Diante de falta de legislação especifica sobre a matéria é de suma importância o trabalho do aplicador do direito para dirimir conflitos advindos de uniões homossexuais que chegam as portas do Poder Judiciário.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 3º estendeu a proteção à entidade familiar formada pela união estável entre o homem e a mulher e a família monoparental. Assim, é requisito de constituição da União Estável a diferença de sexo entre os conviventes.
Maria Berenice Dias (2001) em interpretação ao art. 226, § 3º da CF esclarece:
“Passando, duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo, a manter uma relação duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem. A única diferença que essa convivência guarda com a união estável entre o homem e a mulher é a inexistência do objetivo de gerar filhos (...). Como a capacidade procriativa ou a vontade de ter prole não são elementos essenciais para que se empreste proteção legal a um par, é de reconhecer-se a incompatibilidade da regra com o preceito igualitário, que dispõe de maior espectro”[1].
No tocante a discriminação por motivo de orientação sexual, tramita no país a proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 139/95 - da Deputada Marta Suplicy,[i] que altera os arts. 3º e 7º da CF, para proibir determinadas práticas que são contrárias, inclusive, aos princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, da Liberdade, Igualdade e Intimidade.
Na esfera estadual, Sergipe foi pioneiro ao proibir expressamente a discriminação por "orientação sexual", precisamente em seu art. 3º, II da Constituição Estadual, que dispõe:
Art. 3º. O Estado assegura, por suas leis e pelos atos de seus agentes, além dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal e decorrentes do regime e dos princípios que ela adota, ainda os seguintes:
(...)
II. proteção contra discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idade, classe social, orientação sexual, deficiência física, mental ou sensorial, convicção político-ideológica, crença em manifestação religiosa, sendo os infratores passíveis de punição por lei.
Existem algumas tentativas do Poder Legislativo para favorecer esse determinado segmento da sociedade que carece de proteção. Um exemplo dessa tentativa é o Projeto de Lei nº 70/95, que propõe a inclusão do § 9º ao art. 29 do Código[2] Penal, possibilitando a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo dos transexuais, além do acréscimo dos §§ 2º e 3º ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos, possibilitando a mudança do prenome e averbação da identidade como transexual.
Outro exemplo é o Projeto de Lei nº 1.151/95, de iniciativa da ex-deputada federal Marta Suplicy e seu substitutivo, do Deputado Roberto Jefferson. O seu texto traz dispositivos que regulamentam a matéria patrimonial garantindo inclusive, o direito de proposição de ação de cobrança de alimentos por parte de algum dos ex-conviventes.
Como bem pondera a autora desse projeto, não se pode mais negar a existência de relações homossexuais e as diferentes formas de expressão da sexualidade, no Brasil e em outros países, sendo necessário "garantir direitos de cidadania sem discriminar as pessoas devido à sua orientação sexual".
Tal projeto não admite o casamento, nem a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, simplesmente assegura às pessoas homossexuais, através de uma parceria civil registrada, o direito a herança, benefícios previdenciários, renda conjunta para aquisição de imóvel, à nacionalidade para estrangeiros que construíssem parcerias homossexuais com brasileiros, entre outros.
Assim, o artigo 1° do Projeto de Lei nº 1151/95, admite a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo registrarem sua parceria civil. Essa parceria constitui-se mediante registro em livro próprio nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais (art. 2°), com a apresentação dos documentos dos interessados enumerados no parágrafo 1°, como declaração de serem solteiros, viúvos ou divorciados; prova de capacidade civil absoluta, por meio de certidão de idade ou prova equivalente; e escritura pública de contrato de parceria civil.
Em seguida, em seus artigos 4º, 5º e 6º o Projeto de Lei nº 1.151/95 dispõe sobre a extinção da parceria que ocorrerá pela morte de um dos contratantes, mediante decretação judicial, quando houver litígio que deverá ser requerida com fundamento na demonstração da infração contratual e desinteresse na continuidade; e de forma consensual homologada pelo juiz.
O efeito decorrente da extinção da parceria, como adverte o artigo 6º é a partilha dos bens dos parceiros, que obedecerá as cláusulas contratuais inseridas quanto da instituição da parceria. Se não houver estipulação contratual haverá condomínio em relação aos bens adquiridos, caso haja proporção em contrato escrito, este prevalecerá.
O Código Civil de 2002 se omitiu em relação as uniões homoafetivas, sendo bastante criticada a Comissão Revisora e Elaboradora do Ante Projeto de Código Civil. Sob o título “Criticas Apressadas ou Oportunas”, o jurista Miguel Reale (1999) respondeu:
“Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a União Estável entre o homem e uma mulher. De maneira que, para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primeiro lugar seria preciso mudar a Constituição...Não era essa a nossa tarefa e muito menos a do Senado (p. 14)”[3].
Acontece que tais projetos ainda não mereceram vontade política para aprovação no Congresso Nacional, continuando o Brasil atrasado legislativamente com relação a outros países e deixando as uniões homossexuais à margem de proteção legal.
Todavia já existem alguns avanços com relação as questões envolvendo casais homossexuais, como é o caso da a Instrução Normativa nº 25, de 07/07/2000 do INSS, quanto ao Regime Geral de Previdência Social, que estabelece os procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.
A Instrução do INSS é resultado de uma decisão do Tribunal Regional Federal que manteve a liminar concedida pela juíza federal da 3º Vara Previdenciária de Porto Alegre, Simone Barbisan Fortes. A ordem concede aos casais homossexuais o pagamento de auxílio-reclusão e pensão por morte de companheiro do mesmo sexo.
A documentação exigida pela Previdência Social para comprovação da existência de união homossexual e da dependência econômica do parceiro do mesmo sexo, com a finalidade de obtenção dos benefícios citados estão dispostos no art. 3º da IN 25/2000, quais sejam: declaração de Imposto de Renda do segurado que traga o interessado como dependente; disposições testamentárias; declaração especial feita perante Tabelião; prova de mesmo domicílio; prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil; procuração ou fiança reciprocamente outorgada; conta bancária conjunta;escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente; e quaisquer outros documentos que possam levar a convicção do fato a comprovar.
Entretanto, o avanço mais importante ocorreu, em 07 de agosto de 2006, foi a sanção da Lei no 1.1.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, que, apesar de ter como propósito a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, acabou trazendo importante inovação no ordenamento jurídico nacional em seu artigo 5o, II e parágrafo único, que dispõe:
Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – (...);
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (...).
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (grifo meu).
Dessa maneira, a Lei Maria da Penha, traz uma inovação ao conceito de família, no momento em que considera esta uma comunidade formada por indivíduos unidos por vontade expressa, incluindo as uniões homoafetivas, interpretação reforçada pelo parágrafo único do art. 5º da lei citada.
O dispositivo supra não pode ser considerado inconstitucional, vez que a Carta Magna não proíbe o reconhecimento de novas modalidades de família não abarcadas pelo art. 226, fato que não impede a aplicação desse artigo.
Sobre essa inovação trazida pela Lei Maria da Penha elucida Maria Berenice Dias (2007) em seu artigo “Violência Doméstica e as Relações Homoafetivas”:
“Diante da expressão legal, é imperioso reconhecer que as uniões homoafetivas constituem uma unidade doméstica, não importando o sexo dos parceiros. Quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres, quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram entidade familiar. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, fato é que ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade”[4].
Esse avanço é bastante significativo, sobretudo com relação as discussões que dividem doutrina e jurisprudência, devendo ser extinta a concepção da relação homoafetiva como sociedade de fato que nega o componente sexual e afetivo das relações homossexuais. A tendência jurisprudencial majoritária era relegar tais uniões ao âmbito do Direito das Obrigações, taxando as uniões como sociedades sem fins lucrativos, e com o seu final procedia a repartição daquilo construído com esforço comum durante o convívio, como será mais detalhadamente analisado no próximo tópico.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 4. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SILVA, Maria Rosinete dos Reis. Outorga nas uniões homoafetivas. Disponível em http://www.iuspedia.com.br 11 fev. 2008.
REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
[1] DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[2] SILVA, Maria Rosinete dos Reis. Outorga nas uniões homoafetivas. Disponível em http://www.iuspedia.com.br 11 fev. 2008
[3] REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 4. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Técnica do Ministério Público de Sergipe. Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Raissa Lemos. Aspectos legislativos sobre a relação homoafetiva no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 out 2010, 08:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21997/aspectos-legislativos-sobre-a-relacao-homoafetiva-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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