Os atuais delineamentos da responsabilidade civil são produto de uma acentuada evolução decorrente das profundas transformações experimentadas pela sociedade, notadamente neste último século.
A responsabilidade puramente civil, como a conhecemos hoje, só veio a surgir, como destaca Gilissen (apud SCHREIBER, 2007, p. 13), no século XVIII, quando se desvinculou do domínio penal, no âmbito do qual se desenvolvera durante toda a Idade Média.
A ideologia liberal e individualista, então dominante, impunha a construção de um sistema de responsabilidade fundado no mau uso da liberdade individual, justificando, dessa forma, a concessão de um amplo espaço à autonomia privada (SCHREIBER, 2007, p. 12).
Surge, destarte, um sistema de responsabilidade moderno, puramente civil, desvinculado da tradição medieval e fundado, não na violação de normas penais expressas, mas no ilegítimo exercício da liberdade individual, identificado com a noção de culpa (SCHREIBER, 2007, p. 13).
Inspirado nos postulados lançados pelo Direito Romano, o aludido sistema, consagrado pelo Código Napoleônico de 1804, alçou a culpa à condição de aspecto central da responsabilidade, refletindo em todo o seu desenvolvimento e sistematização nas legislações codificadas dos países de cultura romano-germânica, inclusive no Código Civil brasileiro de 1916.
Daí para cá, entretanto, a responsabilidade civil sofreu substanciais alterações. Com o desenvolvimento econômico impulsionado pela Revolução Industrial, a massificação dos meios de produção e o surgimento de uma sociedade fundada essencialmente no consumo de bens e serviços e marcada pelo profundo desnivelamento ente os sujeitos das relações jurídicas, os postulados da lógica liberal individualista foram sendo superados pela crescente intervenção do Estado como agente regulador das atividades privadas, o que conduziu a um movimento de intensificação da responsabilização civil dos agentes sociais enquanto meio de harmonização das relações entre particulares (BRANCO, 2006, p. 206).
Nesse ensejo, e para atender às diversas situações surgidas a partir do novo modelo social que então se implantava, os pressupostos tradicionais da reparação civil foram, gradativamente, mitigados ou descartados e substituídos por novos critérios, sempre no sentido da expansão do alcance da reparação civil e de maior proteção à figura da vítima.
Exemplo mais marcante disso foi a progressiva relativização da culpa nos últimos tempos, que culminou com objetivação da responsabilidade civil em diversos setores antes regidos pela teoria clássica subjetiva.
As dificuldades de demonstração desse elemento subjetivo, que inicialmente atendiam aos interesses liberais de franco patrocínio à autonomia privada, com o desenvolvimento tecnológico-industrial, exacerbaram-se atraindo a intolerância social e a rejeição do Poder Judiciário. Os chamados “danos anônimos”[1], surgidos com as novas formas de produção, impunham uma verdadeira “probatio diabolica” das vítimas que, na maioria dos casos restava irressarcida (SCHREIBER, 2007, p. 18). Em face disso, no intuito de promover o efetivo acesso da vítima à reparação, os tribunais, paulatinamente, passaram a admitir maior flexibilidade quanto à prova da culpa, evoluindo em seguida para a aceitação de hipóteses de culpa presumida – a princípio, relativas, e, mais tarde, também absolutas – até que finalmente chegou-se à admissão da responsabilidade sem culpa em determinados casos (SCHREIBER, 2007, p. 18; CAVALIEIRI FILHO, 2007, p.123-124).
Inicialmente adotada pelo legislador em hipóteses casuísticas[2], a teoria objetiva conheceu franca ascensão após o advento da Constituição de 1988, não só por ter sido contemplada expressamente, por exemplo, nos seus artigos 37, § 6º e 7º, inc. XXXIII, mas, sobretudo, pela instituição de um novo parâmetro axiológico mais afeito a um sistema de responsabilidade comprometido com a reparação efetiva dos danos em uma perspectiva marcada pela solidariedade social e pela justiça distributiva (MORAES, 2007, p. xii).
A partir de então a teoria objetiva da responsabilidade, que antes era exceção, ampliou seus domínios[3], culminando com a sua consagração, pela nova Lei Civil, como cláusula geral, aplicável às atividades de risco, no âmbito privado (art. 927, parágrafo único do CCB/2002).
Malgrado não tenha substituído a responsabilidade subjetiva[4] (art. 927, caput c/c art. 186 do Novo Código), a crescente objetivação da responsabilidade simboliza uma significativa inflexão em relação à dogmática tradicional: enquanto esta se preocupava excessivamente com o ilícito, a sistemática atual se volta inteiramente à tutela do dano, da situação jurídica da vítima.
Tal inversão reflete efeitos, não somente nas hipóteses de responsabilidade objetiva, mas em toda a sistemática do dever de ressarcir, inclusive no que toca à responsabilidade subjetiva que é a que interessa mais proximamente ao presente estudo, por ser a regra aplicável as relações intersubjetivas, como adiante se demonstrará.
Como observa Noronha (2003, p. 31-44), não só a objetivação da responsabilidade, mas também a vertiginosa expansão quantitativa e qualitativa dos danos ressarcíveis, observada nos mais diversos sistemas jurídicos, na medida em que novos interesses, sobretudo existenciais e coletivos, passam a ser considerados como merecedores de tutela, revela uma profunda e generalizada mudança de função da responsabilidade civil.
A nova conjuntura marcada pela ampliação da ressarcibilidade indica uma alteração gradativa na sua estrutura, a refletir a valorização da sua função compensatória e a crescente necessidade de assistir a vítima em face de uma realidade social marcada pela insuficiência das políticas públicas na administração e reparação dos danos. Ripert, um dos precursores da teoria objetiva da responsabilidade, já dizia que o Direito moderno não visa ao autor do fato, porém à vítima (apud CAVALIERI FILHO, 2007, p. 128).
Bittar (1999, p. 630), em semelhante direção, salienta que o avanço da responsabilidade se dá no sentido da máxima proteção às vítimas e da “concreta efetivação da reação da ordem jurídica contra o lesante, seja individual, seja coletivamente, a fim de que a Teoria da Responsabilidade cumpra, em todo o seu vigor, as respectivas funções”.
Portanto, mais do que reparar o dano sofrido pelo lesado, a responsabilização deixa a esfera do interesse estritamente privado, passando a constituir importante instrumento de equilíbrio social, promovendo-se à condição de instrumento de compensação e desestímulo, por conta do qual se procura coibir a adoção de comportamentos lesivos aos interesses individuais e coletivos.
Conclusão:
Nesses lindes, Direito Obrigacional, em seu atual estágio, caminha no sentido de despir-se do seu caráter patrimonialista para se dedicar ao escopo maior de proteção da pessoa humana, e operar visando a que a convivência social se realize de modo a garantir a todos, indistintamente, o exercício dos direitos fundamentais à existência digna e, com isso, a plena realização da sua personalidade, em todas as suas dimensões.
Desse modo, a responsabilidade civil como um todo, e, com mais ênfase, a subjetiva ganham contornos bastante distintos daqueles que anteriormente caracterizavam a reparação dos danos, reclamando uma constante adaptação dos seus princípios fundamentais, mormente no que toca à reparação dos danos “essencialmente morais”, ante a preocupação cada vez maior com a tutela dos direitos da personalidade, dentre os quais se insere o direito à afetividade (BRANCO, 2006, p. 42).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999.
BRANCO, Bernardo Castelo. Dano moral no direito de família. São Paulo: Método, 2006.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. rev. amp. São Paulo: Atlas, 2007.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Prefácio. In: SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2007. p. X-xvii.
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007.
Notas:
[2] No Brasil, por exemplo, embora não fosse totalmente estranha ao Código Civil de 1916 - que previa ao menos uma hipótese de responsabilidade sem culpa em seu art. 1.529 - a responsabilidade objetiva ingressou no ordenamento positivo por meio de leis especiais, a exemplo, da Lei das Estradas de Ferro (Dec. nº 2.681/1912), do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86) e a Lei 6.453/77, relativa às atividades nucleares.
[3] Destaque-se, nesse âmbito, o Código de Defesa do Consumidor que instituiu a responsabilidade objetiva dos fornecedores de produtos e serviços de consumo, abrangendo farta parcela das relações sociais contemporâneas.
[4] Conforme descreve Pereira (1998, p. 271), não obstante o grande entusiasmo que a teoria do risco despertou nos meios doutrinários, o certo é que não chegou a substituir a da culpa nos sistemas jurídicos de maior expressão. O que se observa é a convivência de ambas: a teoria da culpa impera como direito comum ou a regra geral básica da responsabilidade civil e a teoria objetiva ocupa os espaços excedentes, nos casos e situações que lhe são reservados.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCIANA CAVALCANTI NóBREGA, . Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil - Lineamentos Históricos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 out 2010, 08:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21962/novos-paradigmas-da-responsabilidade-civil-lineamentos-historicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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