1. Introdução
Com a nova redação do artigo 226, parágrafo 6º da Constituição Federal, trazida pela Emenda Constitucional 66/2010, surgiram algumas dúvidas em relação à existência da separação em nosso ordenamento jurídico, bem como a respeito da possibilidade de discussão da culpa pelo fim do casamento.
Nesse breve estudo, abordam-se as aparentes consequências da referida Emenda em relação ao divórcio, à separação e à culpa como causa do fim do casamento.
2. O fim da separação judicial
Parece claro que o legislador realmente teve a intenção de abolir a separação judicial de nosso sistema. Em verdade, a intenção da Emenda foi permitir que os casais pudessem se divorciar a qualquer momento, sem precisar obedecer prazos ou outro requisito, como comprovar a culpa pelo fim do casamento.
De fato, obrigar os casais que já não se amam a aguardar dois anos para ingressar com divórcio direto, ou mesmo um ano após a separação judicial para requerer o divórcio por conversão, é algo inconcebível. Nesse sentido, veio tarde a mudança constitucional. Hoje, portanto, os casais estão livres para romper o vínculo conjugal a qualquer momento. Não precisam mais ficar presos, desgastando-se com prazos sem finalidade.
Da mesma forma, estabelecer pré-requisito sem o qual não é possível a dissolução do vínculo conjugal é um absurdo tão grande nos dias de hoje, que até mesmo a jurisprudência e as melhores doutrinas já vinham relativizando as regras anteriormente vigentes. Assim, bastava que o amor não estivesse mais presente para que o vínculo pudesse ser dissolvido. Afinal, para que provar a insuportabilidade da vida em comum? Ora, se um dos cônjuges está pedindo a separação, não parece óbvio que a vida a dois entre o casal se tornou insuportável? Não há sentido algum em levar a vida íntima do casal ao Judiciário, apenas para poder se divorciar.
Dessa forma, derrogados estão os artigos 1.572, 1.573 e 1.574 do Código Civil, bem como todos aqueles que tratam da separação judicial e não puderem ser aproveitados ao divórcio.
Cumpre destacar que vários autores entendem ainda estar presente a separação judicial em nosso sistema, pois os referidos artigos não foram revogados expressamente. Para alguns destes autores, a separação judicial poderia ser opcional. Dessa forma, caso o casal quisesse apenas um tempo para pensar, poderia utilizar o recurso da separação judicial, e, caso decidissem voltar, bastaria restabelecer a sociedade conjugal, nos termos do artigo 1.577 do Código Civil.
Com respeito às opiniões nesse sentido, não se vislumbra uma finalidade prática para a manutenção da separação judicial, ainda que de forma opcional. Basta o casal separar-se de fato, caso queira um tempo para pensar, antes de decidir pelo divórcio. Ademais, nada impede que após o divórcio o mesmo casal se case novamente.
3. A manutenção da separação de fato
A conclusão não pode ser a mesma em relação à separação de fato. Ela continuará a existir. Isso porque o direito serve à sociedade e deve solucionar os litígios de forma efetiva. É óbvio que os casais continuarão a se separar sem efetivar o divórcio, permanecendo casados no papel, mas vivendo como solteiros na prática. Não se pode negar que existam essas situações, nem tampouco ignorar os problemas jurídicos que daí advenham.
Portanto, embora não haja mais prazo a ser respeitado (como o prazo de dois anos de separação de fato para se pleitear o divórcio direto), a separação de fato subsiste. Aliás, há situações em que ela assume papel muito importante.
Suponhamos que um casal, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, esteja separado de fato há um ano. Caso a mulher venha a adquirir um imóvel, é certo que este bem não se comunica ao marido, pois a separação de fato põe fim ao regime de bens.
Além disso, a separação de fato pode ser a causa de pedir da ação cautelar de separação de corpos, cuja finalidade pode ser, por exemplo, afastar um dos cônjuges do domicílio do casal.
Não obstante, ainda há que se considerar a possibilidade de quem é casado poder constituir união estável, desde que separado de fato, conforme previsão expressa do artigo 1.723, parágrafo 1º do Código Civil.
4. E o divórcio?
Superada a questão acerca da separação, como fica então o divórcio após a alteração constitucional? Primeiramente, não há mais razão alguma para a distinção que antes se fazia entre divórcio direto (aquele realizado após dois anos da separação de fato) e divórcio por conversão (efetivado após um ano de separação judicial). Pela atual redação da Constituição Federal, há apenas o divórcio, o qual pode ser realizado a qualquer tempo. Assim, a título de exemplo, o casal pode se casar em determinada data e, após algumas horas, ingressar com o pedido de divórcio.
Pelo sistema anterior, a lei exigia complicados requisitos para a separação. Se um dos cônjuges não concordasse com a separação consensual, anos eram perdidos com discussões desgastantes em juízo. Existia a separação-sanção (artigo 1.572, caput do Código Civil), a qual exigia a culpa de um dos cônjuges; a separação-falência (artigo 1.572, parágrafo 1º), com o requisito da ruptura da vida em comum por mais de um ano e a impossibilidade de sua reconstituição; e a separação-remédio (artigo 1.572, parágrafo 2º), com a exigência de prova de doença mental grave de cura improvável, obtida após o casamento, que tornasse insuportável a vida em comum.
Com o novo sistema, não há qualquer requisito para o pedido de divórcio, a não ser, é claro, que haja casamento válido anterior. Portanto, é desnecessária a comprovação de que a vida em comum tornou-se insuportável. Basta um dos cônjuges manifestar a sua vontade pelo divórcio.
Neste ponto da nossa análise, surge uma dúvida muito relevante. O fato de não ser mais requisito a comprovação da culpa, significa necessariamente que esta não poderá mais ser discutida nas ações de divórcio?
Vejamos.
5. A possibilidade de se discutir culpa nas ações de divórcio
A maior parte da doutrina entende que a culpa não pode mais ser discutida nas ações de divórcio. É, aliás, entendimento de grande parte dos integrantes do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), instituição que representa com maestria o Direito de Família moderno.
Entretanto, convido todos a uma reflexão mais profunda a respeito do tema.
a) O fim da culpa como requisito para a dissolução do casamento
Os argumentos daqueles que defendem a impossibilidade de se discutir culpa nas ações de divórcio são louváveis. Pretende-se evitar a demora processual que se leva para obter a decretação do divórcio. Além disso, o desgaste proporcionado pelo debate dos ex-cônjuges em litígio, por vezes, é desnecessário. Na maioria das vezes, e até inconscientemente, apenas querem utilizar o Judiciário como ferramenta para se vingar daquele que lhe causou mágoa e sofrimento.
Na maioria das vezes, o relacionamento não termina por causa de um fato isolado. É uma sucessão de atos de ambos os cônjuges que acaba por colocar fim ao casamento. E, realmente, descarregar a raiva de todos esses momentos em um processo, na tentativa de achar um exclusivo culpado é algo deprimente e sem sentido.
Por isso, o fato de a culpa não ser mais requisito para a dissolução do casamento é um avanço muito importante para nossa sociedade.
b) O direito constitucional de se discutir a culpa
Contudo, não se pode esquecer que o direito é representado pela balança. Se um lado da balança estava pesado demais em nosso ordenamento, ao exigir a culpa como requisito para a separação, pendendo para um só lado, basta equilibrar o peso. E impedir absolutamente, em todos os casos, a discussão da culpa nas varas de família, é apenas inverter o peso da balança, e não equilibrá-lo.
No afã de resolver um problema, estaria se criando outro. O direito é para todos e não somente para uma maioria. É bem verdade que a maioria dos casais discute culpa sem necessidade, quando bastaria um simples pedido de divórcio, para que cada um pudesse seguir sua vida. Mas e os casos extremos? E quanto ao marido que trai a esposa e acaba lhe transmitindo HIV? E quanto à esposa que trai o marido e lhe esconde por anos que ficou grávida de outro homem e o filho não é seu? E o marido que espanca a esposa? E a mulher que difama o marido, causando danos à sua honra perante todo o seu círculo social? E tantos outros casos excepcionais?
Parece que a balança estará equilibrada ao se admitir, como nos dizeres do professor Flávio Tartuce, “um modelo dualista, com e sem culpa”. [1]
Aliás, ao se analisar nosso sistema constitucional, conclui-se que esse entendimento se enquadra perfeitamente. O artigo 5º, XXXV da Constituição Federal dispõe que “a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Além disso, deve ser considerado o princípio da dignidade da pessoa humana. Como fica a dignidade daquele que foi lesado pelo ex-cônjuge? Nesse ponto, é relevante mencionar um trecho do artigo de autoria de Regina Beatriz:
“Com olhar voltado para a proteção da dignidade humana, que é princípio constitucional (artigo 1º, III), só é possível entender como bem-vinda a facilitação do divórcio, no que concerne à eliminação de requisitos para seu requerimento, se ao divórcio forem aplicadas as duas espécies: com e sem culpa”.[2]
c) Os fundamentos para que a culpa seja discutida na ação de divórcio
Neste momento da leitura, muitos irão exclamar: Mas não haverá prejuízo para os ex-cônjuges. Eles podem discutir eventuais danos causados em ação indenizatória autônoma, com fulcro nos artigos 186 e 187 do Código Civil, que tratam da responsabilidade civil por ato ilícito!
Sim, é verdade. Essa é uma saída e é o que a maior parte da doutrina defende, pelo menos no momento em que este artigo é redigido.
Contudo, entendo não ser esta a melhor solução. E há três razões para isso.
Primeiramente, porque a vara cível não é a que detém a melhor competência para julgar tais casos. Por dois motivos. Os juízes das varas de família são especializados e acostumados com as peculiaridades dos casos concretos de família, que envolvem o afeto. Não é a discussão da multa contratual, mas sim a discussão da traição, do desrespeito, da falta de assistência. Ora, se não fosse relevante essa distinção, por qual motivo teríamos a divisão em varas especializadas? Além disso, as ações de divórcio tramitam pela vara de família em segredo de justiça, por força do artigo 155, II do Código de Processo Civil. O mesmo não ocorreria em ação indenizatória tramitando em vara cível. E, convenhamos, todos gostariam de manter suas discussões mais íntimas em segredo de justiça.
Em segundo lugar, embora a regra geral da responsabilidade civil seja capaz de resolver parte dos problemas das relações de família que causam danos entre os cônjuges, esta é incompleta. O artigo 1.566 do Código Civil traz deveres dos cônjuges. Faz sentido a responsabilidade civil dos cônjuges se pautar tão somente nos artigos 186 e 187 do Código Civil, quando há previsão expressa de deveres específicos deles? Quer dizer que não há qualquer consequência se tais deveres forem violados? Ademais, há ainda a regra contida no artigo 1.694, parágrafo 2º, a qual continua em vigor, e estabelece que os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar da culpa de quem os pleiteia. E que continue em vigor. Pois é muito difícil concordar que seja justo, por exemplo, uma mulher que foi espancada e humilhada por seu marido, ainda ter que lhe prestar alimentos integrais, inclusive os necessários para lhe manter as condições sociais de quando era casado. Portanto, a culpa é relevante não só para uma eventual indenização por danos, como também para eventual pleito de alimentos, quando o alimentando for culpado.
Por fim, há que se considerar o princípio da economia processual. Não basta que a norma traga avanços de direito material, se trouxer retrocesso no direito processual. O direito processual moderno é pautado em economia processual, efetividade e ausência de formalismo. Por que duas ações? Para que dois pagamentos de custas, dois pagamentos de honorários, dois processos a mais para afogar o Judiciário? Não estaria mais de acordo com a tendência moderna do nosso processo civil, uma ação de divórcio com decretação de culpa cumulada com pedido de indenização por danos?
d) A decretação do divórcio em antecipação de tutela na ação de divórcio com culpa
Quanto à questão da demora para que os cônjuges obtenham o divórcio, é sabido que o nosso ordenamento jurídico processual dispõe de meios para resolver esse problema.
Seria interessante, no entanto, que o nosso direito processual tivesse regras específicas para as causas de família. Assim, uma solução seria o procedimento especial do divórcio. De forma parecida como ocorre nas ações possessórias, em que há deferimento de liminar sem necessidade de comprovar o “periculum in mora” ou fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, poderia existir um procedimento especial em que o divórcio seria decretado de forma liminar sem a necessidade de provas destes requisitos, nos casos em que houvesse o pedido de uma das partes no sentido de se discutir a culpa. Até mesmo a partilha de bens poderia ocorrer antes, caso ambos os cônjuges assim concordassem.
Enquanto não há esta solução, a parte pode se valer do pedido de antecipação de tutela, com base no artigo 273 do Código de Processo Civil. O dano irreparável ou de difícil reparação é o direito de se casar novamente, o qual não pode ficar aguardando a sentença final. E assim o processo poderia continuar para discutir a culpa.
6. Conclusão
Conclui-se que a Emenda Constitucional 66/2010 trouxe importante avanço em nosso sistema, mas a ausência de legislação infraconstitucional mais detalhada ainda deixa lacunas.
A interpretação de que a separação judicial não existe mais parece ser a mais correta, com a ressalva de que sempre será possível a separação de fato.
A discussão da culpa não é mais requisito para a dissolução do casamento. O divórcio, que não precisa ser mais dividido em direto e por conversão, pode ser requerido a qualquer tempo, sem necessidade de comprovar a insuportabilidade da vida em comum.
Contudo, a melhor interpretação é de que existe um sistema dual, no qual é possível o divórcio com e sem culpa. Nos casos de discussão da culpa, há a possibilidade da tutela antecipada para decretação do divórcio, do pleito de danos morais e patrimoniais nos mesmos autos, bem como a decretação da culpa de um dos cônjuges, o que será relevante em eventual pleito de alimentos, em que o cônjuge culpado somente terá direito aos alimentos naturais.
Referências
[1] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Direito de Família, p. 210. São Paulo: Método, 2010.
[2] SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Nova Lei do Divórcio não protege a família. Disponível em: http://www.reginabeatriz.com.br/academico/multimidia/multimidia.aspx?id=222. Acesso em 01 de novembro de 2010.
Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Site: www.alexravache.net.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAVACHE, Alex Quaresma. Divórcio, separação e culpa após a Emenda Constitucional 66/2010 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2010, 07:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22072/divorcio-separacao-e-culpa-apos-a-emenda-constitucional-66-2010. Acesso em: 23 dez 2024.
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