Em 2009 o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou nos informativos 541 e 548 duas decisões que merecem destaques: o RHC 94.775/RJ[1] e o HC 97.104/SP[2]. Ambos julgados reportam ao enquadramento jurídico dos crimes de latrocínio ou homicídio, tentados ou consumados, com vistas, a propósito, para consolidada jurisprudência da Corte nas expressivas súmulas 603[3] e 610[4], aprovadas em sessão plenária de 17/10/1984.
No julgamento do RHC 94.775/RJ chama a atenção para duas premissas de inadmissão do latrocínio tentado, artigo 157, § 3º, segunda figura, do Código Penal (CP). A primeira classifica a circunstância morte uma causa de aumento de pena – cremos que no sentido lato; a segunda, o latrocínio não é tipo autônomo, em função da premissa anterior. Noutra margem, o HC 97.104/SP desclassificou o crime de latrocínio para tentativa de homicídio qualificado em concurso material com constrangimento ilegal sustentando o rompimento da unidade fática entre a subtração mediante violência ou grave ameaça (roubo) e a ação voltada para a morte da vítima. Com efeito, na espécie, a Corte Suprema preservou a competência do Tribunal do Júri para julgar a tentativa de homicídio.
Pois bem, os precedentes do STF que sustentam os verbetes de súmulas citadas, aliados a estas duas decisões, nos conduz à reflexão sobre a unidade fática entre o homicídio e o roubo, consumados ou tentados, fluindo para o vertedouro processual: a competência, que será outro objeto de estudo. De toda sorte, importa esclarecer que tais enunciados são anteriores à reforma do Código Penal – Lei 7.209, de 13/07/1984, reforma essa que permitiu a doutrina e jurisprudência enveredar pela teoria finalista da ação de Hans Welzel e abandonar o sistema causal-naturalista de Liszt e Beling. A par da mudança dogmática, inafastável olhar crítico à aplicação das súmulas 603 e 610 do STF.
Modalidade culposa do crime de latrocínio
O crime culposo traz em sua tipicidade o elemento normativo culpa, do qual a vontade final é lícita, mas perpassa pelo descumprimento de dever de cuidado objetivo. Em relação à culpa, o artigo 18, parágrafo único[5], e o artigo 19[6], ambos do CP, expurgam a responsabilidade penal objetiva, porquanto a regra geral para a técnica legislativa é de deixar evidenciada a expressão modalidade culposa, quando assim pretende incriminar, independente se tipo principal ou resultado agravador.
Igualmente não olvidamos premissa dogmática consolidada: o crime qualificado pelo resultado é gênero do qual o delito preterdoloso é espécie. Por sua vez, o crime preterdoloso consiste na presença de intenção dolosa na conduta antecedente e culposa na consequente. Ausente o dolo na morte da vítima, dentro do contexto fático da subtração mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa, com respeito à divergência, mas também à técnica, enquadramos no roubo, tentado ou consumado, e homicídio culposo, ambos em concurso de crimes, formal ou material. É dizer, embora possível a presença de preterdolo extraído das circunstâncias fáticas, o artigo 157, § 3º, segunda figura, do CP não previu a modalidade culposa para o resultado morte, em virtude dos artigos 18 e 19 do CP. Nessa esteira, a técnica adotada pela comissão reformadora da Parte Geral do Código Penal de Francisco Assis Toledo inviabilizou a existência de latrocínio culposo[7].
Latrocínio: crime complexo e material
Não obstante, diferenciar causa especial de aumento de pena e crime qualificado pelo resultado é relevante para determinar a autonomia ou não do crime de latrocínio. Naquela, a lei penal incriminadora estabelece um fator, fração ou inteiro, para que, na terceira fase da dosimetria da pena, o juiz possa exasperar a reprimenda. Trata-se então de um tipo de extensão, não tem existência própria, como é o caso do roubo circunstanciado, porquanto a causa de aumento de pena não atribuiu autonomia ao tipo penal. Noutra esteira, o crime qualificado pelo resultado exige fato agravador que o legislador valora em abstrato, na construção do sistema penal, para cominar-lhe uma nova pena, mensurando seus limites mínimo e máximo. De igual modo, o efeito direto dessa técnica legislativa está na dosimetria da pena. O juiz examina as circunstâncias judiciais sem elaborar juízo de valor sobre o resultado qualificador em si mesmo, em virtude de a pena mínima cominada abstratamente tê-lo feito, sob efeito de incorrer em bis in idem.
Hoje, o latrocínio comina uma pena mínima e máxima específicas mais intensas do que os roubos simples e circunstanciado, enquadrando-se destarte nos crimes qualificados pelo resultado, trazendo consigo todos os elementos do tipo simples. Com efeito, a ciência penal indica insofismável a autonomia do latrocínio.
Outra classificação tipológica relevante está no conceito de crime complexo, aquele que resulta de uma unidade de dois ou mais tipos penais. Nesse viés, a priori, o crime de latrocínio, composto por todas as figuras típicas do roubo simples somadas ao homicídio, frise-se, configura crime complexo. Resta-nos saber, para construção de uma ciência criminal, se todos os crimes complexos admitem ou não tentativa. Contudo, uma vez crime complexo, o latrocínio pode ser classificado como crime material ou formal? Paulo Queiroz[8] conceitua crime material como aquele em que o tipo penal descreve um comportamento cuja consumação – entendida como completa realização dos elementos do tipo – somente ocorre com a produção do resultado nele previsto. Para os crimes formais o autor ensina que pouco importa o resultado – ressalva-se, naturalístico –, pois será apenas exaurimento já que a consumação advém da exteriorização de um comportamento. Nesse aspecto, entendemos que dependerá da modalidade típica: se dolosa para o resultado agravador, crime material; se culposa (preterdoloso), crime formal, considerada a análise crítica anterior.
Tentativa e os crimes complexos
No tocante à tentativa, é conhecida a diversidade de teorias: subjetiva, objetiva formal e material e objetiva individual, mas realçamos inteligência de Juarez Cirino dos Santos quanto à corrente majoritária: A teoria “objetiva formal” define tentativa pelo início de execução da “ação do tipo”: ações anteriores são preparatórias; ações posteriores são executivas[9]. O douto professor então alerta que a teoria mencionada exclui o exame do dolo para caracterizar a tentativa, consistindo em problema para aferir o conteúdo da vontade nas ações exteriorizadas pelo autor, distanciando-se da teoria finalista da ação. Exemplifica a crítica doutrinária a comparação entre os crimes de lesão corporal consumada e tentativa de homicídio.
A lição de Juarez Cirino dos Santos se acentua nos crimes complexos. Essa compreensão crítica revela a imprescindível tarefa de extrair a conduta principal do delito, pois uma vez iniciada sua execução, não podemos extratificar e desprezar o conteúdo da vontade dirigida ao resultado finalístico previsto no tipo penal, sobretudo nas hipóteses de tentativa. Caso contrário trilharíamos a teoria causal-naturalista da ação, na qual não importa a vontade, mas a realização de um ou outro resultado dentre as figuras possíveis nos crimes complexos.
Analisamos as seguintes hipóteses: (1) a vítima saca dinheiro do caixa eletrônico, em seguida o autor o subtrai, mas decide matá-la para evitar sua posterior identificação; (2) o autor rende suas vítimas para roubar-lhes e identifica entre elas um inimigo seu, ceifando-lhe a vida; antes de deixar o local é surpreendido por policiais, que impedem a consumação da subtração; e (3) diversos autores, para roubar um carro forte, mediante emprego de armas de fogo, disparam contra o veículo, matam o motorista, porém a subtração é impedida pelos batedores do carro forte.
As hipóteses evidenciam presença de vontade (dolo) para os eventos mortes das vítimas. Entendemos que na hipótese (1) o resultado morte não apresentou meio necessário para a subtração (roubo), ao contrário, o autor manifestou vontades finalísticas autônomas para condutas distintas e independentes ainda que no mesmo contexto fático. Divisamos que na hipótese (2) também não há unidade fática, muito menos de desígnios, embora sob o mesmo contexto entre o roubo tentado e o homicídio. Logo, as hipóteses (1) e (2) são tipificadas como homicídio qualificado em concurso material com o crime de roubo circunstanciado.
A última hipótese exige maior reflexão. A intenção de matar em desfavor do motorista do carro forte está presente, no entanto, não era o resultado final. O crime de homicídio doloso consumado foi meio para a consecução do crime de roubo, o qual, por circunstâncias alheias às vontades dos autores, não consumou. A propósito, temos aqui um crime complexo e qualificado pelo resultado (dolo no antecedente e consequente), cujos desígnios (subtração e morte) não são autônomos, portanto, presente a relação de meio e fim.
Não obstante, permanece indagações controvertidas: no crime complexo, qualificado pelo resultado doloso, é possível a antecipação da consumação somente com a evidência do resultado agravador doloso? Será admissível a tentativa? O enunciado 610 do STF não admite tentativa nessa hipótese, asseverando que o resultado agravador é o suficiente para configurar o crime consumado. Dissentimos porque o verbete distancia-se da teoria finalista da ação incorporada tanto pelo Código Penal como a Constituição Federal (artigo 5º, inciso LVII).
Vale ressaltar, a uniformização jurisprudencial da Suprema Corte criou outra incompatibilidade do latrocínio tentado ou consumado: implicitamente enunciou que o crime-meio tornou-se fim (por ficção) e o crime-fim, mero exaurimento. A edição do enunciado não investiga se houve dolo ou culpa no evento morte em virtude da teoria do tipo penal dominante de então, a revelar a opção por uma política criminal repressora. Destacamos trecho do voto do Ministro Cunha Peixoto no HC 56.704-5/SP[10]: o latrocínio é mais rigorosamente apenado do que os demais crimes exatamente para proteger a pessoa humana contra os assaltantes à mão armada que diuturnamente causam vítimas em todo o território nacional.
Em contraposição, imprescindível anotar que o Superior Tribunal de Justiça manifesta possível a tentativa de latrocínio, desde que aferido o animus necandi[11], além de admitir a modalidade tentada[12], se a subtração não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do autor, conclusão semelhante a de Magalhães Noronha[13], escólio do qual nos filiamos.
Conclusão
O Plenário da Suprema Corte debateu, quando da edição da súmula vinculante n. 24[14], de 02/12/2009, sobre sua admissão em matéria penal. A Corte assentou que não seria possível a edição de verbete, sobretudo vinculante, para tipificar condutas no âmbito do direito penal, sob efeito de ofensa ao princípio constitucional da reserva legal estrita. Não obstante, a súmula vinculante mencionada foi aprovada porque o seu enunciado não dizia o que era típico, mas o que não era, anotaram os demais Ministros da Corte, motivo pelo qual acreditamos que o enunciado da súmula 610 do STF esteja superado porquanto deduz enunciado apriorístico em matéria penal sem considerar as nuances de cada caso concreto, para firmar a tipicidade do crime de latrocínio consumado.
Nesse mesmo compasso, é latente a incompatibilidade entre as próprias súmulas persuasivas 603 e 610 do Supremo Tribunal, ambas alinhadas à teoria causal-naturalista da ação. A primeira pretere o animus necandi para afastar da competência do tribunal do júri, partindo de uma interpretação não do fundamento de validade constitucional, mas do Código Penal para a Constituição Federal no tocante ao significado de “crimes dolosos contra a vida”, adotando ao que parece a teoria finalista da ação; a segunda, excluiu aparentemente a possibilidade de dolo no resultado morte no latrocínio para não admitir sua tentativa, mas olvidou a reserva legal quanto ao elemento normativo culposo, em ofensa clara ao artigo 19 do Código Penal, alinhando-se à teoria causal-natural da ação.
De lege ferenda, entendemos pertinente e imprescindível alteração do Código Penal para que o legislador infraconstitucional possa adequar as penas entre homicídio, lesão corporal grave e latrocínio, e expresse adequadamente a natureza do latrocínio, se culposo ou doloso, para admitir o tipo de extensão do artigo 14, inciso II, do Código Penal, em respeito às garantias constitucionais fundamentais.
[1] Rel. Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 7/4/2009.
[2] Rel. Ministro Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 26/5/2009.
[3] A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri.
[4] Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não se realize o agente a subtração de bens da vítima.
[5] Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
[6] Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.
[7] “De ver-se, entretanto, que certas circunstâncias agravantes genéricas e qualificadoras precisam ser alcançadas pelo dolo, sendo inaplicável, por isso, o art. 19 do Código Penal” (JESUS, Damásio E. de. Código penal anotado. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 84).
[8] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 153
[9] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lúmen Júris, 2006, p. 379
[10] DJ de 23/3/1979, RTJ 95/94.
[11] HC 80.436/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 15/12/2009, DJe 08/02/2010.
[12] HC 133.289/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 15/12/2009, DJe 22/02/2010.
[13] NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1980, v. 2, p. 225
[14] Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
Advogado da União. Ex-Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Wagmar Roberto. Peculiaridades dogmáticas do crime de Latrocínio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2010, 06:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22093/peculiaridades-dogmaticas-do-crime-de-latrocinio. Acesso em: 23 dez 2024.
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