1. Considerações iniciais
O presente artigo tem por escopo fazer uma digressão pela evolução histórica contratual, buscando-se conhecer suas nuances, características e prerrogativas em face das necessidades socioeconômicas populacionais e, sobretudo, a mitigação do pacta sunt servanda à luz do código de defesa do consumidor e sua correlação com o princípio da segurança jurídica.
2. Dos Contratos
Poucos institutos sobreviveram por tanto e se desenvolveram sob formas tão diversas quanto o contrato, que se adaptou a sociedades com estruturas e escalas de valores tão distintas quanto as que existiam na Antiguidade, na Idade Média, no mundo capitalista e no próprio regime comunista.
Na realidade, o contrato nasceu formalista e típico, no direito romano, para transformar-se num instrumento válido pelo fato de ser uma manifestação de vontade do indivíduo e, em conseqüência, um instrumento vinculatório, que fazia o papel da lei entre as partes, na concepção dos enciclopedistas que inspiraram a Revolução Francesa, o Código Napoleão e o nosso Código Civil de 1916.
Por longo tempo, entendeu-se que os pactos deviam ser respeitados religiosamente (pacta sunt servanda), pois refletiam um ato de liberdade individual. O contrato, pela sua própria natureza, por decorrer de um acordo de vontades, devia ser considerado justo e, conseqüentemente, era intangível, devendo ser executado, custasse o que custasse, de acordo com a intenção das partes, ressalvados tão somente o caso excepcional da força maior e do caso fortuito.
Surgiram, aos poucos, as limitações tanto à liberdade de contratar, ou de não contratar, quanto à liberdade contratual, ou seja, à fixação do conteúdo do contrato. Embora se mantivesse, como regra geral, a onipotência da vontade individual, com a possibilidade de criação dos mais variados contratos inominados, atípicos e mistos, o legislador, ampliando a área da ordem pública econômica, foi restringindo o conteúdo da autonomia da vontade.
Em tese, a liberdade contratual só sofre restrições em virtude da ordem pública, que representa a projeção do interesse social nas relações interindividuais. O jus cogens, o direito imperativo, defende os bons costumes e a estrutura social, econômica e política da comunidade.
As idéias solidárias e socialistas e a hipertrofia do Estado levaram, todavia, o direito ao dirigismo contratual, expandindo-se a área das normas de ordem publica destinadas a proteger os elementos economicamente fracos, favorecendo o empregado, pela criação do direito do trabalho, o inquilino, com a legislação sobre locações, e o consumidor, por uma legislação específica em seu favor. Por outro lado, o dirigismo contratual restringiu a autonomia da vontade, em virtude da elaboração de uma série de normas legislativas, fixando princípios mínimos que os contratos não podem afastar.
Nos últimos anos, deixou-se, no entanto, de conceber o contrato como necessariamente decorrente ou representativo de interesses antagônicos, chegando os autores e a própria jurisprudência a admitir, inicialmente nos contratos de longo prazo, mas em seguida, em todos eles, a existência de uma affectio – a affectio contractus -, com uma semelhança com outras formas de colaboração como a affectio societatis ou próprio vínculo conjugal.
O contrato permitia às partes evitar todos os riscos futuros, garantindo-lhes a imutabilidade das prestações convencionadas e a sobrevivência da convenção diante de fatos imprevistos, mesmo quando alternavam substancialmente a equação contratual. Hoje, o contrato perdeu essa perenidade, mas ganhou flexibilidade, sacrificando-se alguns benefícios eventuais ao interesse comum das partes e ao interesse social.
Assim em vez do contrato irrevogável, fixo, cristalizado de ontem, conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes devem adaptar para que ele possa sobreviver, superando, pelo eventual sacrifício de alguns dos seus interesses, as dificuldades encontradas no decorrer da sua existência. A plasticidade do contrato transforma a sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado sejam agora convertidos numa verdadeira parceria, com maior ou menor densidade, na qual todos esforços são válidos e necessários para fazer substituir o vínculo entre os contratantes, respeitados, evidentemente, os direitos individuais.
Num mudo em que nada mais é absoluto, o contrato, para subsistir, teve que aderir ao relativismo, o que se tornou condição sine qua non da sua sobrevivência no tempo, em virtude da incerteza generalizada, da globalização da economia e da imprevisão institucionalizada.
Finalmente, o dinamismo dos contratos fez com que o legislador admitisse a resolução deles por excessiva onerosidade e a revisão dos contratos unilaterais pelo mesmo motivo. Na realidade, têm-se modificado substancialmente o contrato, dando - lhe conteúdo e efeitos que não tinha no passado, e produzindo, no secular direito civil, com as necessárias cautelas, alguns dos princípios do direito do consumidor. Embora seja uma evolução necessária e justa, ela deve ser temperada pelo atendimento dos direitos dos contratantes e da segurança jurídica.
De um lado, já não bastam retoques incidentais para manter um instituto que, tendo sofrido grandes transformações, exige o reconhecimento das respectivas conseqüências pela dogmática jurídica, a fim de evitar que os conceitos se afastem da realidade. Trata - se, pois, de repensar os institutos, redefinindo as suas características, não bastando manter o nome ou a forma, para que uma técnica jurídica se mantenha com o mesmo conteúdo.
Por outro lado, se o direito tem dupla finalidade de garantir tanto a justiça quanto a segurança, é preciso encontrar o justo equilíbrio entre as duas aspirações, sob pena de criar um mundo justo, mas inviável, ou uma sociedade eficiente, mas injusta, quando é preciso conciliar a justiça e a eficiência.
Não devem prevalecer nem o excesso de conservadorismo, que impede o desenvolvimento da sociedade, nem radicalismo destruidor, que não assegura a continuidade das instituições. O momento é de reflexão e de construção para o jurista, que, abandonando o absolutismo passado, deve relativizar as soluções, tendo em conta tanto os valores éticos quanto as realidades econômicas e sociais. Entre princípios antagônicos, num mundo dominado pela teoria da relatividade, cabe adotar, também no campo do direito, o que alguns juristas passaram a chamar os princípios de geometria variável, ou seja, o equilíbrio entre justiça e segurança, com prevalência de ética, mas sem desconhecer a economia e os seus imperativos.
Conveniente é a citação do professor Pablo Stolze (2005), a fim de transmitir as influências do dirigismo contratual sobre a autonomia privada:
Vive-se um momento histórico marcado por disputas geopolítica e imprevisão econômica, no qual o individualismo selvagem cedeu lugar para o solidarismo social, característico de uma sociedade globalizada, que exige o reconhecimento de normas limitativas do avanço da autonomia privada, em respeito ao princípio maior da dignidade humana.
Surge, assim, um novo contrato, tão afastado daquele que foi concebido pelo Código Napoleão quanto o da lei francesa estava distante de contrato romano. A força das palavras e das instituições e, algumas vezes, a denominação dos institutos jurídicos se mantêm no tempo, mesmo quando sofrem mutações radicais em virtude das quais se poderia considerar que o seu conteúdo foi esvaziado ou até desapareceu. Cabe, todavia, aos juristas, especialmente na fase de transição que atravessamos, adaptar os conceitos e institutos à evolução constante do mundo e da tecnologia, para evitar a revolta dos fatos contra o direito, à qual aludia, há longos anos, Gaston Morin.
Sendo o contrato, em sua noção estrita, um acordo de vontades, foi por esse ângulo que ele sofreu suas maiores e mais significativas evoluções. O movimento evolutivo da contratação dirige-se no sentido de uma reconstrução do próprio sistema contratual orientada no sentido de libertar o conceito de contrato da idéia de autonomia privada e admitir que, além da vontade das partes, outras fontes integram o seu conteúdo. A nova concepção atenta para o dado novo de que, em virtude da política interventiva do Estado, o contrato, quando instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, ajusta-se a parâmetros que levam em conta a dimensão coletiva dos conflitos sociais subjacentes. Disciplinados por uma legislação avulsa que abandonou a postura tradicional do Código Civil, passaram a ser um ponto de referência de interesses diversos, uma estrutura aberta que é preenchida, não apenas por disposições resultantes do acordo de vontades, mas também, por prescrições da lei, imperativas e dispositivas, e pela eqüidade.
Nessa seara, o CDC se propõe a restringir e regular através de normas imperativas o espaço antes reservado totalmente para a autonomia da vontade, instituindo como valor máximo a equidade contratual. Normas que antes eram supletivas, hoje são imperativas, visando à proteção dos consumidores. A sociedade protege o mais fraco em nome de interesses coletivos de ordem pública. É uma evolução e tanto, se olharmos para o passado recente, o século XIX, época reinante do liberalismo, quando o contrato fazia lei entre as partes e nenhuma delas podia esquivar-se do seu cumprimento, por mais iníquo que lhe fosse.
O CDC rompe com a tradição do direito privado para relativizar o princípio da intangibilidade do conteúdo contratual e enfatizar o princípio da conservação do contrato. É o fenômeno do digirismo contratual, como uma espécie de elemento mitigador da autonomia privada, fazendo presente a influência do direito público no direito privado pela interferência estatal na liberdade de contratar. Este dirigismo não se dá em qualquer situação, mas naquelas consideradas como merecedoras de controle para que seja mantido o desejado equilíbrio entre as partes contratantes, como os contratos de consumo. Como afirmou Lacordaire (1968), “entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta.”
Atento à nova realidade, o CDC tem o propósito de mudar a mentalidade no que diz respeito às relações de consumo, que deve ser implementada por todos os que se encontram envolvidos nessas relações. É um direito especial, conjunto de normas destinadas à defesa e proteção do consumidor que estabelece técnicas e métodos adequados para a exata compreensão e interpretação desse novo sistema normativo em situações concretas.
O CDC, sendo a primeira lei pátria a regular o contrato de adesão, faz a mais profunda intervenção estatal na economia interna do contrato, em nome da tutela à parte fraca da relação de consumo, atingindo profundamente os princípios básicos da teoria do contrato: a autonomia da vontade; a força obrigatória; a relatividade; e boa-fé.
O contrato assume uma concepção social, para a qual não só o momento da manifestação da vontade importa, mas onde seus efeitos na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha importância.
À procura do equilíbrio contratual a lei passa a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes. É a concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento principal, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, o interesse social, um elemento básico para a sociedade como um todo.
Não mais se tutela exclusivamente o momento da criação do contrato, a vontade, o consenso, mas a proteção vai concentrar-se nos efeitos do contrato na sociedade, procurando harmonizar os vários interesses e valores envolvidos e assegurar a justiça contratual.
4. Considerações finais
O contrato, em tempos modernos, faz parte do dia a dia dos cidadãos, seja em sua relação com o Estado, seja com outros membros da sociedade. De certo, ao longo das décadas, a relação contratual sofreu profundas modificações, impulsionadas, em sua grande parte, pela implementação de políticas econômicas e pelos avanços dos direitos dos consumidores. Assim, torna-se postulado que a igualdade não existe em grande parte das relações jurídicas constituídas em sociedade. Dessa forma, deve-se deixar de lado a igualdade formal para se alcançar a igualdade real, limitando-se a liberdade e a vontade por meio de normas cogentes que permitam ao julgador delas extrair os princípios gerais que as inspiraram, adequando-se a norma ao direito civil constitucional para a correta solução dos problemas submetidos ao Poder Judiciário.
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Advogada. Pós- Graduada em Direito Civil e Processo Civil. Membro associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Lívia de Souza Just Vieira. A mitigação do Pacta Sunt Servanda à luz do CDC e o Princípio da Segurança Jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 out 2010, 08:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21995/a-mitigacao-do-pacta-sunt-servanda-a-luz-do-cdc-e-o-principio-da-seguranca-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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