Até 1996, o crime doloso contra a vida, independente de ter sido cometido contra civil ou militar, quando praticado por policial militar em serviço, a competência para julgar tal crime era da Justiça Militar, porém, a partir da entrada em vigor da Lei 9.299/96, a competência de julgar os crimes dolosos contra a vida de civis, passou a ser do Tribunal de Júri, inclusive, com aplicação imediata, como cita Damásio de Jesus:[1] “Quando a lei 9.299/96 entrou em vigor, o STJ passou a decidir que ela deveria ter aplicação imediata, atingindo, inclusive, processos em andamento, salvo se houvesse decisão de mérito”
Cabe salientar que o STF entendeu em 2002 que o crime doloso contra a vida, cometido por militar, contra militar, a competência é da Justiça Militar, conforme informativo nº 280:
Julgando conflito de competência suscitado pelo STM em face do STJ, o Tribunal, por maioria, com fundamento no art. 9.º, II, ‘a’, do Código Penal Militar, assentou a competência da Justiça Militar para o julgamento de crime de homicídio cometido por militar, em face de outro militar, ocorrido fora do local de serviço. Considerou-se que, embora o homicídio tenha ocorrido na casa dos envolvidos, por motivos de ordem privada, subsiste a competência da Justiça Militar porquanto qualquer crime cometido por militar em face de outro militar, ambos em atividade, atinge, ainda que indiretamente, a disciplina, que é a base das instituições militares. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello e Marco Aurélio, que assentavam a competência da Justiça Comum para o julgamento da espécie (CPM, art. 9.º: ‘Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: [...] II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;’). Precedentes citados: RE n.122.706/RJ (RTJ 137/408) e CJ n. 6.555/SP (RTJ 115/1095)." (STF, Plenário, CC n. 7.071/RJ, rel. Min. Sydney Sanches, j. em 5.9.2002, Informativo STF n. 280).[2]
No decorrer dos anos, surge a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 que alterou o art. 125,§4º da CF com a seguinte redação:
Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.[3]
A partir desta redação muitos doutrinadores divergem sobre o assunto, uns atribuem o crime como de natureza militar, nesse sentido Cícero Robson Coimbra Neves diz que:
O exercício da polícia judiciária nos crimes dolosos contra a vida de civil pelo que até aqui se aduziu, conclui-se que, na esfera estadual, o crime doloso contra a vida de civil continua a ser crime militar, havendo, porém, a competência de julgamento pelo Tribunal do Júri. Ainda com lastro na Lei Maior, cumpre iluminar que a missão constitucional da Polícia Civil cinge-se, por força do § 4º do art. 144, ressalvada a competência da União, às funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Bem clara, na lógica do subsistema constitucional, a exceção criada pelo legislador constituinte, no sentido de que a infração penal militar ficasse à margem das atribuições das Polícias Civis. Os crimes dolosos contra a vida de civis, perpetrados por militares dos Estados, ao encontrarem a plena tipicidade no Código Penal Militar, serão de atribuição apura tória das autoridades de polícia judiciária militar, entenda-se do Comandante de Unidade e, nos casos de delegação, do Oficial de serviço delegado. Como reflexo, as medidas previstas no art. 12 do Código de Processo Penal Militar devem ser encetadas pelo Oficial com atribuição de polícia judiciária militar e não pelo Delegado de Polícia.[4]
Nesta mesma linha Luiz Alberto Moro Cavalcante, juiz de direito Corregedor Permanente da JME de São Paulo segue:
Os crimes militares estão definidos no artigo 9º do CPM e os militares que os praticam, são julgados pela JME, exceto nos crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, cuja competência é da Justiça Comum (parágrafo único do art. 9º). Neste caso, não obstante a competência seja do júri popular, o crime é militar e a autoridade de policia judiciária militar é a competente para apurá-lo, consoante entendimento do § 2º do Art. 82 do CPM. Evidentemente, os autos serão remetidos, depois de concluída a devida apuração dos fatos pela autoridade de policia militar judiciária e por decisão de juiz de direito da justiça militar, após manifestação de promotor de justiça.[5]
Outros atribuem o crime como sendo de natureza comum, como cita o Professor Jeferson Botelho:
Se doloso contra a vida, tentado ou consumado, praticado por militar contra civil, a competência para o processo e julgamento é deslocada para a Justiça Comum. Quanto à apuração dos fatos, muito embora a lei 9.299/96 diga que a Justiça Militar encaminhará o IPM à Justiça Comum, acredito que a norma é inconstitucional, devendo a apuração ficar a cargo da Polícia Civil, considerando que uma vez não sendo mais competência da Justiça Comum, não seria razoável permanecer sob apuração da Justiça Militar. [6]
Com isto, mudaria também a atribuição para lavrar o auto de prisão em flagrante, sendo comum caberia à autoridade civil, ou seja, o Delegado de Polícia, se for de natureza militar a atribuição é da autoridade militar, sito, Oficial Militar de serviço, conforme seu posto hierárquico.
Assim como na CF, a nossa Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de 1989, dispõem as competências da Brigada Militar e da Polícia Civil, conforme artigos 129 à 132 e 133 à 135, respectivamente. Cabe salientar que em ambas as Constituições, a apuração das infrações penais ficam a cargo da Polícia Civil, exceto as infrações penais militares.
No dicionário da língua portuguesa, a palavra “atribuição”, tem como significado: “Ação de atribuir; Competência, prerrogativa, privilégio; Responsabilidade inerente a um cargo ou uma tarefa.” [7] Já, a palavra “atribuições”, significa: “Direitos, poderes ou jurisdição de certas autoridades.” [8]
A palavra “Competência” significa: “Capacidade legal, que um funcionário ou um tribunal tem, de apreciar ou julgar um pleito ou questão; Faculdade para apreciar e resolver qualquer assunto; Aptidão, idoneidade; Presunção de igualdade; Concorrência, confronto; Conflito, luta, oposição.” [9]
Para José Afonso da Silva, “Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões” [10] e “Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.” [11]
Deste modo, podemos dizer que as Polícias (Civil e Militar) são competentes para apurar um delito e lavrar um auto de prisão em flagrante, porém, cada instituição com suas atribuições, ou seja, é atribuição do Delegado de Polícia investigar um crime e lavrar o auto de prisão em flagrante, se este, não for militar, que é atribuição do Oficial Militar, conforme previsto no art. 8º do CPPM, que elenca as atribuições da Polícia Judiciária Militar.
Para definirmos um crime militar, vemos que não é uma tarefa tão fácil de compreender, pois o conceito deste crime especial, ainda é o da doutrina e não raras vezes a jurisprudência emite decisões conflitantes sobre quando e como ocorre esta figura delitiva, conforme cita Jorge César de Assis.[12]
Os crimes militares podem ser propriamente ou impropriamente militar definido assim por Assis:
Crime propriamente militar é aquele que só está previsto no Código Penal Militar, e que só poderá ser cometido por militar, como aqueles contra a autoridade ou disciplina militar ou contra o serviço militar e o dever militar. Já o crime impropriamente militar está previsto ao mesmo tempo, tanto no CPM como na legislação penal comum, ainda que de forma um pouco diversa e via de regra, poderá ser cometido por civil.[13]
Deste modo, pode-se observar que os crimes propriamente militares atentam principalmente contra a ética, o dever, a obrigação, a hierarquia e a disciplina, dos regulamentos e preceitos da doutrina militar.
Diante do exposto, o processo a que responde um Militar Estadual quando denunciado por um suposto crime, seja ele comum ou militar, é de suma importância, pois a ele devem ser resguardadas todas as garantias constitucionais, como o da Proteção Judiciária, “também chamado principio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constituindo em verdade, a principal garantia dos direitos subjetivos.” [14] Podemos elencar neste rol, o direito ao devido processo legal e o direito a uma duração razoável do processo.
Por fim, o objetivo desta pesquisa é conhecer qual a autoridade que tem a atribuição para lavrar um auto de prisão em flagrante delito, praticado por Militar Estadual em serviço, contra a vida de civil, haja vista, toda divergência da doutrina no aspecto do crime comum e militar, pois quanto a competência de processar e julgar os militares estaduais quando cometem um crime doloso contra a vida de um civil já está definida pela legislação, restando apenas averiguar se não haverá nenhum vício ou nulidade no aspecto formal e processual deste flagrante, a fim de assegurar um direito constitucional.
[1] JESUS, Damásio De. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: V.8, n.48, fev./mar. 2008. p.9
[2] Informativo nº 280 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo280.htm; Acesso em 24 de maio de 2010.
[3] Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum compacto. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 47.
[4] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis, in Site Jus Militaris, Disponível na Internet em http://www.jusmilitaris.com.br, acessado em 10 de maio de 2010.
[5] CAVALCANTE, Luiz Alberto Moro. Revista A Força Policial. São Paulo: nº 56 – out/Nov/dez/2007. P.23
[6] BOTELHO, Jeferson. Crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis.http://www.jefersonbotelho.com.br, acessado em 10 de maio de 2010. Disponível na Internet em
[7] MICHELIS, Moderno Dicionário Da Língua Portuguesa, Disponível na Internet em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=atribuição, acessado em 24 de maio de 2010.
[8] MICHELIS, Moderno Dicionário Da Língua Portuguesa, Disponível na Internet em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=atribuições, acessado em 24 de maio de 2010.
[9] MICHELIS, Moderno Dicionário Da Língua Portuguesa, Disponível na Internet em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=competencia acessado em 24 de maio de 2010.
[10] DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 28ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. P.479.
[11] DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. P.479
[12]DE ASSIS, Jorge César. Direito Penal Militar e Processual Penal Militar. Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Ano 3 – Volume 6, nº 3, julho/dezembro, 2004. P.78.
[13] DE ASSIS, Jorge César. Direito Penal Militar e Processual Penal Militar. p.79.
[14] DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p.430.
Acadêmico do Curso de Direito, do Centro Universitário IPA Metodista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Leirson Peng. Flagrante delito militar lavrado por autoridade civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2010, 08:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22020/flagrante-delito-militar-lavrado-por-autoridade-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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Por: Sócrates da Silva Pires
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