O Código Brasileiro de Aeronáutica, como lei especial, restringe a abrangência das leis gerais, assim o Código Civil, de onde provinham os princípios norteadores do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil, por exemplo, cedeu espaço para as leis especiais sobre o transporte aéreo nacional, agora regido pela Lei 7.565/86.
Desde a edição das leis especiais sobre o transporte aéreo, no campo da responsabilidade civil houve pouca discussão. Surgiu, em 1990, o CDC, que, cumprindo expressa determinação constitucional, implantou uma política nacional de consumo, uma disciplina jurídica única e uniforme para todas as relações de consumo. Consagrou o princípio da restitutio in integrum (reparação integral dos danos sofridos), calcada na responsabilidade objetiva (independente de culpa, bastando a demonstração do nexo de causalidade entre o serviço prestado e o dano ocasionado), sempre que houver prejuízos decorrentes de uma relação de consumo.
Segundo Benjamim (2003, p.4), o Código Brasileiro de Aeronáutica e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor convivem de maneira harmoniosa, exceto em relação a alguns de seus dispositivos, onde o conflito é evidente, mais especificamente em relação à responsabilidade civil pelos vícios de qualidade por insegurança (acidentes de consumo, no caso de morte ou lesão do passageiro) e por inadequação (atraso, cancelamento de voo, perda de bagagem ou preterição de passageiro, dentre outros). Nesse contexto, entende-se que todo o restante do Código de Defesa do Consumidor não encontra qualquer incompatibilidade com o CBA. Portanto, em temas como o controle de cláusulas abusivas, da publicidade, dos bancos de dados, da cobrança de dívidas e das praticas abusivas, entre elas o overbooking[1], o Código do Consumidor será aplicado isoladamente.
Continua o autor afirmando que só haverá conflito entre os dois regimes jurídicos, o CBA e o CDC, quando estivermos diante de relação jurídica de consumo, caracterizada pelo transportador versus consumidor.
Assim, após a vigência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, tornou-se polêmica a questão da responsabilidade civil, especialmente no tocante à indenização limitada. De um lado há os que sustentam que, sendo integral o dever de indenizar estatuído pelo CDC (art. 6º, VI), as hipóteses de responsabilidade civil limitadas a um teto, em sede de acidente de consumo, restaram afastadas. De outro lado, os cultores do Direito Aeronáutico defendem que, no conflito entre lei geral e lei especial, prevalece a segunda, pelo que o Código do Consumidor em nada poderia alterar o CBA, uma vez que este é considerado lei especial (CAVALCANTI, 2002, p. 61-62).
Sérgio Cavalieri Filho (2006, p. 349) adota a primeira corrente. Para o autor, aplica-se o CDC ao transporte coletivo de passageiros, por envolver relação de consumo, na modalidade de prestação de serviço público.
Além da abrangência do conceito de serviço, adotada em seu art. 3º, § 2º, o Código do Consumidor tem regra específica no art. 22 e seu parágrafo único. Ficou ali estabelecido que os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, além de serem obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros, respondem pelos danos que causarem aos usuários, na forma prevista no CDC.
Para o autor, não há como contestar a incidência do CDC nos casos de acidentes ocorridos por ocasião do transporte de passageiros por se tratar de serviço público, não podendo as empresas que o exploram ficar fora do regime de indenização integral estatuído no Código do Consumidor (arts. 6º, I e VI, e 25).
Diz ainda Cavalieri que:
Não vale argumentar que o Código do Consumidor, por ser lei geral posterior, não derrogou o Código Brasileiro de Aeronáutica, de natureza especial e anterior – lex posterior generalis non derrogat priori speciali – porque essa regra, além de não ser absoluta, não tem aplicação no caso em exame [...] É impertinente a regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali, porque, tratando-se de relações de consumo, o Código do Consumidor é a lei própria, específica e exclusiva (CAVALIERI, 2006, p. 349-350).
Discorre ainda o doutrinador sobre a questão da responsabilidade do transportador deixar de ser limitada e passar a ser regida pelo Direito Comum no caso de ser provado que o dano resultou de dolo ou culpa grave do transportador ou de seus prepostos, conforme o disposto no art. 248 do CBA. Determina o § 1º deste artigo que ocorrerá dolo ou culpa grave quando o transportador ou seus prepostos quis o resultado ou assumiram o risco de produzi-lo, ficando a cargo da vítima o ônus da prova (CAVALAIERI, 2006, p.350).
Amaral Júnior (2001, apud CAVALCANTI, 2002, p. 63) defende que a intenção do legislador com a edição do CDC foi a de excluir a aplicabilidade das normas que não atendam, amplamente, aos interesses dos consumidores. Chama a atenção o autor que a limitação da responsabilidade motivada pelo CBA colide com o principio da reparação efetiva consagrado pelo CDC.
Neste mesmo sentido, Cláudia Lima Marques (1992, p. 159) elege o Código de Proteção e Defesa do Consumidor hierarquicamente superior, devendo, portanto, prevalecer quando em confronto com leis ordinárias, mesmo leis especiais, em face da origem constitucional da defesa do consumidor (art. 170, V, da CF/88) e porque as normas nele contidas são de natureza especial.
Para Fernando Noronha (2002, p. 173-174) as razões que levaram a Convenção de Varsóvia estabelecer uma limitação de responsabilidade, como tratamento privilegiado do transportador aéreo, desapareceram uma vez que as estatísticas mostram que o transporte aéreo tem margens de segurança que ultrapassam as do transporte terrestre. O autor chega a dizer que: “Se hoje a limitação da responsabilidade do transportador aéreo é, de lege ferenda, injustificável, ela só se pode manter no ordenamento jurídico pela força da inércia”. Tais considerações foram feitas levando-se em conta a não vigência do CDC, pois com a sua vigência, afirma o autor que subiram de tom os protestos contra o anacronismo do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia, porque agora existe um diploma legal, resultante de preocupações sociais manifestadas não só no CDC, como também na Constituição Federal. Informa ainda, que desde cedo três correntes se delinearam, onde a primeira era a mais comedida, apegando-se ao fato de que o CBA só se referia a danos patrimoniais, sem especificar que os danos extrapatrimoniais também estavam incluídos. A segunda sustentou que a limitação da responsabilidade era contrária a ordem pública constitucional instituída em 1988, vez que se contrapunha ao sistema de tutela do consumidor disposto na CF e posteriormente no CDC, não sendo por isso aplicável o CBA no âmbito das relações de consumo. Para a terceira e última corrente, a CF/88 se contrapõe a qualquer limitação indenizatória, mesmo para além relações consumeristas e pelo menos no que se referir a qualquer dano pessoal, visto que a Constituição tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e por objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Conclui-se, que os limites indenizatórios do transporte aéreo não passam pelo teste constitucional da dignidade humana, nem, muito menos, da justiça e solidariedade social.
Nery Júnior (2001, apud CAVALCANTI, 2002, p. 64) sustenta que não são mais admitidas, nos âmbitos das relações de consumo, as chamadas indenizações limitadas ou tarifadas previstas no Código Brasileiro de Aeronáutica. Defende o doutrinador, que o CDC adota o princípio indenizatório da restitutio in integrum quando diz ser direito básico do consumidor a efetiva reparação dos danos.
Já Para Antônio Henrique Rêgo (1999, p. 61 apud CAVALCANTI, 2002, p. 65-66), o CDC trouxe em sua estrutura várias distorções que, aliadas ao despreparo de grande parte da população e ao comportamento oportunista dos que dele querem obter vantagens indevidas, depreciaram seu objetivo básico. Justifica que isso ocorre porque muitos o entendem como a solução final para todos os males e aborrecimentos que a sociedade de consumo provoca, tendo se prestado, em algumas situações, a aterrorizar comerciantes, industriais e prestadores de serviço honestos que ainda existem. Segundo o autor, o Código foi elaborado com o objetivo de proteger o consumidor de boa-fé contra o fornecedor de bens e serviços maliciosos e não o contrário, citando as empresas aéreas que têm sido vítimas desta distorção.
O mesmo autor afirma ainda que, os princípios que informam o Direito Aeronáutico, a limitação de responsabilidade do transportador aéreo é universalmente consagrada, tanto pelas convenções e tratados internacionais, como pelas legislações internas da maioria dos povos cultos. Assim, no Brasil vigoram para o tráfego aéreo internacional a Convenção de Varsóvia e, para o tráfego aéreo doméstico, o Código Brasileiro de Aeronáutica. Na opinião do autor, dado que as convenções e atos internacionais que o Brasil tenha ratificado preponderam inquestionavelmente sobre a legislação interna, dúvidas não devem existir quanto à prevalência dos seus princípios.
Sobre o tema, Luís Camargo Pinto de Carvalho (2001 apud CAVALCANTI, 2002, p. 66-67) afirma que por força do princípio da continuidade das leis, corporificado no artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, a lei terá vigor até que a outra modifique ou revogue. A lei posterior revoga a anterior mediante três hipóteses: quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei anterior. Defende o autor, que a primeira e terceira hipóteses devem ser desconsideradas, uma vez que, com relação à primeira, o Código do Consumidor caiu na vala comum das “revogam-se as disposições em contrario”; e com relação à terceira, fica evidente de que como não tratou do transporte aéreo, não regulou a matéria a ele referente. Restaria o exame da possibilidade de existência de incompatibilidade entre os dois diplomas, prevalecendo o mais recente, no caso o CDC. Esta, na ótica do autor, também não valerá, visto que o Código do Consumidor aborda de forma genérica os meios e caminhos de defesa do consumidor, sem, entretanto, mencionar valores e montantes indenizatórios, que serão estabelecidos em cada caso concreto, com a aplicação dos princípios que fazem parte do ordenamento jurídico.
Luís Camargo Pinto de Carvalho defende que o sentido que o legislador quis dar ao vocábulo incompatibilidade é o de contrariedade, isto é, haverá incompatibilidade de uma lei com outra mais recente, quando o texto desta for contrário ao da anterior, sendo, pois, inconciliáveis. Continua dizendo que o Código do Consumidor é uma lei geral e o Código Brasileiro de Aeronáutica uma lei especial, e assim sendo, aquela não revoga esta, exceto se outra for a intenção do legislador.
Assim, o mesmo autor sustenta a prevalência do CBA, arguindo que pelo análise da Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º, parágrafos 1º, 2º e 3º, não se encontra guarida para sua revogação, restando afastada a afirmativa de revogação da responsabilidade limitada, prevista no estatuto aeronáutico. E faz referência, ainda, às comunidades internacionais, que já possuem seus próprios Códigos de Consumidores há mais tempos, ressaltando que nelas não hesitaram em adotar o Direito Aeronáutico e suas limitações.
Conclui-se, por todo o exposto, que as correntes doutrinárias seguem linha opostas, uma elegendo o CDC como prevalecente ao CBA, tanto em razão do objeto, que aquele tutela (o interesse público), quanto pela sua maior hierarquia, por conta da principiológica constitucional de suas normas, enquanto corrente diversa é adepta à aplicação do CBA, afirmando que os tratados internacionais de que o Brasil é signatário prevalecem sobre a legislação interna, revogando, assim, os dispositivos incompatíveis com eles e que, embora lei mais recente, o CDC, por sei lei geral, não poderia, em regra, revogar o CBA, lei especial sobre a matéria, salvo expressa intenção do legislador.
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Analista do Ministério Público de Sergipe, Graduada em Direito em 2008 pela Universidade Tiradentes - UNIT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Érica Luize Lima. Conflito aparente de normas entre o Código Brasileiro de Aeronáutica e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 out 2010, 16:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21972/conflito-aparente-de-normas-entre-o-codigo-brasileiro-de-aeronautica-e-o-codigo-de-protecao-e-defesa-do-consumidor. Acesso em: 23 dez 2024.
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