I. Introdução
Consagrada no âmbito constitucional como meio de solução dos conflitos entre princípios, A técnica da ponderação funda-se na premissa dworkiniana de que os princípios caracterizam-se por uma dimensão de peso ou valor, em contraposição às regras, as quais seguem a lógica do “tudo ou nada” (all-or-nothing fashion), a aplicação de uma excluindo a de outra, conforme critérios de solução de antinomias[1] (DWORKIN, 2002, p. 39-43). Centra-se na idéia, também encontrada na base da teoria dos direitos fundamentais de Alexy (2002), de que os princípios consistem em mandamentos de conteúdo axiológico ou finalístico, verdadeiros comandos de otimização, voltados à máxima realização[2], que, portanto, não se excluem, mas coexistem, harmonizam-se, somente podendo ser aplicados tendo em conta o peso relativo dos demais.
Nesses lindes, o método ponderativo consiste, em apertada síntese, em estabelecer compressões recíprocas entre os princípios em jogo, definindo, em cada caso concreto, relações de precedência, à luz de certas condições particulares[3]. A busca da justa medida de aplicação de princípios colidentes é precisamente o seu escopo, como bem destaca Barroso (2003, p. 265): “
Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um (valor constitucional) sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição.
Em que pese haver quem apresente a técnica ponderativa como uma metodologia aplicável somente “quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais” (SARMENTO, 2002, p. 99), significativa parcela da doutrina constitucionalista já desperta para a sua autonomia em relação aos princípios constitucionais[4].
Como preleciona Barroso (2008, p. 358), a ponderação consiste em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis (hard cases), quais sejam aqueles que não encontram no ordenamento positivo soluções abstratas objetivas, reclamando uma atuação discricionária do intérprete. Em outras palavras, a técnica ponderativa tem lugar quando a subsunção se mostra insuficiente, rendendo ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.
Portanto, a ponderação pode ser invocada não só em conflitos entre princípios, mas também, entre cláusulas gerais, enunciados normativos abertos, e quaisquer outras espécies normativas que, encontrando-se no mesmo nível de hierarquia, antiguidade e especialidade (ex.: as normas constitucionais), incidam sobre os mesmos pressupostos fáticos presentes em certo caso concreto, impondo soluções distintas, sem que se possa, por conta disto, declarar de forma definitiva a impossibilidade de convivência abstrata entre as normas ou a invalidade de uma frente a outra na espécie.
Posta nesses termos, a técnica ponderativa encontra na responsabilidade civil terreno fértil para a sua incursão.
II. Metodologia de aplicação do método ponderativo para a seleção dos danos ressarcíveis
Com efeito, a aplicação direta das regras e princípios constitucionais às relações privadas e a propagação da técnica de cláusulas gerais, que fazem com que os interesses particulares sejam cada vez mais identificados com normas de enunciado aberto, assim como a proliferação de situações lesivas novas resultantes das aceleradas transformações sociais e avanços tecnológicos, que extrapolam os limites práticos da técnica legislativa regulamentar, recaindo em uma ampla área não disciplinada por normas de conteúdo específico, de modo que, hodiernamente, os conflitos de responsabilidade civil “se dão, amiúde, no campo de colisão entre normas de conteúdo genérico e asbtrato, campo predominante da técnica de ponderação” (SCHREIBER, 2007, p. 143).
Sem embargo, a transposição da metodologia constitucional da ponderação ao campo específico da responsabilidade civil, adverte Schreiber (2007, p. 148-150), não pode se dar sem adaptações e cautelas.
É precisamente nesse aspecto que repousa a principal contribuição da obra do predito autor, que propõe um resgate crítico da técnica de ponderação, precisando os seus contornos e nuances nessa seara jusprivatista, a fim de que sua utilização se opere de forma metodológica e, por sua vez, controlável.
De acordo com o método de aferição de danos ressarcíveis proposto por SCHREIBER, verifica-se, inicialmente, o merecimento de tutela em abstrato dos interesses conflitantes e, em seguida, não havendo relação de prevalência estipulada entre dois interesses tutelados (por receberem proteção abstrata de igual patamar), confere-se ao juiz um espaço de ponderação para que decida qual interesse deve prevalecer à luz das circunstâncias concreta (SCHREIBER, 2007, p. 156).
Em grau de maior detalhamento, tal metodologia, proposta pelo autor em comento, pode ser divida nas fases a seguir examinadas.
A primeira etapa consiste no exame abstrato de merecimento de tutela do interesse lesado. O autor esclarece que não é necessário que a tutela venha expressamente declarada por uma norma positivada, podendo ser extraída do princípio da dignidade da pessoa humana ou mesmo de uma norma proibitiva de certa conduta. Mas, assevera: se não houver norma alguma - regra específica, princípio ou cláusula geral - da qual se possa extrair o merecimento da tutela em abstrato do interesse alegadamente lesado, inexiste de dano em sentido jurídico, ainda que tenha existido prejuízo (SCHREIBER, 2007, p. 156).
Identificada, porém, nos termos acima, a norma que tutela o interesse dito lesado, passa-se à segunda etapa. Nesta fase, cumpre averiguar se o interesse representado pela conduta lesiva é, outrossim, merecedor de tutela.
Nesse âmbito, Schreiber (2007, p. 152-255) oportunamente observa a relevância de se verificar se a conduta imputada ao ofensor é ou não proibida pelo ordenamento jurídico. Mas explica:
Isso não significa, contudo, que a ilicitude [refere-se o autor à ilicitude subjetiva] seja um fator de verificação do dano e, muito menos, que seja um fator que possa ser levado em consideração nas hipóteses em que o dano exige ponderação. Para a aferição do dano, como aqui entendida, somente tem importância a antijuridicidade da conduta, na medida em que ela demonstra o prévio estabelecimento legislativo de uma relação de prevalência entre o interesse lesivo e o lesado. E justamente em tais casos não será necessário aplicar diretamente a técnica da ponderação, vez que a relação de prevalência terá sido estipulada pelo legislador [grifo nosso]. (SCHREIBER, 2007, p. 154)
Ademais, é irrelevante, para a aferição da lesão, perquirir se o agente poderia ou deveria ter agido de forma diversa, ou seja, se a sua conduta foi ou não culposa. A culpabilidade não ingressa no juízo de verificação do dano. Para tanto, importa somente verificar se a conduta é objetivamente antijurídica, a fim de se descartar o merecimento abstrato de tutela do interesse lesivo e, por conseguinte, de qualquer juízo de ponderação[5] (SCHREIBER, 2007, p. 154-155).
Vê-se, do exposto, que a diferenciação entre culpabilidade e antijuridicidade no interior do conceito de ilicitude (subjetiva), nem sempre atentada pelos constitucionalistas, mostra-se fundamental na aferição do dano ressarcível. A violação de um dever legal de comportamento (ilicitude objetiva) denota que houve invasão da esfera de atuação legítima do interesse lesado, logo, que houve dano em sentido jurídico, nada impedindo, porém, que o ofensor demonstre a inexigibilidade de conduta diversa nas circunstâncias em que se encontrava, com o que restará excluída a sua culpabilidade, não obstante o dano.
Portanto, alerta Schreiber (2007, p. 155) a culpabilidade – ao contrário da antijuridicidade que é componente importante da investigação do dano ressarcível - não pode interferir no método de aferição do dano. Sua análise é, posterior a ele, e somente se fará necessária em hipótese de responsabilidade civil subjetiva.
Observações à parte, importa, por ora, assentar que, sendo vedada (isto é, tipicamente antijurídica) a conduta do ofensor, a área de atuação do interesse lesado em concreto era plena e sua violação, em qualquer grau, gera dano, não se fazendo necessário o recurso à ponderação.
De outra banda, sendo abstratamente tutelados não só o interesse lesado, mas também aquele consubstanciado na conduta indigitada lesiva, impõe-se um terceiro passo que consiste em verificar se o legislador estabeleceu de alguma forma uma regra de prevalência entre eles. Se a prevalência for do interesse lesivo, eventual dano decorrente do seu exercício será irressarcível, uma vez que a própria lei determina sua prevalência. Prevalecendo, entretanto, a área de atuação do interesse lesado, a sua injusta transgressão, poderá implicar o dever ressarcir (SCHREIBER, 2007, p. 158).
Não é dado, ao magistrado proceder, nessa hipótese, à ponderação dos interesses em conflito, cabendo-lhe apenas, quando mais, proceder à ponderação da validade da regra e da adequação dos resultados de sua aplicação ao caso concreto, quando aquela vier estabelecida por norma hierarquicamente inferior aquelas que tutelam, em abstrato, os interesses colidentes.
Somente se inexistir regra legal de prevalência entre os interesses conflitantes, ou se esta se afigurar inaplicável por invalidade ou inadequação, cumprirá ao órgão julgador realizar a ponderação dos interesses colidentes. A ponderação, ensina Schreiber (2007, p. 160), consistente em examinar comparativamente “o grau de afetação concreta realização do interesse lesivo e o grau de concreta afetação do interesse lesado, extraindo-se do dado normativo uma regra de prevalência válida para as circunstâncias particulares em exame”. Tal exame comparativo é realizado sob aplicação do princípio da proporcionalidade (em sentido estrito), cujo objetivo consiste, resumidamente, em determinar em qual medida um interesse deve, no caso concreto, prevalecer sobre o outro[6]. Porém, só deverá ter lugar quando se estiver diante de um conflito de interesses abstratamente tutelados cuja relação de precedência condicionada não tenha sido previamente realizada pelo legislador.
Detectada, assim, a prevalência abstrata do interesse lesado em face do lesivo, restará, então, ao julgador, segundo a metodologia proposta por Schreiber (2007, p. 161), perquirir, com base na regra legal de precedência, a existência de lesão concreta ao interesse.
III. Conclusão
A insuficiência da técnica regulamentar para acompanhar as incessantes transformações sociais, assim como o reconhecimento da aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas e a propagação legislativa das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, conduziram a responsabilidade civil a um progressivo abandono da técnica de subsunção em prol de uma análise ponderativa entre o interesse da vítima e o interesse do ofensor (SCHREIBER, 2007, p. 147-148).
Sob essa perspectiva, o dano resulta não mais de uma aferição estática e independente de merecimento de tutela do interesse alegadamente lesado, mas de uma avaliação dinâmica dos interesses em cotejo.
Diante da alegação de lesão a um interesse tutelado abstratamente, o julgador deve verificar qual é, no caso concreto, o interesse lesivo e, sendo este igualmente protegido em tese, proceder, a partir das condições relevantes do conflito que lhe foi submetido, a uma análise da relação de prevalência entre os interesses conflitantes. Somente se concluindo pela prevalência, em concreto, do interesse lesado, é que se pode falar, tecnicamente, em dano ressarcível.
O dano deixa, pois, de ser visto como lesão a um interesse juridicamente tutelado em abstrato, passando a consistir em um componente relacional que emerge da análise comparativa com o interesse lesivo, o que, a um só tempo, permite o reconhecimento da ressarcibilidade da lesão limitado ao caso concreto[7] e viabiliza controle normativo da fundamentação das decisões que acolhem ou rejeitam as demandas de indenização (SCHREIBER, 2007, p. 241).
É nesse contexto, que se insere a técnica ponderativa como método inovador de solução das demandas contemporâneas de responsabilidade civil, a exemplo das que versam sobre negligência afetiva, emprestando ao Direito Obrigacional um aporte interdisciplinar necessário à compreensão mais objetiva e ponderada, portanto, isenta de impressionismos e subjetivismos, da realidades das partes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2002.
ÁVILLA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2003.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2002.
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007.
[2] “El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y juridicamente posible.” (ALEXY, 2002, p. 86-87).
[3] “Tomados en sí mismos, los dos principios conducen a una contradition. Pero, esto significa que cada uno de ellos limita la possibilidade jurídica de cumplimiento del outro. Esta situación no es solucionada declarando que uno de ambos princípios nos és válido y eliminándolo del sistema jurídico. Tampoco se la soluciona introduciendo una excepción en uno de los principios de forma tal que en todo los casos futuros este principio tenga que ser considerado como una regla satisfecha ou no. La solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de precedencia condicionada. La determinación de la relación de precedência condicionada consiste em que, tomando em cuenta el caso, se indican lãs condiciones bajo las cuales un principio precede al outro. Bajo otras condiciones, la cuestión de la precedência puede ser solucionada inversamente” (ALEXY, 2002, p. 91-92).
[4] Nesse sentido, Ávila (2006, p. 52): “Com efeito, a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balancing, abwägung), enquanto sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão da interpretação, também pode estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente havida como automática [...]”. Na mesma direção, Schreiber (2007, p. 140) alega que o essencial para a aplicação da técnica de ponderação é menos uma ontológica classificação das normas conflitantes como princípios constitucionais e mais a dialética entre as suas estruturas normativas.
[5] Vê-se, diante do exposto, que a identificação do dano com a lesão não abstrata, mas concreta, a um interesse tutelado, resulta na reunificação dogmática entre dano e antijuridicidade. Note-se que, uma atuação em desrespeito à relação de prevalência entre o interesse lesado e o interesse lesivo (dano) representa, por si só, uma atuação em desrespeito à ordem jurídica, sendo, pois, merecedora, em caso de prejuízo a outrem, da reposta ressarcitória (SCHREIBER, 2007, p. 182).
[6] Para Schreiber (2007, p. 166), dentre todos os subprincípios da proporcionalidade (em sentido amplo), a saber, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade em sentido estrito, somente esta última, entendida como “a ponderação entre o ônus imposto e benefício trazido” (BARROSO, 2008, p. 229), pode ser identificada com o substrato da técnica ponderativa de aferição do dano, porquanto equivale efetivamente ao exame comparativo entre o grau de realização do interesse lesivo e o grau de afetação do interesse lesado - não a uma análise interna da conduta lesiva, de conformação entre seu meio e seu fim (adequação), ou entre o meio e o gravame imposto, em abstrato, a outros fins (necessidade). Para mais sobre uma visão crítica da aplicação da máxima da proporcionalidade no direito civil, confira-se Schreiber, 2007, p. 162-169.
[7] Com isso evita-se o reconhecimento genérico e asbtrato da proteção do interesse lesado frente ao lesivo, cuja amplitude pode trazer diversos inconvenientes, pois, conforme pontua Schreiber (2007, p. 133 -134): (a) o interesse reconhecido como tutelado no caso concreto pode não se mostrar prevalente ao lesivo em circunstâncias diversas; o reconhecimento genérico do interesse implica na sua proteção também quando posto na situação inversa, ou seja, como interesse lesante, restando seu titular albergado, na dogmática tradicional pelo excludente de ilicitude do exercício regular de direito; (c) o reconhecimento pelo Judiciário de interesses tutelados em abstrato, a depender da situação, pode representar uma indesejada incursão nos papéis do Poder Legislativo.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCIANA CAVALCANTI NóBREGA, . A técnica da ponderação e a seleção in concreto dos danos morais ressarcíveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2010, 16:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21954/a-tecnica-da-ponderacao-e-a-selecao-in-concreto-dos-danos-morais-ressarciveis. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
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