INTRODUÇÃO
Antes de adentrar no âmago do conteúdo sobre a funcionalidade do princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídicas contratuais, é imprescindível trazer à baila a compreensão dos atos negociais a partir da perspectiva civil-constitucional, não obstante alguns juristas ainda adotem a concepção tradicionalista na análise dos negócios jurídicos.
DESENVOLVIMENTO
O fenômeno jurídico da Constitucionalização do Direito Civil impõe a necessidade de se revisitar as categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais. Na visão do doutrinador Cristiano Chaves de Farias o negócio jurídico pode ser compreendido como: “o acordo de vontades, que surge da participação humana e projeta efeitos desejados e criados por ela” (2007, p. 426). Relativamente ao contrato, que é um negócio jurídico por excelência, Nelson Nery Júnior define como “o acordo de vontades (negócio jurídico bilateral) de duas ou mais partes, com pretensões antagônicas, para constituir, regular ou extinguir entre si uma relação jurídica patrimonial (2002, p. 53)”. Numa perspectiva civil-constitucional os atos negociais devem ser celebrados em sintonia com os princípios: da função social dos contratos (art. 422 c.c), o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e impreterivelmente com o da boa-fé objetiva (art. 113 da lei civil). Não há outra forma de entender o Direito Civil da pós-modernidade a não ser fazendo a releitura de todos os seus institutos jurídicos à luz da legalidade constitucional.
Na visão do civilista Gustavo Tepedino, citado na Obra de Cristiano Chaves de Farias, sintetiza que:
A leitura da cláusula geral da boa-fé objetiva a partir dos princípios constitucionais informadores da atividade econômica privada permiti desvendar o verdadeiro sentido transformador do preceito da teoria da interpretação dos negócios jurídicos, deixando antever a importância da clausula como fonte precípua de interpretação negocial (Tepedino apud chaves de farias, 2007, p. 434).
Na esteira desse entendimento, o civilista Cristiano Chaves de Farias proclama que:
De fato, o dever de interpretar todo e qualquer negócio conforme a boa-fé objetiva encontra-se, sem dúvida, informado pelos princípios constitucionais fundamentais para a atividade privada - a dignidade da pessoa humana (art. 1, III), o valor social da livre iniciativa privada (art. 1º, IV), a solidariedade social (art. 3º, I), e a igualdade substancial (arts. 3º, III, e 5º). (2007, p. 434).
No mesmo diapasão o jurista Nelson Nery Junior proclama que:
Princípios da probidade e da boa-fé. O novo sistema jurídico de Direito Privado impõe às partes que resguardem, tanto na conclusão quanto na execução do contrato, os princípios da probidade e da boa-fé (CC 422). Igualmente, nas disposições finais e transitórias, prescreve que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceito de ordens publicas, tais como os estabelecimentos pelo CC para o resguardo da função social da propriedade e da função social dos contratos (CC 2035 par. ún.). Ao interprete, por sua vez, incumbe a exegese do negocio jurídico em consonância com a principiologia do sistema. (2002, p. 61).
A jurisprudência tem aplicado o princípio da boa-fé objetiva como cânone interpretativo dos negócios jurídicos, consoante transcrição abaixo:
Boa-fé. Contrato. O princípio da boa-fé impõe deveres anexos, de acordo com a natureza do negócio e a finalidade pretendida pelas partes.
Entre eles encontra-se a obrigação da vendedora de pequena loja de vestuário não cancelar pedidos já feito, com o que inviabilizaria o negócio e frustraria a justa expectativa do comprador (TJ/RS, Ac. 589073956, 5ª Câm. Civ. , rel. Dês. Ruy Rosado de Aguiar Jr. , j. 19.12.89 , in Ajuris 50:207)
“O compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, através de Memorando de Entendimento, para suspensão de execução judicial de dívida bancaria de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão ocorrerá preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no principio da boa- fé objetiva, que privilegia o respeito à lealdade” (STJ, Ac. 4ª T., RMS6183, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr. , V.u. , J. 14.11.95).
O principio da boa-fé objetiva como mecanismo de interpretação das relações jurídicas bilaterais, consiste no dever de cada parte contratante agir de forma a não defraudar a confiança da outra parte, a fim de que ambas possam materializar suas vontades sem qualquer mácula. Consubstancia-se na estipulação de deveres anexos, implícitos, impondo que os contratos sejam celebrados com probidade, honestidade, ética, honradez e informação. Sob esse prisma, o enunciado número 24 do Conselho Superior da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2002, prevê que a inobservância desses deveres anexos gera a violação positiva do contrato, espécie de inadimplemento a imputar responsabilidade contratual objetiva àquele que viola um desses direitos anexos. Tal princípio tem aplicabilidade ainda que as partes não tenham consignado expressamente no contrato.
Na visão dos doutrinadores tradicionalistas a validade dos negócios jurídicos depende tão somente de sua compatibilidade aos requisitos elencados no artigo 104 do código civil (agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei).
Com a devida vênia, considero que tal entendimento não mais se coaduna com a realidade jurídica, pois o direito civil da pós-modernidade deve ser compreendido também à luz da legalidade constitucional e sob o prisma do princípio da boa-fé objetiva. Se as partes numa relação jurídica bilateral, inclusive sinalagmática (obrigações recíprocas, a exemplo do contrato de compra e venda), praticarem qualquer ato que afronte os deveres de lealdade, confiança, eqüidade, razoabilidade, cooperação, probidade, honestidade, informação, incorrerá em um ilícito contratual, que resultará na invalidação do contrato pactuado, ainda que este esteja em sintonia com os requisitos do artigo 104 do diploma civil. A idéia de ilicitude contratual oriunda de inobservância ao princípio da boa-fé objetiva decorre também do artigo 187 do código civil que estatui: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”.
O artigo 113 do código civil de 2002 prevê expressamente que: “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Vale a pena ressaltar que o código civil de 1916 só contemplava a boa-fé em sua dimensão subjetiva, ao revés do novo diploma civil que focaliza a boa-fé em ambas as formas: subjetiva e objetiva. A boa-fé subjetiva é aquela intimamente refletida e pensada pelo declarante no negócio jurídico. É objetiva, conforme já dito, a boa-fé que impõe aos contratantes, nos atos negociais privados (Ex: compra e venda) e públicos (contratos administrativos, neste caso violará o princípio da moralidade administrativa e caracterizará ato de improbidade administrativa, consoante veremos adiante) o dever de agir com probidade, ética, lealdade, de informar, bem como outros predicados inerentes ao conteúdo deste princípio.
A regra insculpida no artigo 112 do diploma civil também constitui importante vetor de exegese contratual ao proclamar que: “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.
Além dos dispositivos mencionados, a compreensão do princípio da boa-fé exige a interpretação sistemática com outros preceptivos legais presentes na legislação. O artigo 422 do diploma civil enuncia que: os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé. Não obstante a redação incompleta do citado dispositivo é imperioso ressaltar que tal princípio é aplicável às fases pré-contratual e pós-contratual, consoante se infere do enunciado n.º 25 cujo teor estatui que: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós –contratual. Na esteira desse entendimento Nelson Nery Júnior enfatiza que:
“Os entabulantes, isto é, ainda não contratantes, podem responder por fatos que tenham ocorridos antes da celebração e da formação do contrato e os ex-contratantes, quando o contrato já se findou pela sua execução, também respondem por fatos que decorram do contrato findo” (2003, p. 339).
Assim está clarividente que os contratantes em todas as fases da relação jurídica contratual, desde as tratativas (negociações preliminares) até mesmo após a conclusão do contrato devem agir com estrita obediência ao princípio da boa-fé objetiva.
Por outro ângulo é imprescindível registrar que o princípio sub oculis tem aplicabilidade não somente na seara privatista, pois transcende as relações do Direito Civil para irradiar seus efeitos no Direito Público, especificamente no Direito Administrativo. Assim não se admite, em hipótese alguma, que o servidor público paute seus atos funcionais em discrepância com a boa-fé e a lealdade. A aplicação do princípio da boa-fé na seara do Direito Público é referendada por grandes administrativistas, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, citado na Obra – O Limite da Improbidade Administrativa - de Mauro Roberto Gomes de Mattos:
Principio de lealdade e boa-fé, de acordo com o qual a Administração, em todo os transcurso do procedimento, está adstrito a agir de maneira lhana, sincera, ficando, evidentemente, interditos quaisquer comportamento astuciosos, ardilosos ou que, por vias transversas, concorram para entravar a exibição das razões ou direitos dos administrados (Bandeira de Melo apud Gomes de Matos, 2009, p. 67).
Na mesma linha de entendimento Teresa Negreiros, também citada pelo doutrinador Mauro Roberto Gomes de Matos, na Obra – O Limite da Improbidade Administrativa - ressalta que:
Estes deveres de lealdade e de probidade, derivados da aplicação do principio da boa-fé, vêm merecendo uma interpretação extensiva (...) Tais deveres, ademais, são considerados igualmente oponíveis à Administração Publica. (Negreiros apud Gomes de Matos, 2009, p. 68).
Analisando o artigo 37 da Constituição Federal constata-se que o principio da boa-fé encontra lastro nos princípios da legalidade e moralidade administrativa. Este corresponde à proibição de a atuação administrativa distanciar-se da moral, dos princípios éticos, da boa-fé, lealdade, honestidade, além da razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de ficar caracterizada a improbidade administrativa capitulada no artigo 37, § 4º, da Lei Maior. Assim se atuação do agente público resultar na inobservância do princípio da moralidade e, por conseguinte, ao da boa-fé implicará em violação às regras constitucionais, configurando uma ilicitude que sujeitará o infrator às penas da Lei 8.429/92. O jurista Rodolfo Camargo Mancuso (1994, p. 70-1) à título de exemplo traz a seguinte hipótese: determinado prefeito, por ter sido derrotado no pleito eleitoral e às vésperas do encerramento do mandato, congela o imposto territorial com o fito de diminuir as receitas do município e inviabilizar a administração. Por fim, conclui-se que a imoralidade administrativa qualificada é a que configura o ato de improbidade administrativa, e não apenas o ato imoral.
CONCLUSÃO
Neste Artigo foi sobejamente demonstrado que o princípio da boa-fé objetiva tem ressonância não somente na seara do direito privado, bem como na órbita do direito público, pois os deveres de agir com ética, honestidade, lealdade, informação, confiança, cooperação, razoabilidade, hodiernamente, devem ser fielmente observados em qualquer relação jurídica contratual, sob pena de configurar a ilicitude do ato praticado. No âmbito do direito público, conforme visto, a boa-fé objetiva está visceralmente ligada ao princípio da moralidade administrativa, epigrafado no artigo 37 da Lei Maior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
JÚNIOR, Nelson Nery. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2003.
FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil Teoria Geral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
MATTOS, Mauro Roberto Gomes. O Limite da Improbidade Administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
Bacharel em Direito. Servidor Público. Pós-Graduado em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Eduardo Farias. A boa-fé objetiva no direito público e direito privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2010, 19:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21955/a-boa-fe-objetiva-no-direito-publico-e-direito-privado. Acesso em: 23 dez 2024.
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