Costuma-se dizer que a lei reina, mas a jurisprudência governa. Isso porque por melhor que seja a lei, não terá eficácia caso não seja corretamente interpretada e fielmente aplicada. O legislador cria a lei, mas esta, por mais ampla e perfeita, não passa de um capítulo do Direito dependente da atuação do juiz para alcançar a justiça. A evolução da jurisprudência no Brasil sobre a responsabilidade do transportador aéreo bem exemplifica o que acabamos de afirmar.
O nosso Código de Proteção e Defesa do Consumidor, apesar de ser uma das mais avançadas leis do mundo, só passou a produzir os efeitos desejados depois que os nossos Tribunais começaram a aplicá-lo. Neste ponto, seguimos caminhos diferentes aos dos países europeus e dos Estados Unidos. Enquanto lá o Direito do Consumidor foi sendo construído pausadamente pela jurisprudência, a partir da segunda metade do século, aqui a lei chegou primeiro e teve que enfrentar forte resistência de juristas, magistrados e segmentos do mercado de consumo, apegados que estavam aos princípios civilistas tradicionais.
Nos primeiros anos após a vigência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor nos Tribunais prevalecia a aplicação do CBA com poucas decisões a luz do CDC, senão vejamos:
1. [...] não obstante a posição de vanguarda adotada pela decisão recorrida, aplicando-se à matéria o direito comum e as novas disposições genéricas advindas da Lei de Proteção ao Consumidor, de nº. 8.078, é forçoso reconhecer que a questão está disciplinada de maneira formal pela Convenção de Varsóvia e suas modificações, por determinação expressa do art. 205 do Código Brasileiro de Aeronáutica, disponente que os serviços de transporte aéreo público internacional sujeitam-se às regras dos tratados e acordos aéreos bilaterais vigentes com os respectivos Estado e Brasil (Data do julgamento: 09/03/95; Apelação Civil 9561; TARJ).
2. Comercial. Transporte aéreo. Convenção de Varsóvia. Limite de responsabilidade. A indenização, em transporte aéreo, esta limitada ao valor estabelecido na convenção de Varsóvia, em 250 francos Poincaré por quilo da mercadoria extraviada (Resp 40.871/SP, rel. Ministro Dias Trindade (ER 03/93), quarta turma, julgado em 03.05.1994, DJ 20.06.1994 p. 16108).
3. O tratado não se revoga com a edição de lei que contrarie norma nele contida. Perde, entretanto, eficácia, quanto ao ponto em que existia antinomia, prevalecendo a norma legal. Aplicação dos princípios, pertinentes à sucessão temporal das normas, previstos na Lei de introdução ao Código Civil. A lei superveniente, de caráter geral, não afeta as disposições especiais contidas em tratado. Subsistência das normas constantes da convenção de varsóvia, sobre transporte aéreo, ainda que disponham diversamente do contido no Código de Defesa do Consumidor (Data do julgamento: 13/12/95; Recurso Especial 58.736-MG; STJ; Relator: Min. Eduardo Ribeiro – 3ª Turma).
4. Responsabilidade civil. Transporte aéreo. Extravio de bagagem. Indenização. Limite tarifário estabelecido no Código Brasileiro de Aeronáutica. Norma que não apresenta incompatibilidade com a nova ordem jurídica introduzida pelo sistema de consumo. Independentemente da aplicação, "in casu", do principio "lex posterior generalis non derrogat priori speciali", a nova ordem jurídica introduzida pelo sistema de consumo nao trouxe nenhuma norma... (Data do julgamento: 22/12/99; Apelação Civil; TJRS; Relator: Mara Larsen Chechi).
A mudança de entendimento começa a ocorrer principalmente a partir dos anos de 1996. Vejamos algumas decisões que demonstram a mudança de posicionamento dos nossos Tribunais quanto à aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor:
1.Responsabilidade civil. Código brasileiro do ar. Limitação da responsabilidade do transportador. Revogação pelo Código de defesa do consumidor. O código de defesa do consumidor revogou toda legislação anterior com ele incompatível. Diplomas legais corporativos, que tutelavam relações de consumo na oitiva dos interesses comerciais, foram revogados, em especial, no que atine a limitação da responsabilidade pelos danos causados no âmbito da relação de consumo. (Embargos de Declaração Nº. 195712930, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Márcio Oliveira Puggina, Julgado em 25/04/1996).
2.Transporte aéreo. Código Brasileiro da Aeronáutica. Código de Defesa do Consumidor. Extravio de bagagem. Aplicam-se as normas que regulam as relações de consumo e não aquelas, limitadoras da responsabilidade, próprias do transporte aéreo, quando a espécie não envolva o chamado risco do ar [...] (Data do julgamento: 04.04.2000; REsp 158535; STJ; Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito).
3.Transporte aéreo. Responsabilidade civil objetiva do transportador. Extravio de bagagens. Afastamento das regras do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia. Aplicação do código de defesa do consumidor. O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação no caso de indenização baseada em responsabilidade do transportador aéreo por extravio de bagagens, afastando-se as regras da Convenção de Varsóvia e do Código Brasileiro de Aeronáutica (Data do julgamento: 11/09/2003; Apelação Cível; TJRS; Rel. Carlos Eduardo Zietlow Duro).
4.CONTRATO DE TRANSPORTE. Transporte aéreo doméstico. Desaparecimento de bagagem. Responsabilidade tarifada. Inaplicabilidade no caso. Indenização total. Recurso provido para julgar a ação procedente. Ocorrido extravio de bagagem durante o transporte aéreo doméstico, nas circunstâncias do caso não se aplica a indenização tarifada prevista em legislação especial, porém a obrigação de reparação integral pelo montante do dano causado (Data do julgamento: 17/04/2008; 11ª Câmara de Direito Privado; TJSP; Rel. Gilberto dos Santos).
5.TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS - EXTRAVIO DE BAGAGEM - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - LEGISLAÇÃO APLICÁVEL - CDC - CONTRATAÇÃO CONJUNTA DE DIVERSAS COMPANHIAS AÉREAS - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA - DANOS MATERIAIS E MORAIS - DEVER DE INDENIZAR - QUANTUM - RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.O transporte aéreo de passageiros, nacional ou internacional, encerra relação de consumo, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor e, não, a Convenção de Montreal. Formada uma cadeia de fornecedores para disponibilizar ao consumidor passagens aéreas, a fim de que ele possa alcançar seu destino final, respondem eles, por força de lei, solidariamente, pelos danos advindos da falha na prestação do serviço como um todo. Devem ser ressarcidos os inegáveis danos materiais advindos do extravio de bagagem durante todo o período de viagem ao exterior, se demonstrados de forma suficiente e em quantia razoável e plausível para os fins cobrados, sem configurar abuso capaz de ensejar enriquecimento sem causa. Induvidoso que o extravio de bagagem, durante todo o período da viagem ao exterior, expõe a consumidora, que ficou privada dos seus pertences pessoais, a constrangimentos de toda sorte, mormente quando se trata de uma menina de apenas 15 anos, desacompanhada dos pais. Compete ao julgador, estipular equitativamente o quantum da indenização por dano moral, segundo o seu prudente arbítrio, analisando as circunstâncias do caso concreto e obedecendo aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (Data do julgamento: 03/11/2009; TJMG; Rel. José Antônio Braga).
6.APELAÇAO CÍVEL-CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL- INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS-ATRASO E REMARCAÇAO DE VÔO- TRANSPORTE AÉREO-RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Aplicação do CDC à espécie, com direito à reparação integral dos danos, em consonância com a jurisprudência do STJ. Adiamento inesperado do embarque, com atraso no destino pretendido. Situação que ultrapassa a seara do mero aborrecimento, configurando efetiva lesão à personalidade. Danos morais configurados. Sentença Integralmente Mantida. Decisão Unânime (Data do julgamento: 14/09/2010; 2ª Câmara Especializada Cível; TJPI; Rel. José James Gomes Pereira).
Ante o exposto, percebe-se, claramente, uma mudança de visão a partir da jurisprudência de vários Tribunais de Justiça e do STJ, que tem afastado a indenização limitada, prevista na Convenção de Varsóvia ou no Código Brasileiro de Aeronáutica, no que se refere à apuração da responsabilidade civil do transportador aéreo, e vem aplicando sistematicamente o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, de forma a garantir a efetiva reparação dos danos sofridos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em <http://www.tjrs.jus.br >. Acesso em 14.09.2010.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br >. Acesso em 15.09.2010.
BRASIL. Vade Mecum Saraiva. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Org.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Org.); CÉSPEDES, Livia (Org.). São Paulo: Saraiva, 2006.
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FARES, Ali Taleb. Novo Panorama da Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo. Revista Brasileira de Direito Aeroespacial. 2003, n. 77. Disponível em: <http://www.sbda.org.br/revista/Anterior/1666.htm>. Acesso em: 12 set. 2010.
STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial: Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
Analista do Ministério Público de Sergipe, Graduada em Direito em 2008 pela Universidade Tiradentes - UNIT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Érica Luize Lima. Evolução jurisprudencial sobre a legislação aplicável à responsabilidade civil do transportador aéreo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 out 2010, 08:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21964/evolucao-jurisprudencial-sobre-a-legislacao-aplicavel-a-responsabilidade-civil-do-transportador-aereo. Acesso em: 23 dez 2024.
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