
Nos Estados Unidos, esclarece Wellerson Pereira[4], sociedade em que a apologia do consumo vai de par com a ideologia extremamente difundida de que constitui poderoso elemento de aquecimento da economia, dificilmente se conseguiria relançar a capacidade financeira de consumo dos indivíduos sem um procedimento reparatório que garantisse aos já superendividados um “fresh start”. Nesse sentido, a legislação (“Bankruptcy Code”), de 1978, prevê, para o tratamento do superendividamento, dois procedimentos: a liquidação do capítulo 7º (“straight bankruptcy”) e o ajustamento de dívidas do capítulo 13 (“reorganization”).
Através do procedimento do capítulo 13, o devedor de boa-fé pode apresentar perante o Tribunal de Falências e obter-lhe a confirmação de um plano geral de pagamento de suas dívidas, caso seja aceito pelos credores e não sofra objeção do “trustee”, um oficial encarregado, em cada tribunal, de velar pela efetiva aplicação das normas relativas ao procedimento e de acompanhar o cumprimento dos planos. Ao final do prazo previsto para o cumprimento do plano, o devedor obterá liberação definitiva de todas as dívidas ali previstas. Em caso de inexecução do plano pode ainda o devedor obter do tribunal a eliminação de suas dívidas não cobertas por garantia pessoal ou real, salvo sua negligência ou fraude, entre outras condições.
O consumidor superendividado, pode ainda, recorrer diretamente ao procedimento previsto no capítulo 7º, mediante o qual se obtém, após a liquidação do ativo apurado, a eliminação total (“discharge of debts”) das dívidas não cobertas por garantia pessoal ou real, excetuadas algumas dívidas de natureza especial.
Importa deixar o registro de que, sob pretexto do caráter alegadamente relapso do procedimento e de abusos reiteradamente cometidos na eliminação das dívidas dos consumidores supostamente superendividados, a administração Bush aprovou modificações que resultaram no “Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act”. Tal norma restringe consideravelmente o acesso de consumidores aos procedimentos, sobretudo à liquidação do capítulo 7º e inaugura, entre outros, uma investigação aprofundada (“means test”) dos bens componentes do patrimônio ativo do devedor, preliminarmente à demanda de liquidação, visando a reconduzir as demandas ao procedimento do capítulo 13.
Partindo para a Europa, convém consignar as legislações existentes sobre o tema no Direito Comparado, como a exemplo da França, que inseriu no seu Código de Consumo título específico a partir do artigo L.333-1, sendo identificada, ainda, na Suécia (Lei de maio de 1994), na Alemanha (InsO 5/10/94 EgInsO em vigor em 1º de janeiro de 1999), na Áustria (konkursordnungs, novelle, 1993), na Dinamarca (Gaeldssanering 1984), na Finlândia (Lei em vigor a partir de 08 de fevereiro de 1993), na Bélgica (Lei em vigor a partir de 01 de janeiro de 1999), demonstrando a repercussão, enquanto fenômeno mundial, e a insuficiência das legislações consumeristas ou não, até então destinadas aos particulares, notadamente porque alheias, no mais das vezes, ao fenômeno identificado como fonte de “exclusão social” nos países desenvolvidos. No mesmo sentido, Portugal, os Países Baixos, Reino Unido, Noruega, Suíça e Luxemburgo dispõem de legislação específica ou estão em vias de realizá-la.
No que tange aos países europeus e os consumidores superendividados, o tema reflete uma questão jurídica pendente de necessária homogeneização, via iniciativas comunitárias. Uma das maiores vitórias do processo de construção da União Européia foi o estabelecimento de uma moeda única. Não em vão, temos de reconhecer que a idéia de uma Europa única nasce desde a antiga CECA, com uma projeção mais econômica do que social. Sem oposição, esta unidade monetária não foi parecida com uma harmonização legislativa de proteção que merece o consumidor superendividado. Embora houvessem algumas declarações programáticas por parte de alguns países europeus, não tivemos ainda, nenhuma regulação global concreta, nem sequer iniciativa, pelo que, na ausência de normas comunitárias, resta interessante aproximarmos a experiência desenvolvida à nossa volta.
Comentemos algumas legislações sobre o superendividamento existente nos países europeus a seguir citados:
Alemanha: existem agências de assessoramento aos devedores “Schuldnerberatungsstellen” que funcionam com a ajuda dos denominados “Länder”, nas administrações municipais, juntamente com o setor privado que se relaciona com os serviços financeiros, como os Bancos e as Seguradoras, já que estas entidades se aproveitam das vantagens para seus negócios, vez que oferece um sistema de prevenção de insolvências.
Ao lado do sistema francês, podemos dizer que o alemão é o outro grande exemplo normativo que nos oferece o direito comparado. Em grande proporção, o restante dos países têm optado por um, ou outro modelo (francês ou alemão), como base para desenvolver os seus próprios modelos. A norma alemã (Insolvenzordnung) procura a tutela das economias domésticas, olhando para a causa geradora da situação de superendividamento, isto é, expande a condição de consumidor superendividado a toda pessoa física que não exercite atividade econômica liberal, ou que, inclusive desenvolvendo-a, não possa considerar-se significativa, por não estar dotada de organização empresarial significativa, a exemplo dos profissionais autônomos, ou profissionais liberais independentes.
Por outra parte, existe o denominado procedimento de insolvência do devedor (Verbraucherinsolvenzverfahren), cujo impulso inicial pode corresponder tanto ao credor, como ao próprio devedor, sempre que este tenha buscado um acordo extrajudicial nos seis meses precedentes à sua solicitação. Apresentado pelo devedor um plano de liquidação de dívidas, ouvidos os credores, e instruído o tribunal, pode-se alcançar-se um acordo entre as partes que ponha fim ao litígio. Do contrário, se procederá à inscrição e início definitivo do procedimento de insolvência.
Aberto o procedimento de insolvência, poderá ser solicitado pelo devedor, a liberação do resto da dívida (Restschuldbefreiung). Após a observância de um período de boa conduta sobre a tutela de um fiduciário, que chega aos sete anos, caberá a possibilidade da liberação da dívida restante, mediante ato judicial motivado.
Na França, conforme se deduz da leitura do artigo L.330-1 “del Code de la Consommation”, se compreende por superendividamento a situação das pessoas físicas caracterizada pela impossibilidade manifesta do devedor de boa-fé, de fazer frente ao conjunto de suas dívidas, não profissionais, exigíveis ou vencidas, assim como, aos compromissos de garantir ou satisfazer solidariamente a dívida de um empresário individual ou de uma sociedade, desde que não tenha sido, de direito ou de fato, dirigente desta.
A França reconhece a falência civil do consumidor endividado dando um tratamento eficaz com a liquidação dos bens da pessoa física para o pagamento total das dívidas, quando possível, ou parte dela, tendo a participação judicial durante o processo ou a realização com os credores de acordo, supervisionados pelo juiz para diminuição dos juros, parcelamento da dívida.
A proteção do consumidor na França, para aqueles que são vítimas de eventos independente da sua vontade, como a doença, o desemprego ou o divórcio, concede um "prazo de graça" a todo consumidor-devedor que ficou incapacitado de cumprir seus pagamentos. Ainda pode o juiz suspender a execução das obrigações, e determinar a não incidência de juros sobre as somas das dívidas durante a vigência do benefício que não poderá exceder a dois anos.
Segundo a jurisprudência francesa, dispõe o art. 1.152 do Code Civil que "o juiz pode, mesmo de ofício, moderar a pena que tiver sido convencionada se ela for manifestamente excessiva". Em razão do consumidor estar superendividado, pode o juiz moderar as sanções estipuladas contra o devedor inadimplente.
O “Code de la Consommation” para proteger o consentimento do consumidor no contrato de crédito, impõe ao credor/fornecedor obrigações com um rigoroso formalismo no momento de prestar as informações sobre o crédito ao consumo na fase pré-contratual, que requer um tempo até concluir o contrato, e assim, o consumidor pode refletir acerca do contrato. Com independência de procedimento, nas "comissões de Superendividamento", os tribunais podem reordenar o empréstimo quando o consumidor atravessar dificuldades financeiras, segundo o que é previsto no artigo L. 313-12 do Código do Consumo, em matéria de crédito ao consumo, crédito imobiliário e arrendamento com opção de compra. O Juízes podem também limitar os juros das dívidas. Em suma, na França há a “Commission de surendettement des particuliers”, e a intervenção judicial, em relação ao tema do superendividamento.
Desse modo, podemos concluir com certeza, que a França é o Estado europeu que, com maior afinco, desenvolveu uma política legislativa a favor da proteção do consumidor superendividado, integrando em seu Código de Consumo, medidas concretas a solucionar a situação do devedor.
Desde um ponto de vista subjetivo, a norma se orienta a proteção do devedor particular (“particulier”) ou familiar, excluindo-se, em decorrência, os comerciantes individuais e as pessoas jurídicas, cuja proteção está disciplinada através dos procedimentos concursais.
Conforme dissemos linhas atrás, no procedimento podem distinguir-se duas fases: a primeira de caráter conciliador/administrativa (“règlement amiable”), e a segunda instruída judicialmente (“redressemente judiciare civil”).
Na fase conciliadora, é o próprio devedor quem solicita a intervenção de uma Comissão criada “ad hoc”, para o exame do superendividamento do consumidor (“La Commission de surendettement des particuliers”). Nesta Comissão intervém tanto representantes da Administração, como de associações bancárias ou financeiras, e de consumidores e usuários. Após o estudo da petição do devedor, e a elaboração de um balanço pela Comissão, se propõe um plano de viabilidade, que, em caso de ser aceito pelos credores, poderá por fim ao procedimento.
Se não prosperar o trâmite da fase conciliadora, haverá a instância judicial (“tribunal d´instance”), a que prevê instrução do correspondente procedimento, e é dotada de amplas faculdades, a fim de articular as medidas pertinentes de saneamento da situação do devedor.
Bélgica: Conta com serviços de mediação de dívidas. Este labor pode ser desenvolvido por escritórios de equipes multidisciplinares formados por profissionais de direito, como advogados, procuradores, notários e autoridades públicas ou privadas concertadas para tal. Os Juízes têm faculdades para moderar os juros das dívidas, e conceder um prazo maior para pagamento. Certo é, que o esquema belga segue a linha marcada pelo sistema francês. Por uma parte, existe um sistema de solução conciliador ou amigável, que pode socorrer o devedor por iniciativa própria, ou com intervenção ser ordenada pelo órgão judicial para a busca inicial de uma solução ao excessivo endividamento do usuário. Se resultar infrutíferos os esforços desenvolvidos nesta fase de composição, se outorgará ao Juiz, a faculdade de estabelecer um projeto de viabilidade econômica limitado a um prazo máximo de cinco anos, e cujo acatamento resulta obrigatório, tanto para o devedor, como para seus credores.
Áustria: Seguindo a norma alemã, o legislador austríaco optou por um sistema de concurso privado “privatkonkurs”, para permitir ao consumidor físico, alheio às atividades mercantis, fazer frente à situações de superendividamento.
O sistema austríaco, de caráter judicial, se configura como um procedimento subsidiário de acordo conciliador entre as partes. Isto é, exige a voluntariedade do devedor de haver procurado um acordo com seus credores. Uma vez constatada a impossibilidade de solução extrajudicial, o concurso privado possibilita três possíveis atuações configuradas como remédios progressivos para a satisfação da dívida:
a) Suspensão forçosa de pagamentos (“Zwangsausgleich”). Chamado à instância do devedor, requer-se o beneplácito da maioria dos credores que representem ao menos a metade do passivo, e a conformidade do tribunal. A suspensão de pagamentos leva implicitamente o compromisso do consumidor de saldar, em um período não superior a cinco anos, 30% de suas dívidas.
b) Plano de pagamento com execução patrimonial (“Vermögensverwertung und Zahlungsplang”). Avaliada a situação patrimonial do devedor, e constatado em seu balanço, o passivo inassumível de modo imediato, se procede a execução patrimonial do devedor, com a salvaguarda de uns limites, aceitando-se, pelos credores maioritários, um plano de pagamento projetado sobre os futuros ganhos do consumidor. Este plano requer a conformidade judicial.
c) Procedimento de liquidação (“Abschöpfungsverfahren”). Frustrados os procedimentos anteriores, ao devedor caberá a possibilidade de solicitar judicialmente a implantação do procedimento de liquidação, uma vez já esteja executado seu patrimônio. Iniciado o procedimento, o consumidor fica obrigado durante um período de sete anos a procurar uma atividade econômica que lhe permita, com um mínimo de subsistência, entregar a um fiduciário judicial seus ganhos. Se o devedor for capaz de sanear a metade de seu passivo em um prazo de três anos, ou 10% em um prazo de sete poderá obter a liberação do resto da dívida.
Dinamarca: O Direito concursal dinamarquês, depois da reforma de 1984, permite também aos consumidores superendividados (pessoas físicas sem atividade empresarial) socorrer-se a um procedimento de saneamento de dívidas, lá denominado de “Gaeldssanering”. Apresentada a petição ao órgão judicial junto com uma lista de seus credores, documentação fiscal confirmando seu estado patrimonial, e um plano de viabilidade, o julgador dará um pronunciamento sobre o projeto econômico formulado. Admitida a solicitação de saneamento, esta será comunicada aos credores, que poderão alegar quantas questões julgarem pertinentes.
Da norma dinamarquesa, se destaca sua especial sensibilidade em relação à possíveis situações calamitosas do devedor, dispensando uma particular tutela para os desempregados, aposentados, pobres, ou ainda, para outras situações de infortúnio.
Espanha: A legislação espanhola não contempla medidas para a limitação temporal da responsabilidade do devedor, que lhe permita uma nova oportunidade, acerca de sua situação de superendividamento, como ocorre em outros países europeus. Reter, de maneira indefinida no tempo, o patrimônio do superendividado, determina um impedimento muito grave para que ele e sua família possam "se recuperar" economicamente, pois não há medidas que limitem essa responsabilidade global, nem sequer em situações extraordinárias, como um desemprego involuntário, ou uma doença grave. As normas deste país prevêem certas medidas que podem ajudar o consumidor superendividado a amenizar uma situação econômica desfavorável transitoriamente:
A Lei de Crédito ao Consumo estabelece como medida de proteção ao consumidor o “reembolso antecipado” do crédito em qualquer momento. A Lei não permite pactos contrários deste direito, ou que o limitem ao reembolso de uma quantia mínima determinada. O reembolso parcial do crédito permite ao consumidor a redução, temporal ou quantitativa, dos prazos que se desembolsam, e é um direito que tem em qualquer momento durante a vigência do empréstimo. Sem embargo, como contraprestação, a norma reconhece ao que faz o empréstimo, o direito à percepção de uma compensação econômica, ainda que sujeita a uma série de limites.
A Lei de Venda a Prazos de Bens Móveis, regula de forma parecida o direito do comprador ao reembolso antecipado do empréstimo, embora, neste caso, determine que os reembolsos parciais deverão ser superiores à 20% do preço do bem, prevendo ainda, que as partes podem acordar uma redução, e inclusive, a eliminação desta limitação.
Ademais, em casos de superendividamento passivo, esta lei estabelece que juízes e tribunais, com caráter excepcional, e em casos como desgraças familiares, greves, acidentes de trabalho, longa enfermidade, possam consignar novos prazos ou alterar os convênios acordados, determinando o acréscimo no preço, pelos novos prazos concedidos para pagamento.
Outra das possíveis vias de solução para se pressupor que uma pessoa tenha dificuldades para fazer frente ao seu crédito, é a que se denomina renegociação da dívida, uma medida adequada para amenizar a situação de superendividamento. É um assunto de boas práticas bancárias, não sendo uma obrigação para as entidades, pelo que o consumidor carece de instrumentos legais que lhe permita exigir una renegociação de dívida. Ademais, o consumidor pode socorrer-se depois da aprovação e da entrada em vigor da nova Lei de Insolvência (concursal), ao concurso judicial de particulares, um novel procedimento judicial, que foi utilizado pela primeira vez por um casamento catalão, em 2005, com o fim de conseguir a paralisação de um embargo sobre os bens, chegar a um acordo sobre a dívida a pagar, e obter tempo para cumprir-la. Se trata de uma via pouco utilizada na Espanha. Em 2006, foram declaradas 139 insolvências/concursos de pessoas físicas, menos de 10 % do total, isto porque não é a via mais apropriada para a proteção dos consumidores superendividados, pois contém procedimentos liquidatórios de execução coletiva, e protege mais os juros dos credores, do que o interesse do devedor. Ademais, costuma ser um processo muito caro.
A declaração de concurso somente se pode realizar se a insolvencia do devedor for atual ou iminente, e podem solicitar-la, tanto o devedor, como os credores. O consumidor costuma utilizar o concurso como um instrumento afim de "parar" os pagamentos temporariamente, como também, para poder resolver alguns contratos ou reabilitar outros deverá contar com certa capacidade de reserva financeira ou imobiliária, e, salvo que o devedor disponha de bens para garantir os pagamentos, a opção do convênio/acordo, será pouco atrativa para os credores. Durante a tramitação do procedimento concursal, se determina que pessoas estejam a cargo do devedor para que possam subsistir durante o processo. Ademais, o Juiz deve também dispor a respeito dos contratos vigentes (aluguéis de casas, contas de luz, gás, água e telefone) necessários para a subsistência familiar, e dispor sobre a resolução/finalização dos mesmos, ou sua continuidade.
5. PREVENÇÃO E TRATAMENTO PARA AS SITUAÇÕES DE SUPERENDIVIDAMENTO
“A utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos para mais longe. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Então para que serve a utopia? Serve para isto: para caminhar” (E. Galeano).
Primeiramente, sugere-se que o consumidor se faça o teste do superendividado. Se houver resposta “SIM”, a alguma das situações a seguir transcritas, a pessoa pode estar endividada: a) Minhas dívidas equivalem a mais de 50% do que eu ganho; b) Preciso trabalhar mais para pagar minhas dívidas no final do mês; c) Meu salário termina antes do final do mês; d) Minhas dívidas estão sendo causa de desavença familiar; e) Não consigo pagar em dia as contas de luz, água, alimentação, etc.; f) Sofro de depressão em razão das dívidas; g) Meu nome está registrado nos cadastros de devedores; h) tenho atrasado o pagamento de minhas obrigações; i) Já pedi dinheiro emprestado a familiar ou a amigo para saldar minhas dívidas; j) Minha família não tem conhecimento de minhas dívidas.
Outro aspecto que deveria ser observado como prevenção ao dilema seria o de impor deveres aos fornecedores de crédito, como os sugeridos por Luciano Tim[5], in verbis: a) Deveres de cuidado, proteção, segurança e precaução (os quais aplicados ao fornecedor de crédito significam cautela no momento de aconselhamento ao consumidor; cuidado com a sua integridade física, que deverão ser protegidos em assaltos em suas agências; não colocá-los indevidamente em cadastros de devedores inadimplentes como o CADIN, SERASA); b) Deveres de informação e esclarecimento (no caso deve haver minuciosa explicação das consequências da dívida para o futuro do consumidor de crédito, especialmente nos mútuos habitacionais e outros de significativo vulto); c) Dever de prestação de contas (informar a respeito da eventual cobrança de impostos); d) Deveres de lealdade e cooperação (por exemplo, eximir-se de práticas desleais e abusivas que possam causar onerosidade excessiva ao consumidor); e) Dever de sigilo (não fornecer dados sobre seus clientes, salvo contra ordem judicial).
Nosso CDC, em seu inciso II, do art. 6º, possui grande importância para a prevenção do superendividamento, pois é a educação e divulgação sobre o consumo adequado, com edição de cartilhas, pesquisas de mercado e debates para alertar os consumidores com relação a produtos mais baratos, que garante a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações, para que o consumidor não assuma o contrato de crédito sem antes, refletir a sua possibilidade financeira e as condições contratuais. A responsabilização (civil, penal e administrativa) do mau fornecedor de crédito é imprescindível.
O tratamento do superendividamento no Brasil é possível e necessário para que o consumidor/devedor volte a ter dignidade e não seja condenado pelo resto da sua vida como um mau pagador, porque se os consumidores agiram de boa-fé e estão com acúmulos de dívidas, são merecedores de uma chance para poder se refazer financeiramente.
As magistradas gaúchas Káren Bertoncello e Clarisse Costa Lima, em adesão ao Projeto Conciliar é legal, elaboraram um plano para o tratamento das situações de superendividamento do consumidor no Brasil. Foram propostas duas modalidades de conciliação, a paraprocessual e a processual, isto para todas as dívidas, excluindo-se as alimentícias, fiscais, os créditos habitacionais, e as dívidas decorrentes de indenização judicial por prática de ilícitos cíveis ou penais.
Foi considerarado endividado, o cidadão (pessoa física), de boa-fé, que não tenha contraído crédito para o exercício de suas atividades profissionais e com qualquer renda familiar. Em relação ao PROCEDIMENTO, foi adotado o seguinte:
1) Preenchimento de formulário padrão com as informações prestadas pelo superendividado, o qual será advertido de que a sua boa-fé será medida de acordo com a veracidade dos dados fornecidos. O formulário estará disponível, inicialmente, na Direção do Foro, na Defensoria Pública e/ou nos Juizados Especiais Cíveis, onde não for criado setor próprio de conciliação. O procedimento será isento de custas processuais, uma vez que a condição de superendividado equivale à previsão legal do artigo 1º, da Lei n.1.060/50 (ser o indivíduo pobre/carente).
2) Disponibilização de pauta de audiência já no momento do preenchimento do formulário-padrão, ficando o superendividado intimado para a audiência de renegociação.
3) Remessa de carta-convite padrão, preferencialmente via eletrônica, para a audiência de renegociação a todos os credores arrolados pelo superendividado. Para tanto, será ajustado o fornecimento de endereço eletrônico dos credores.
4) AUDIÊNCIA DE RENEGOCIAÇÃO: sessão coletiva com possibilidade de sessões individuais com cada credor e o superendividado, preferencialmente no mesmo dia e turno, a fim de preservar a agilidade do Projeto e a garantia da preservação do mínimo existencial do superendividado.
5) ACORDO EXITOSO NA CONCILIAÇÃO PARAPROCESSUAL: homologação pelo Juiz de Direito coordenador do Projeto, constituindo título executivo judicial.
6) ACORDO EXITOSO NA CONCILIAÇÃO PROCESSUAL: homologação pelo Juiz de Direito coordenador do Projeto, constituindo título executivo judicial.
7) ACORDO INEXITOSO NA CONCILIAÇÃO PARAPROCESSUAL: o superendividado é orientado a procurar a satisfação do seu direito pelas vias ordinárias, na Justiça Comum ou JEC.
8) ACORDO INEXITOSO NA CONCILIAÇÃO PROCESSUAL: o processo será devolvido à vara de origem para o regular prosseguimento.
Sobre os EFEITOS DA RENEGOCIAÇÃO a serem consignados no termo de acordo, reza a proposta que: 1) As dívidas vencerão antecipadamente caso o superendividado: a. Preste dolosamente falsas declarações ou produza documentos inexatos com o objetivo de utilizar-se dos benefícios do procedimento de tratamento da situação de superendividamento; b. dissimule ou desvie a totalidade ou parte de seus bens com objetivo de fraudar credores ou a execução; c. sem o acordo de seus credores, agrave sua situação de endividamento mediante a obtenção de novos empréstimos ou pratique atos de disposição de seu patrimônio durante o curso do procedimento de tratamento da situação de superendividamento; 2) Incidência de cláusula penal; 3) Acordo conjunto, identificando valor de cada dívida e seu respectivo credor.
Também existe no Brasil, a mais completa previsão normativa para o tratamento e a prevenção, em relação à questão do superendividamento. Trata-se do Anteprojeto de Lei, elaborado pelas Professoras Cláudia Marques, Clarissa Lima e Káren Bertoncello[6], contendo, em breve resumo, os seguintes preceitos:
a) A necessidade de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal), bem assim, o objetivo da República em erradicar a marginalização (artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal), e que o superendividamento é um fenômeno de exclusão social dos consumidores pessoas físicas e suas famílias, pois o benefício da falência é reservado aos comerciantes. Também a necessidade da preservação de quantia mínima capaz de assegurar a vida digna do indivíduo e seu núcleo familiar destinada à manutenção das despesas de sobrevivência, tais como água, luz, alimentação, saúde, educação, entre outros.
Considerando que a luta contra a pobreza visa a incluir grande parte da população brasileira na sociedade de consumo e de crédito, sempre com respeito ao princípio da igualdade (Art. 5º, caput e inciso I, da Constituição Federal), assegurando uma proteção dos mais fracos e vulneráveis, em especial em casos de quebra ou ruína dos consumidores (Art. 5º, XXXII, da Constituição Federal). Que o Estado deve promover a defesa do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal), e que esta é princípio da ordem econômica constitucional (artigo 170, V, da Constituição Federal), como limitador à livre iniciativa, inclusive nos contratos e nos serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária frente a consumidores. Considerando-se ainda, a grande expansão do crédito ao consumidor pessoa física e a sua importância estratégica para a manutenção do desenvolvimento econômico-social do país, e que o consumo de produtos e serviços principais passou a ser acompanhado quase sempre de uma operação de crédito acessória, sem que o consumidor tenha pleno conhecimento ou clareza dos negócios acessórios e principais de crédito celebrados, caracterizados pela grande variedade e complexidade de instrumentos
Ademais, deve-se levar em conta, que a oferta desses serviços ampliou-se enormemente, em razão da globalização, dos avanços tecnológicos, dos novos canais de distribuição eletrônica e da integração dos mercados, dos quais derivam novos produtos financeiros e métodos de marketing. Se, por um lado o crédito constitui uma ferramenta central para o desenvolvimento das modernas economias, por outro, ele pode acarretar conseqüências severas para o consumidor, o mercado e a sociedade como um todo. Por fim, levando-se em consideração que o contrato de crédito envolve não apenas riscos financeiros ao consumidor, mas também eventuais riscos sobre sua qualidade de vida, dignidade, saúde e segurança, é necessário que a concessão de crédito seja feita de forma transparente e responsável. Que os consumidores tem direito a receber informações adequadas sobre as condições e o custo do crédito, bem como sobre suas obrigações, antes da celebração do contrato de crédito, para que possam tomar as suas decisões com plena autonomia e liberdade de escolha (artigo 6º, inciso II, combinado com artigo 52, ambos do Código de Defesa do Consumidor), e que, também durante a execução do contrato e a cobrança de dívidas, o princípio da boa-fé impõe cooperação, cuidado e lealdade no tratamento com os consumidores.
b) O Anteprojeto enuncia como direitos básicos do consumidor superendividado, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e da boa-fé: I - Receber informações e aconselhamento em relação à adequação do crédito pretendido e crédito anexo ao contrato principal de consumo; assim como ter acesso prévio à cópia dos contratos, e, a qualquer momento, à cópia escrita dos contratos de consumo, em especial os envolvendo crédito; II - Receber uma oferta escrita, na qual deverá constar a identidade das partes, o montante do crédito, a natureza, o objeto, a modalidade do contrato, o número de prestações, a taxa de juros anual e o custo total do crédito. A oferta deverá permitir uma reflexão sobre a necessidade do crédito e a comparação com outras ofertas no mercado; III - Arrepender-se nos contratos de crédito ao consumo, na forma desta lei, em período determinado, possibilitando-lhe desistir do contrato firmado sem necessidade de justificar o motivo e sem qualquer ônus para prevenir o superendividamento; IV - Ser protegido contra toda publicidade abusiva e enganosa, em especial aquela que oculte, de alguma forma, os riscos e os ônus da contratação do crédito, ou que façam alusão a “crédito gratuito”; V - Ser protegido contra a concessão irresponsável de crédito, o marketing agressivo e o tratamento irresponsável dos dados do consumidor; VI – Ter facilitada a renegociação global de suas dívidas, em especial das parcelas mensais a pagar e dos contratos de crédito, para ter preservado o seu mínimo existencial, VII- Encaminhar pedido de reestruturação de seu passivo global, em caso de inexitosa fase conciliatória com um ou mais de seus credores; VIII- Receber estas e outras ações e políticas de prevenção e tratamento da situação de superendividamento, de educação para o consumo de crédito consciente, educação financeira e de organização do orçamento familiar
c) Como medidas PREVENTIVAS, consta no Anteprojeto, a promoção do endividamento, ou seja, a identificação completa de toda e qualquer publicidade; a vedação da publicidade abusiva ou enganosa, e o dever de informação e de conselho, que todo fornecedor e qualquer fornecedor de crédito devem fazer. Ademais, só se permitirá consignação em folha de pagamento, se houver a preservação do mínimo existencial do consumidor. Haverá ainda, a inversão do ônus da prova, que caberá ao fornecedor, além da possibilidade do consumidor desitir, no prazo de 07 (sete) dias, da contratação do crédito. O direito de retratação também se encontra presente nos contratos de crédito.
d) Como sanção pelo descumprimentos das normas acordadas, o fornecedor responderá solidariamente, ficando ainda, sujeito às seguintes sanções: I – perda dos juros moratórios; II – perda da correção monetária; III – perda dos juros remuneratórios; IV – multa em favor do Fundo de Negociação do Endividamento; V - remissão das dívidas; VI – imposição de contrapropaganda e/ou avisos públicos de cessação da prática comercial.
e) São medidas atinentes ao TRATAMENTO (reestruturação do passivo), que constam do citado Anteprojeto: Acesso do consumidor endividado, de boa-fé, ao Poder Judiciário, via procedimento de tratamento do seu superendividamento, tudo visando regularizar sua situação. Como modalidades de tratamento ao consumidor, tem-se o ACORDO CONSENSUAL (conciliação obrigatória, feito por um Juiz ou conciliador) e a fase JUDICIAL (não havendo conciliação, o Juiz dá a sentença, com eficácia de título executivo), sendo COMPETENTE para analisar os casos, a Justiça Estadual de onde reside o devedor. Dada a sentença (na fase judicial), o Juiz deve apreciar: I – as contestações apresentadas; II – a suspensão dos encargos de mora resultantes da eventual ausência de credor na audiência de conciliação e da decisão de admissibilidade; III – o plano de reestruturação com objetivo de restabelecer a situação financeira do devedor, permitindo-lhe, na medida do possível, pagar as suas dívidas e garantindo-lhe simultaneamente o bem-estar da sua família e a manutenção de uma vida digna; IV - a suspensão ou a extinção dos processos porventura em tramitação; V - as infrações que violem os interesses difusos, coletivos ou individuais dos consumidores, informando os órgãos competentes.
Sobre o plano de reestruturação (item III, grifado acima), deve ser visto que o mesmo observará o prazo máximo de 4 (quatro) anos, e poderá conter medidas de temporização ou reescalonamento do pagamento das dívidas, de remissão das mesmas, de redução ou de supressão da taxa de juros, de consolidação, de criação ou de substituição das garantias, entre outras medidas indispensáveis para adequar o passivo às possibilidades de cumprimento efetivo do devedor em questão. Ele ainda deverá observar a reserva do mínimo existencial, de modo que sua execução não venha a prejudicar a manutenção básica do consumidor e de sua família ou o pagamento das despesas correntes de sobrevivência, sem prejuízo da manutenção do bem de família e da impenhorabilidade prevista no art. 649 do CPC.
Que este Anteprojeto se converte em Lei, o mais breve possível.
6. O SUPERENDIVIDAMENTO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. (Fernando Pessoa)
Como declarou Carolina Fernandes[7], nas modernas sociedades, tipicamente consumistas, não há dúvidas de que o superendividamento do consumidor acarreta em prejuízos à sua dignidade como pessoa humana. O consumidor superendividado tem como resultado imediato do acúmulo das dívidas a perda do crédito cristalizada, sobretudo, na conhecida negativação de seu nome no rol dos maus pagadores. São os denominados bancos de dados de proteção ao crédito.
O consumidor que tem a inscrição em tais cadastros, fica impossibilitado do exercício de qualquer atividade que prescinda de análise de crédito. Logo, resta prejudicado o exercício de atividades corriqueiras da vida moderna, uma vez que muitas famílias utilizam o crédito como parte indispensável de gestão do orçamento familiar se endividando para custear despesas de manutenção diária do lar, comuns e cotidianas e, até mesmo, despesas com serviços indispensáveis que não são providos pelo Estado de forma adequada. José Reinaldo de Lima Lopes[8], assevera que não são poucos os que se endividam para pagar despesas corriqueiras, despesas de manutenção diária ou despesas com serviços indispensáveis que já não são providos pelo Estado, ou que nunca o foram adequadamente. Parte do endividamento que preocupa, deriva do aumento de recursos necessários para prover a subsistência. O crédito pessoal, adiantado sob a forma de cartão de crédito ou de cheque especial, crédito sem garantias reais, portanto, constitui substancial parcela do crédito ao consumo.
Faz-se obrigatório, demonstrar que o uso do crédito como forma de adquirir bens de consumo não pressupõe dizer que o consumidor é irresponsável ou inconsequente. Este conceito, há muito tempo já fora superado. O crédito faz parte da vida moderna em sociedade sendo necessário para gestão dos compromissos básicos como catalisador do desenvolvimento social e econômico do país. Acerca do assunto, Brunno Giancoli[9], nos mostrou que o crédito é o principal mecanismo sócio-jurídico disponibilizado ao homem moderno para viabilizar seus sonhos, a exemplo da casa própria, dos veículos automotores, além dos bens de consumo típicos da modernidade, como celulares e computadores.
Assim, o consumidor toma o crédito tendo em vista a manutenção das condições de sustentabilidade de sua família, pelo que a perda do crédito, em virtude do superendividamento, afeta a capacidade de manutenção e equilíbrio da vida familiar, não somente do ponto de vista de efetivação e continuidade do consumo, mas, também, em virtude de todos os prejuízos morais, sociais e, algumas vezes, médicos, decorrentes da situação de excessivo endividamento. Salta aos olhos, portanto, que a situação de superendividamento afeta a dignidade humana em vários aspectos, sejam eles sociais, materiais, em virtude da perda da capacidade de consumo de bens básicos como alimentação e medicamento, chegando a ter alcance e comprometimento moral, social e médico/ psicológico, e também no âmbito familiar.
Segundo leciona o Professor Fábio Konder Comparato[10] a dignidade humana representa: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Nos ensina Alexandre de Moraes[11], que a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
O consumidor superendividado perde a capacidade de consumo pela falta de receita para custeio das necessidades básicas da vida, em virtude do amplo comprometimento dos rendimentos mensais com dívidas. Impossibilitado de arcar com pagamento, tanto das dívidas, quanto das despesas corriqueiras do dia-a-dia, o consumidor e todo núcleo familiar são submetidos à situação de sofrimento e angústia, tendo afetada a dignidade de todo grupo familiar. Assim, nas palavras de Cláudia Lima Marques, "o endividamento assume uma dimensão patológica, com repercussões econômicas, sociais, psicológicas e até médicas, quando o rendimento familiar não é mais capaz de suportar o cumprimento dos compromissos financeiros".
Enfim, resta plenamente demonstrado que o superendividamento afeta a dignidade da pessoa humana. Seguem algumas impressões colhidas pela autora Cláudia Lima[12], em pesquisa empírica realizada com devedores superendividados, a saber: a primeira impressão, dominante no discurso de todos os entrevistados, é a de enorme confusão e falta de clareza discursiva, combinada com uma certa apatia na voz e nos movimentos, choro frequente e uma expressão de cansaço e desanimo. Quase todos procuravam justificar-se, evidenciando claramente sentimentos de culpa e vergonha. Esses sentimentos, porém, surgiam no meio de uma convicção mais ou menos consolidada de que tinham direito a ser ajudados porque nunca procuram defraudar ninguém, nomeadamente os credores. O estudo também mostrou o fato de que os consumidores sentem muita culpa e vergonha frente aos filhos e ao círculo social de amizade, o que pode levar em algumas situações ao completo isolamento do consumidor da convivência social.
Uma segunda constatação, muito forte, também é a da culpa e da vergonha que sentem em relação aos filhos. Essa culpa resulta na sensação de fracasso na liderança de uma vida familiar estável e equilibrada. Uma terceira observação é a de que a socialização é quase sempre afetada de forma grave pela situação do superendividamento. Os indivíduos sofrem habitualmente uma reconfiguração das suas relações sociais. O que mais sobressai nestes indivíduos é o afastamento social por iniciativa dos próprios superendividados.
Por fim, conclui-se que, quando se assiste a uma combinação de perdas laborais com dificuldades financeiras facilmente se percebe uma degradação da auto-estima e da afetividade, como se pôde comprovar em diversas entrevistas. A incapacidade de continuar a controlar a ordem do rendimento e a progressão da despesa não se esgota numa pura questão financeira. Já se sublinhou existir, em muitos casos, uma espécie de exílio social no que diz respeito as relações de amizade. As conseqüências do superendividamento para os agregados familiares, sobretudo quando associado ao desemprego, requalificam não só as relações sociais e as relações com os filhos, mas também, as relações sociais e a relação dos indivíduos consigo mesmos.
Nota-se portanto, que a situação do consumidor devido ao superendividamento é incompatível com o princípio basilar de toda a legislação brasileira, que é o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/ 88 e o artigo 4º do CDC/ 90), que não tem condições de manter o mínimo essencial para a sua sobrevivência, vendo-se totalmente comprometido com as despesas rotineiras (alimentos, luz, água, aluguel, impostos).
Destarte, o superendividamento muito mais do que uma questão meramente econômica, traz em si uma problemática abrangente do ponto de vista social e jurídico, pois representa grande ofensa à dignidade da pessoa humana.
Importante é registrar o pensamento de Vicente Toledano Barrerro, que narra em seu artigo "La protección al consumidor sobreendeudado: la experiencia francesa" que, recentemente, começou-se a estudar, o consumo compulsivo ou aditivo em seu aspecto psicológico, tendo apresentado semelhança com os problemas de cleptomania, ludopatia e bulimia. De acordo com vários estudos realizados nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Reino Unido, encontrou-se um perfil de consumidor que compra por motivos que não estão diretamente relacionados com a posse real de bens ou o desfrute de serviços e que repete de forma persistente esta conduta, ainda que conduza a severas consequência de ordem econômica, inclusive moral.
Sobre as ligações do endividamento com as desordens sociais e dramas familiares, Sophie Gjidara traz exemplos internacionais verdadeiramente impressionantes, defendendo a adoção pelos poderes públicos de um tratamento não somente financeiro ou jurídico, mas também psicológico, patológico e médico. Os aspectos sociológicos do endividamento são particularmente chocantes em certos países como Itália, onde o problema da usura está na origem de verdadeiros dramas urbanos. A usura se apresenta como um drama social e uma prática impune, engradando desordens sociais graves ou ameaça de roubo e suicídio. Nem mesmo o Japão, modelo de economia, escapou ao fenômeno do endividamento que foi potencializado com a entrada do cartão de crédito. O sucesso da moeda plástica dobrou o número de particulares inadimplentes e é acusado de ser responsável por inúmeros suicídios. O problema é tão grave que o governo teve que multiplicar a vigilância contra a utilização desmedida dos cartões de crédito.
Geraldo de Farias Martins da Costa[13], enuncia que a cobrança ofensiva de dívidas fere o direito à honra da pessoa, que é direito da personalidade, eis que naquela o credor confunde o plano econômico do devedor com o plano pessoal íntimo, de amor próprio, que é a honra, bem da personalidade pertencente ao devedor e que deve ser resguardado, protegido na relação de consumo. Os próprios cadastros de proteção ao crédito citados podem ser tidos como atentatórios à dignidade humana, mas este, diante da complexidade e várias opiniões existentes sobre o assunto, é tema para ser abordado em outro trabalho.
Importante evidenciar que a dignidade do consumidor diante do superendividamento não é apenas contemplada do ponto de vista interno, embasados pela angústia, dor e sofrimento, mas também do ponto de vista externo sendo, nas palavras já mencionadas de Fábio Konder Comparato: "um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável" e, como tal, merece a tutela do Estado. Sobretudo por ser contemplado na Constituição Federal do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana.
Em homenagem ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a Jurisprudência brasileira vem protegendo o consumidor superendividado de boa-fé, como se observa nos trechos do voto decisivo da Desembargadora Judith dos Santos Mottecy, nos autos da apelação cível nº 70014114458-RS,, prolatado em 20 de março de 2008, que versou sobre superendividamento em caso de empréstimo consignado:
" (...) Na tentativa de prover ao mutuário o mínimo para sua sustentação, criou-se, no meio jurisprudencial, a determinação de que os descontos devessem ser limitados em 30% dos rendimentos auferidos pelo contraente do empréstimo. Nessa esteira, pontual decisão do eminente desembargador Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, em julgamento de Agravo de Instrumento nº 70016870099, cujo ementário vai abaixo transcrito:"AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. Pedido formulado por servidor estadual de cancelamento dos descontos em folha de pagamento das parcelas relativas a empréstimos intermediados por associação de classe. Revisão da posição do relator, diante do novo entendimento jurisprudencial majoritário do 2º Grupo Cível, reconhecendo a validade da cláusula de autorização dos descontos direto em folha de pagamento, mas limitando a sua eficácia ao percentual máximo de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor, aplicando analogicamente a legislação estadual acerca do tema. Preservação do mínimo existencial, evitando que o superendividamento coloque em risco a subsistência do servidor e de sua família, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.(...)". (grifamos).
A título de ilustração, citamos outro julgado sobre o tema, in verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - SUPERENDIVIDAMENTO - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR- (...) O OFERECIMENTO DE CRÉDITO PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS DEVE SER FEITO DE FORMA RESPONSÁVEL, DESESTIMULANDO O SUPERENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES. – (....) - Razoável que os descontos sejam fixados no limite de 30% do valor do salário da autora, conforme a jurisprudência deste E. Tribunal. - Apelo da autora - Danos morais corretamente fixados. - Observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ao postulado da vedação ao enriquecimento sem causa. - Acerto da sentença. - Aplicabilidade do disposto no art. 557, caput do CPC. - NEGADO SEGUIMENTO AOS RECURSOS. (2009.001.51393 – APELACAO, DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 01/10/2009 - QUARTA CAMARA CIVEL)”. (grifamos)
Como bem declarou Carolina Curi Fernandes, na obra já citada, tutelar é o mesmo que proteger, amparar e defender. O consumidor superendividado de boa-fé, merece a tutela do Estado e tal prerrogativa é dever diante do paradigma maior do princípio da dignidade da pessoa humana, contemplado no Art. 1º da Constituição Federal do Brasil.
Necessitamos da criação de práticas de prevenção ao superendividamento, ainda na fase pré-contratual, além de repressão diante de situações de abusividade e vantagem manifestamente excessiva ao consumidor. Para tanto, defende-se, em análise de direito comparado europeu, a aplicação dos deveres de renegociação, cooperação e conciliação. E daí emergiu a importância de criação de legislação especifica para tratamento do fenômeno no Brasil. No que tange à atuação do Estado-Juiz, restou evidenciado que já existem posicionamentos favoráveis à tutela do consumidor superendividado no país, pelo que, tais posicionamentos, ainda que sejam tímidos e restritos à algumas regiões, devem ser repetidos em todas as jurisdições nacionais.
Pelo exposto, conclui-se que, tutelar o consumidor superendividado, significa dar efetividade à justiça social contemplada pela Constituição Federal do Brasil, que privilegia o princípio da dignidade da pessoa humana.
7. SOLUÇÕES/PROPOSTAS PARA O PROBLEMA
“A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de qualquer falsidade, como o óleo sobre a água” (Miguel de Cervantes)
Através do presente trabalho investigativo, podemos apontar as seguintes soluções/propostas, para se tentar resolver, ou minimizar o fato do superendividamento do consumidor no Brasil:
1) Implementação de uma Política Nacional das Relações de Consumo, nos moldes do que elencam os artigos 4º e 5º, do CDC, a fim de se efetivar uma Política Pública Estatal que atenda as necessidades básicas dos consumidores, nos seguintes moldes: “Art. 4º - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
Art. 5° - Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:
I - manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;
II - instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;
III - criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo;
IV - criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo;
V - concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor”.
2) Realização de ações junto aos Órgãos de Defesa de Proteção dos Consumidores no Brasil (PROCONs), nos seus núcleos de atendimentos. No Brasil, alguns Estados como São Paulo e Rio Grande do Sul, há os Procons, com serviços específicos para os consumidores superendividados, contendo atendimento, proteção e defesa do consumidor superendividado, bastanto comparecer nestes órgãos para ser atendido e orientado. Em todos os outros Estados brasileiros os referidos serviços também podem ser prestados pelos referidos Procons.
3) O consumidor deve ser orientado pelo Estado (órgãos competentes), para observar e seguir a risca, os “dez mandamentos” contidos na cartilha do consumidor superendividado, preparada pelo Poder Judiciário ddo Rio Grande do Sul, a seguir transcritos:
a) Em primeiro lugar, nunca gaste mais do que você ganha, o que indica que você terá problemas futuros;
b) O cenário econômico indica para uma grande oferta de crédito fácil para os consumidores, com baixas taxas de juros e facilidades de parcelamento. No entanto, não se iluda com esta oferta, veja se você realmente necessita do empréstimo e se terá condições de pagá-lo no futuro;
c) Antes de adquirir qualquer dívida, converse com sua família. Isso porque gastos imprevistos podem surgir, o que complicará sua situação na hora de pagar a dívida;
d) Quando assumir uma dívida, saiba todos os procedimentos para pagamento e exija-os por escrito. Leia atentamente o contrato;
e) Exija informações sobre as taxas de juros anuais e mensais e as compare entre instituições, para reconhecer a mais vantajosa de acordo com seu orçamento;
f) Exija o prévio cálculo do valor da dívida e veja se ela se encaixa em seu orçamento, ou seja, se é compatível com a renda;
g) Compare as taxas de juros concorrentes;
h) Não assuma dívidas para outras pessoas, as quais podem não arcar com o compromisso;
i) Nunca assuma dívidas nem forneça seus dados pela internet, meio pelo qual você poderá ser vítima de fraudes;
j) Sempre reserve parte de seu salário para as contas essenciais e nunca o comprometa para pagamento de dívidas.
4) Exigir o consumidor, o cumprimento integral dos artigos 30, 31 e 52, todos do Código de Defesa do Consumidor-CDC, in verbis:
“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros;
III - acréscimos legalmente previstos;
IV - número e periodicidade das prestações;
V - soma total a pagar, com e sem financiamento”.
5) Que o Estado e a sociedade façam chegar ao conhecimento do consumidor, pelos meios de divulgação possíveis, a fim de que ele tenha plena ciência, os termos elencados no Anteprojeto de Lei (como falamos no item 5, desta pesquisa), elaborado pelas Professoras Cláudia Marques, Clarissa Lima e Káren Bertoncello, dispondo sobre a prevenção e o tratamento das situações de superendividamento de consumidores, pessoas físicas de boa-fé.
6) Por fim, buscar o consumidor que se julgar prejudicado, o Ministério Público-MP, as associações de defesa do consumidor, para se evitar o endividamento, devendo haver participação ativa da sociedade (pais, alunos, professores, etc.), em relação aos esclarecimento e orientações sobre o problema do endividamento ao consumnidor.
A questão do superendividamento pode levar o consumidor a ter seu patrimônio imobilizado para solver dívidas, como assevera Cláudio Santos[14], não se querendo que o Estado pague as dívidas do cidadão. Porém, o que fica flagrante, é a hipossuficiência marcante do povo brasileiro no controle de suas contas, tanto no aspecto jurídico como psicológico, pelo mercado feroz e impensado que o atinge. Não nos olvidemos de que o superendividamento não marca somente o consumidor, mas a própria coletividade e é capaz de desequilibrar a balança econômica de um país. Não bastam transparência e boa-fé contratuais, há a necessidade política imediata para a conscientização da massa populacional sobre sua capacidade financeira, bem como lembretes de que a cada ano valores utilizados em bens podem carecer nas responsabilidades corriqueiras. Por fim, convém registrar que o Estado tem todos os instrumentos para esse controle e permanece omisso, podendo ser responsabilizado e coagido a buscar essa consciência e controle no consumo.
Por outro lado, é importante fazer o registro de que o Brasil não possui Lei que ajude o consumidor de boa-fé a renegociar suas dívidas, quando a corda já ficou tão esticada que não tem como pagar os seus credores. Para dar apoio legal na solução do superendividamento, a Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) poderá propor, segundo seu presidente, Renato Casagrande (PSB-ES), Projeto de Lei específico, inspirado no modelo francês, que assegure mínimo existencial para o superendividado sobreviver. Um dos principais temas debatidos nas audiências da comissão para aperfeiçoamento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o superendividamento já vem sendo discutido há algum tempo no âmbito do Ministério da Justiça, área acadêmica, entidades de consumidores, Procons e Defensorias Públicas.
Como já relatamos anteriormente neste trabalho, o Estado do Rio Grande do Sul desenvolve há dois anos, com sucesso, um projeto-piloto que viabiliza, com a ajuda de um juiz, acordo entre o consumidor superendividado e os seus credores. A Defensoria Estadual do Rio de Janeiro também organizou um núcleo de atendimento para auxiliar acordos extrajudiciais. E São Paulo deve implantar o seu núcleo, possivelmente a partir de maio. Nosso Congresso Nacional, de acordo com integrantes do grupo de trabalho que assessora a CMA no aprimoramento do código, ainda não tem qualquer proposta em tramitação que, à semelhança do que existe para as empresas (Lei 11.101/05, de recuperação judicial, extrajudicial e falência), ampare o consumidor superendividado.
Repetindo, o estudo mais avançado nessa área foi desenvolvido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que enviou ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) a última versão de um Anteprojeto (de novo, como falamos no item 5, deste trabalho). O Anteprojeto, conforme a coordenadora da pesquisa, Cláudia Lima Marques, considerada uma das maiores especialistas em superendividamento, sugere a adoção de uma primeira fase (obrigatória) de conciliação. O projeto-piloto com a defensoria gaúcha prevê audiência voluntária, na presença do juiz, em que o devedor propõe plano de pagamento ao conjunto dos seus credores, com prioridade para os pequenos.
O plano de pagamento assegura o mínimo existencial (o “restre a vivre” da lei francesa), que pode girar em torno dos 30% do rendimento do consumidor, dependendo de cada caso. A especialista explicou ao Jornal do Senado que o acordo tem força executiva e judicial, no caso de ser descumprido. “O devedor se obriga a não contrair novas dívidas para não piorar a sua situação. E os fornecedores retiram o nome do devedor do SPC e do Serasa no primeiro pagamento. São negociados prazos mais longos e descontos”, exemplificou Cláudia Marques.
Todos os acordos, segundo ela, estão sendo cumpridos até agora. E as juízas gaúchas Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, acrescentou, estão obtendo conciliação em 60% dos casos (o dobro da média nacional), tomando por base o CDC e a voluntariedade entre as partes. Para a especialista é necessário ter a Lei, a exemplo do que ocorre em países europeus e nos Estados Unidos, para que o juiz possa definir um plano de pagamento, com a remoção de cláusulas abusivas e sanções mais fortes, como eliminação dos juros remuneratórios, obrigando um acordo nos casos de não comparecimento dos credores, como prevê o Anteprojeto.
A proposta encaminhada ao DPDC ainda previne o superendividamento, proibindo, por exemplo, a publicidade “enganosa” de crédito gratuito, com a promessa de parcelamento em vários meses sem juros. “Na França, isso é proibido por Lei. Quando o crédito é concedido sem juros, é gratuito mesmo. Incorporamos esse dispositivo ao Anteprojeto”, informou Cláudia Marques.
Na mesma linha, também temos no Brasil, um Projeto de Lei que trata da limitação do preço cobrado pelos bancos para oferecer empréstimos, o chamado spread bancário, que vai tramitar em conjunto com o projeto (PL 5258/09) que institui metas para a margem bancária, em análise na Comissão de Finanças e Tributação. A limitação do spread bancário foi o tema da audiência pública realizada pela Comissão de Legislação Participativa. O presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), José Geraldo Tardin, disse que apresentou a sugestão para facilitar a vida dos 12 mil consumidores de crédito bancário atendidos por ano na instituição.
"Esses consumidores estão em uma situação que não é de endividamento. É de superendividamento em consequência, principalmente, da liberação do spread que não tem qualquer norma. Não tem nada que o regule. Então, o banco fica à vontade para praticar e usá-lo contra o consumidor, que é a parte vulnerável deste contrato." Relator da sugestão, o deputado Francisco Praciano (PT/AM) considera muito difícil a definição do spread por lei. O deputado explica que o Projeto (PL 5258/09) em análise na Comissão de Finanças é mais flexível. "Ele cria metas, com possibilidade de bônus para aqueles que conseguirem a meta, deixando, de qualquer forma, livre para o Banco Central definir a meta que o projeto não define, só autoriza, deixando livre a possibilidade de prêmios e bônus às instituições financeiras que conseguirem reduzir o spread."
O secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Dyogo Oliveira, disse que o governo tem interesse na redução do spread bancário, mas discordou da fixação de um limite. O secretário apontou outros caminhos. "A busca contínua da disponibilidade de crédito, da concorrência no sistema bancário, a melhoria das condições de garantias e de segurança jurídica, inclusive, do sistema de crédito brasileiro." Dyogo Oliveira observou que média de mercado do spread bancário hoje é de 34% ao ano para as pessoas físicas e de 17,8% ao ano para as pessoas jurídicas. Segundo o representante do Ministério da Fazenda, a taxa ideal é aquela que pode remunerar justamente o ofertador do crédito e, ao mesmo tempo, atende as necessidades do tomador.
Geraldo de Faria Martins da Costa[15], apresenta como soluções ao problema, as seguintes hipóteses:
“1 – É preciso que o Direito Brasileiro, a exemplo do Direito Comparado, adote medidas legislativas que tenham por objetivo específico a diminuição dos perigos que envolvem as operações de crédito ao consumo, indo além daquelas já instituídas pelo CDC; 2 – É preciso adotar medidas legislativas que previnam o superendividamento dos consumidores; 3 – É preciso adotar medidas legislativas que instituam o tratamento dos consumidores em situação de superendividamento”.
Uma das sugestões propostas pelo expositor foi, a adoção de um prazo para reflexão especial para os contratos de crédito, que pode ser idêntico ao do art. 49 do CDC, mas admitido mesmo em hipóteses de negociações levadas a efeito dentro do estabelecimento do fornecedor. Isso porque a concessão do crédito traz dois perigos fundamentais ao consumidor: compras desnecessárias e compromisso para o futuro. Nesse sentido, deve-se dar um prazo alongado ao consumidor para que possa refletir em casa, tranquila e racionalmente, consultando os demais membros da família. Essa proteção acaba evitando que o consumidor se endivide por impulso e que possa se defender das técnicas agressivas de venda e marketing. Isso poderia ser feito inclusive inserindo-se um parágrafo ou inciso ao caput do artigo 52 do CDC.
A essa solução recorreu a lei francesa de proteção do consumidor contra o superendividamento (surendettement), a lei de 31 de dezembro de 1989, que deu nova redação aos art. L. 311-15 e 311-16 do(Code du Consommateur).
Outro aspecto que poderá proteger o consumidor das estratégias mercadológicas é a exigência na lei de uma oferta por escrito da parte das fornecedoras de crédito. Essa obrigação, cuja fonte é a lei canadense de proteção ao consumidor de crédito, combinada com a anterior, permitirá que o consumidor reflita no seu lar, protegido um pouco do marketing e com a possibilidade de comparação entre as ofertas. Essa prática poderá acarretar, outrossim, efeito na concorrência dos fornecedores, já que os consumidores poderão fazer estudos e comparações na tranquilidade de sua casa, a partir de dados escritos a respeito da futura dívida e seus acessórios (principal, juros, encargos, etc.).
Mais um item que poderá contribuir a enfrentar o problema do superendividamento é a regulamentação detalhada, por meio da lei (inclusive parágrafos a serem inseridos no art. 43 do CDC), dos cadastros de restrição ao crédito (SPC, CADIN), pois uma lista de devedores inadimplentes poderá auxiliar as instituições de crédito a se absterem de pessoas em situação de desequilíbrio orçamentário. Isso, em contrapartida, ajudará essas próprias pessoas a se reequilibrarem economicamente, pois não ficaram ainda mais endividadas. É claro que a regulamentação da atividade dos cadastros de inadimplentes é fundamental para se evitarem abusos dos fornecedores, pois esses cadastros não podem ser utilizados indevidamente (como, por exemplo, como instrumento de pressão da dívida, ou enquanto ela está sendo discutida em juízo).
Esta utilização de listas de devedores inadimplentes é também uma das soluções empregadas pela legislação francesa de proteção do consumidor contra o superendividamento (surendettement) já citada. Ainda, pode-se estabelecer a criação de um procedimento de falência individual para igualmente tratar situações de superendividamento (art. 331-1 e ss, Code consom.). Trata-se de conferir ao devedor um alongamento no prazo para pagamento, diminuição da taxa de juros e encargos e inclusive a concessão de moratória e remissão da dívida.
Propostas e Soluções não nos faltam. Que nossos legisladores as efetivem.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Tenho 25 anos, de sonho e de sangue e de América do Sul. Por força deste destino, o tango Argentino me vai bem melhor que um blues” (Belchior, cantor brasileiro)
“Nada é permanente nesse mundo cruel. Nem mesmo os nossos problemas”. (Charles Chaplin)
Como muito bem concluiu Alessandro Prado[16], não obstante o nosso ordenamento jurídico brasileiro deixar de apresentar leis especiais tratando especificamente do superendividamento do consumidor, este não está desamparado, podendo o aplicador da lei utilizar-se do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil atual. Embora isto não exima o legislador de aperfeiçoar nosso ordenamento jurídico apresentando leis especiais que tratem do assunto prevendo, por exemplo, a obrigatoriedade da cooperação contratual, da dilação de prazos, parcelamentos compulsórios, do perdão dos juros e em alguns casos até mesmo do principal e estabelecimento de formas de controle da divulgação publicitária e disposição das linhas de créditos oferecidas ao consumidor.
Com a oferta cada vez maior do crédito fácil oriundo dos contratos que permitam a consignação em folha de pagamento, somado ao crescimento de lojas que estimulam o consumo através do crediário, fica cada vez maior a necessidade da criação de leis especiais tratando do consumidor superendividado.
Em suma, podemos concluir, em respostas aos problemas inicialmente formulados, que:
a) Em relação às causas do superendividamento do consumidor brasileiro, constatou-se que os principais fatores que levam o consumidor brasileiro ao superendividamento estão relacionados com a ausência de planejamento dos gastos, a falta de consulta e de pedido de orientação dos consumidores, para com os órgãos de proteção do consumidor no Brasil (Procons). Também há o abuso nas ofertas de créditos (dinheiro) aos aposentados (jubilados), aos funcionários públicos e aos consumidores em geral, causando amplo descontrole em seus orçamentos, bem como, a ausência de precaução na hora de assinar contratos que oferecem créditos ou dinheiro fáceis. Por fim, a ausência de uma legislação específica que ampare o superendividado de boa-fé, tornando o consumidor a parte mais fraca no problema.
b) Sobre a ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na questão do superendividamento do consumidor de boa-fé, como bem assinalou Carolina Curi Fernandes[17], conclui-se que o crédito no decorrer de toda a história das sociedades funcionou como grande mola propulsora do desenvolvimento econômico e inclusão social. No entanto, ao mesmo tempo em que funciona como mecanismo de desenvolvimento e inclusão, quando consumido de forma irrestrita e irrefletida, tem consequências desastrosas para o consumidor. Assim, restou evidenciado que o acesso ao crédito tem repercussões tanto positivas e negativas, sendo o fenômeno do superendividamento do consumidor nas sociedades modernas capitalistas a principal concretização da feição negativa do consumo desmedido ao crédito. No Brasil, o fenômeno do superendividamento começa a ser delineado a partir do advento do Plano Real. A estabilização dos preços muda os rumos da economia do país e, sobretudo, da atuação das instituições financeiras e comércio em geral, que buscam lucratividade.
O crédito passa a ser oferecido de forma ostensiva, irrestrita, rápida e fácil. Consumir a crédito, seja através de cartões de crédito, cheque-especial, compras parceladas no comércio varejista (carnê), crédito consignado, empréstimos e outras inúmeras formas de financiamento, torna-se senso comum no país consolidando a cultura do endividamento. Restou defendido que tal fenômeno contou no Brasil com atuação decisiva tanto dos fornecedores de crédito quanto do Estado. Os primeiros mediante promoção de publicidade ostensiva, abusiva e consolidando o fornecimento de crédito de forma maciça e sem critérios. O segundo, por sua vez, através da omissão diante da completa falta de controle preventivo e repressivo para tutela do consumidor superendividado. Neste contexto, nota-se que a abusividade, seja no âmbito da publicidade agressiva e enganosa ou mediante a exorbitância de cobrança de juros pelas instituições financeiras, é fato institucionalizado no Brasil, constituindo um dos grandes motivadores da fenomenologia do superendividamento no país.
Como destaque, tivemos o estudo da constitucionalização do direito civil que, atribuindo nova roupagem à forma de tratamento das relações obrigacionais, uma vez que inseriu no direito privado princípios e valores constitucionais tendo em vista, principalmente, a proteção e desenvolvimento da pessoa humana, embasa a tutela do consumidor superendividado. Como já dissemos, tutelar, é o mesmo que proteger, amparar e defender. O consumidor superendividado merece a tutela do Estado e tal prerrogativa é dever diante do paradigma maior do princípio da dignidade da pessoa humana, contemplado como fundamental no Art. 1º, III, da nossa CF[18], sob pena de ofensa ao mesmo. Defendemos a criação de práticas de prevenção ao superendividamento, ainda na fase pré-contratual, além de repressão diante de situações de abusividade e vantagem manifestamente excessiva ao consumidor. Para tanto, defendemos ainda, na análise de direito comparado europeu, a aplicação dos deveres de renegociação, cooperação e conciliação. E daí emergiu a importância de criação de legislação especifica para tratamento do fenômeno no Brasil. No prisma da atuação do Estado-Juiz restou evidenciado que já existem posicionamentos favoráveis à tutela do consumidor superendividado no país, pelo que, tais posicionamentos, ainda tímidos e restritos à algumas regiões, devem ser repetidos em todas as jurisdições nacionais. Portanto, tutelar o consumidor superendividado significa dar efetividade à justiça social contemplada pela Constituição Federal do Brasil que privilegia o princípio da dignidade da pessoa humana.
c) Do estudo feito sobre o Direito Comparado, pudemos observar que países mais desenvolvidos, como os EUA, e parte da Europa, já tomaram as providências cabíveis para tentar sanar o problema do consumidor superendividado. O Brasil, porém, somente possui Projetos de Lei relacionados ao tema do superendividamento. Deste modo, como já foi dito, necessitamos de uma legislação específica para legislar/disciplinar o problema entre o consumidor de boa fé, e suas dívidas, quiçá inspirado no modelo francês, considerado por nós, como o mais completo e adequado.
d) Em relação às medidas de tratamento e prevenção para os consumidores brasileiros superendividados, observamos que: o consumidor deve sempre fazer o teste do superendividado (já abordado no item 5, deste trabalho). Também deveria se observar a imposição de deveres aos fornecedores de crédito, como deveres de cuidado, proteção, segurança e precaução, os quais aplicados ao fornecedor de crédito significam cautela no momento de aconselhamento ao consumidor; cuidado com a sua integridade física, que deverão ser protegidos em assaltos em suas agências; não colocá-los indevidamente em cadastros de devedores inadimplentes como o CADIN, SERASA; Deveres de informação e esclarecimento (no caso deve haver minuciosa explicação das consequências da dívida para o futuro do consumidor de crédito, especialmente nos mútuos habitacionais e outros de significativo vulto); Dever de prestação de contas (informar a respeito da eventual cobrança de impostos); Deveres de lealdade e cooperação (por exemplo, eximir-se de práticas desleais e abusivas que possam causar onerosidade excessiva ao consumidor); Dever de sigilo (não fornecer dados sobre seus clientes, salvo contra ordem judicial).
As magistradas gaúchas Káren Bertoncello e Clarisse Costa Lima, em adesão ao Projeto Conciliar é legal, elaboraram um plano para o tratamento das situações de superendividamento do consumidor no Brasil. Foram propostas duas modalidades de conciliação, a paraprocessual e a processual, isto para todas as dívidas, excluindo-se as alimentícias, fiscais, os créditos habitacionais, e as dívidas decorrentes de indenização judicial por prática de ilícitos cíveis ou penais.
Não nos esqueçamos de que há no Brasil, a mais completa previsão normativa para o tratamento e a prevenção, em relação à questão do superendividamento. Trata-se do Anteprojeto de Lei, elaborado pelas Professoras Cláudia Marques, Clarissa Lima e Káren Bertoncello. Sua aprovação e transformação em Lei é mais que necessária.
e) Como PROPOSTAS e/ou SOLUÇÕES para a questão do superendividamento do consumidor brasileiro, temos: A implementação de uma Política Nacional das Relações de Consumo, nos moldes do que elencam os artigos 4º e 5º, do CDC, a fim de se efetivar uma Política Pública Estatal que atenda as necessidades básicas dos consumidores. Realização de ações junto aos Órgãos de Defesa de Proteção dos Consumidores no Brasil (PROCONs), nos seus núcleos de atendimentos.
O consumidor deve ser orientado pelo Estado (órgãos competentes), para observar e seguir a risca, os “dez mandamentos” contidos na cartilha do consumidor superendividado, preparada pelo Poder Judiciário ddo Rio Grande do Sul.
Exigir o consumidor, o cumprimento integral dos artigos 30, 31 e 52, todos do Código de Defesa do Consumidor-CDC.
Que o Estado e a sociedade façam chegar ao conhecimento do consumidor, pelos meios de divulgação possíveis, a fim de que ele tenha plena ciência, os termos elencados no Anteprojeto de Lei, elaborado pelas Professoras Cláudia Marques, Clarissa Lima e Káren Bertoncello, dispondo sobre a prevenção e o tratamento das situações de superendividamento de consumidores, pessoas físicas de boa-fé.
Por fim, buscar o consumidor que se julgar prejudicado, o Ministério Público-MP, as associações de defesa do consumidor, para se evitar o endividamento, devendo haver participação ativa da sociedade (pais, alunos, professores, etc.), em relação aos esclarecimento e orientações sobre o problema do endividamento ao consumnidor.
Que se proíba definitivamente, a publicidade “enganosa” de crédito gratuito, com a promessa de parcelamento em vários meses sem juros. “Na França, isso é proibido por Lei. Quando o crédito é concedido sem juros, é gratuito mesmo. Incorporamos esse dispositivo ao Anteprojeto”, informou Cláudia Marques.
Que se acolham na íntegra, as sugestões dadas por Geraldo de Faria Martins da Costa, in verbis: I) É preciso que o Direito Brasileiro, a exemplo do Direito Comparado, adote medidas legislativas que tenham por objetivo específico a diminuição dos perigos que envolvem as operações de crédito ao consumo, indo além daquelas já instituídas pelo CDC; II) É preciso adotar medidas legislativas que previnam o superendividamento dos consumidores; III) É preciso adotar medidas legislativas que instituam o tratamento dos consumidores em situação de superendividamento.
f) Concordando com Amélia Rocha e Fernanda Freitas, no trabalho já citado, entendemos que o problema do superendividamento não é, e nem pode ser entendida como proteção da inadimplência. Pelo contrário, reconhecer e enfrentar esta realidade é providência indispensável a reposicionar o debate e trazer os fornecedores de crédito à sua responsabilidade de fornecer adequada e previamente informação ao consumidor, garantindo-lhe o real direito à liberdade de escolha e preservando a sua dignidade.
Caso todo fornecedor de crédito seguisse à risca o que elenca o CDC, em especial, no que tange à oferta e publicidade, demonstrando todos os riscos e consequências do recebimento do crédito bem como avaliando a capacidade de endividamento do consumidor e a ausência de poder de negociação deste, possivelmente a situação de endividamento não estaria tão séria (ou o contrato objeto não teria sido firmado ou o teria sido em outros termos e condições).
Necessita-se portanto, de se dar cumprimento a uma das conclusões da "Carta de Porto Alegre" no sentido do fortalecimento do dever de cumprimento voluntário das normas, pois é o primeiro dever (primeira obrigação) imposto pela norma, sendo uma forma de tentar evitar o superendividamento e tentar, também, defender os interesses dos vulneráveis, para quem a tutela jurídica não funciona plenamente, pois suas necessidades são prementes e de que o fornecedor deverá aconselhar o consumidor, observadas as especificidades da contratação, sobre a viabilidade da satisfação do crédito tendo em vista sua renda.
Reitere-se que o reconhecimento do fenômeno do superendividamento e a busca de soluções não visa, por nenhuma hipótese, ao "estelionato por via judicial" ou qualquer meio protelatório de pagamento de dívida. Pretende-se, de um lado, encontrar uma solução digna para a situação dos cidadãos e cidadãs que já estão nesta situação e de outro propiciar a mudança de atitude do fornecedor de crédito, adequando-a ao que determina o nosso Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor.
Também necessitamos, que se adote como medida de urgência, o reconhecimento do serviço de concessão de crédito como nocivo e perigoso, e a consequente adequação da publicidade e oferta de tais serviços às como já acontece com as de cigarro e bebida alcoólica.
Destarte, torna-se obrigatório, o efetivo cumprimento do que prevê o artigo 5º, do CDC, no sentido de se instituírem Defensoria, Promotoria e Magistratura especializadas em direito do consumidor e o estímulo à soluções extrajudiciais, como o que está sendo protagonizado pelo Fórum de Defensores Públicos do Consumidor. Lembre-se que as decisões judiciais especificas sobre superendividamento são oriundas de Estados onde há Defensoria Pública especializada.
Registre-se que a ausência de proteção específica ao cidadão superendividado pode excluí-lo do mercado de consumo e, por consequência, contribuir para o aumento da insegurança pública em face do seu afastamento das mínimas condições de vida digna, caso o Estado exista continue se omitindo de enfrentar sistemática e institucionalmente o problema. É preciso que se priorize a articulação de forças para que se tenha um desenvolvimento econômico e social justo, equilibrado e sustentável.
g) Finalizando, só nos resta repetir a vedação contida na Convenção Americana de Direitos Humanos, à qual o Brasil é signatário: ”Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, devem ser proibidas pela Lei”. Acerca do assunto, concordamos plenamente com Fábio Konder Comparato, ao dizer que os atuais avarentos do mundo contemporâneo, já não são os agiotas isolados e encobertos, mas sim os controladores e dirigentes de bancos e outras instituições financeiras, que exploram organizadamente os consumidores necessitados, os agricultores e os pequenos empresários urbanos, não raro com apoio e o incentivo das autoridades governamentais, em nome do liberalismo econômico. Que em breve este tormento termine, ou, no mínimo, seja amenizado.
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[18] BRASIL. Constituição Federal. Brasília-DF. Senado Federal, 1988
Promotor da Justiça Militar, em Campo Grande/MS. Membro do Ministério Público Militar da União. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Nacional de La Plata. Especialista em Direito Processual Penal pelo Instituto Nacional de Pós-Graduação. Ex-Professor de Direito Processual Penal I e II, na UFMS, em 2004, e de Direito Penal Militar, na Escola de Administração do Exército (EsAEx), em 2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Marcos José. O superendividamento do consumidor no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2010, 10:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21913/o-superendividamento-do-consumidor-no-brasil. Acesso em: 23 nov 2024.
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