A duplicata é um título de crédito casual, formal, circulável por meio de endosso e negociável. Conforme o artigo segundo da Lei de Duplicatas (Lei 5.474/1968), esse é único título de crédito no Brasil admitido para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador em contratos de compra e venda mercantil entre partes domiciliadas no território brasileiro, com prazo não inferior a 30 (trinta) dias. Conforme o artigo 20 do referido diploma, também podem ser emitidas duplicatas por empresas, individuais ou coletivas, fundações ou sociedades civis, que se dediquem à prestação de serviços.
Segundo Paulo Roberto Colombo Arnoldi, a função dos títulos de crédito é circular, e não “ficar parados” nas mãos do credor originário. Tanto é que no direito americano são conhecidos como negotiable instruments (instrumentos negociáveis). Ainda o mesmo autor refere que os títulos de crédito constituem, de uma certa forma, um capital, eis que pode o credor transformá-lo imediatamente em dinheiro para fazer frente às suas necessidades.[1]
As formas comumente utilizadas para a transformação imediata de títulos de crédito em capital de giro, em especial as duplicatas, são o desconto bancário e os contratos de factoring. Os descontos bancários são produtos oferecidos exclusivamente por instituições financeiras, e permitem o direito de regresso contra o cedente/sacador. Por sua vez, nos contratos de factoring, não há direito de regresso contra o cedente/sacador, salvo vício no título negociado. Ressalte-se que este tipo de negócio (sem direito de regresso) não se afigura interessante para as instituições financeiras, devido ao custo necessário para manter uma margem de segurança para o cessionário frente o lucro que gera, perante os outros negócios que possuem a possibilidade de gerir.[2]
Como já referido, duplicatas são títulos causais, ou seja, necessitam de lastro. O lastro é a “causa” do título, seu suporte fático. Na compra e venda mercantil, a entrega da mercadoria negociada, na prestação de serviços, a realização do serviço contratado.
A cobrança de duplicatas rege-se pelas mesmas regras dos títulos executivos extrajudiciais (artigo 15 da Lei de Duplicatas), desde que presentes algum dos seguintes requisitos:
(i) O aceite do sacado/devedor, que representa uma confissão da existência do lastro;
(ii) O protesto da cártula e documento comprobatório de lastro, não podendo o aceite ter sido negado pelos motivos elencados no artigo oitavo da Lei de Duplicatas.[3]
Ocorre o que se denomina de “duplicata fria”, quando é emitida uma suposta duplicata sem suporte fático, obviamente de forma ilegal. O objetivo do sacador normalmente é ceder o título a fim de se capitalizar, por isso a comum denominação cedente/sacador.
Algumas “empresas” quando não possuem mais crédito passam a emitir duplicatas frias e cedem-nas ou a instituições financeiras ou a empresas de factoring, tentando muitas vezes resgatá-las antes de seu vencimento, a fim de que o sacado/devedor que nesse caso não deve nada) não venha a descobrir a operação. Isso normalmente ocorre quando a sociedade empresária necessita de capital de giro com urgência (pagamento de empregados, de fornecedores, etc.), e não possui nem crédito, nem dinheiro em caixa.
São inúmeras as decisões do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul que relatam a prática de emissão de duplicatas frias, como se depreende das ementas colacionadas abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DUPLICATA FRIA. PROTESTO. CESSÃO DE CRÉDITO. DANO MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. 1. Deve ser decretada a revelia da denunciada à lide Gráfica Rossi na causa secundária, tendo em vista que esta, devidamente intimada, deixou de providenciar sua regularização processual, a teor do que estabelece o art. 13, inciso II, do CPC. Desta forma, ausente capacidade postulatória, deverá o processo prosseguir à revelia da denunciada, que deixou de atender a determinação judicial de regularizar sua representação. 2. A autora logrou comprovar os fatos articulados na exordial, no sentido de que foi indevidamente levada a protesto duplicata sem causa jurídica. 3. A ré é cessionária do direito de crédito, portanto, está legitimada a responder por todas as exceções pessoais oponíveis ao cedente, em razão do disposto no art. 294 do Código Civil. Ademais, esta inscreveu o nome do autor nos cadastros restritivos de crédito, respondendo solidariamente pela reparação do dano eventualmente ocasionado, consoante redação do art. 25, §1º, do CDC. 4. Comprovada a falha na prestação do serviço, devem ser responsabilizada a ré pelo indevido protesto de título. Conduta abusiva da demandada na qual assumiu o risco de causar lesão à postulante, mesmo os de ordem extrapatrimonial, daí ensejando o dever de indenizar. 5. No que tange à prova do dano moral, por se tratar de lesão imaterial, desnecessária a demonstração do prejuízo, na medida em que possui natureza compensatória, minimizando de forma indireta as conseqüências da conduta da ré, decorrendo aquele do próprio fato. Conduta ilícita da demandada que faz presumir os prejuízos alegados pela parte autora, é o denominado dano moral puro. 6. A postulante é pessoa jurídica, possuindo estabelecimento comercial. Portanto, o protesto gera prejuízos de monta, em especial, quanto ao nome comercial e imagem da empresa, na medida em que depende de crédito para manter suas atividades mercantis e viabilizar a realização de novos negócios. Aliado ao fato de que a preservação do nome junto aos clientes, como já referido, também é de suma importância. 7. O valor a ser arbitrado a título de indenização por dano imaterial deve levar em conta o princípio da proporcionalidade, bem como as condições da ofendida, a capacidade econômica do ofensor, além da reprovabilidade da conduta ilícita praticada. Por fim, há que se ter presente que o ressarcimento do dano não se transforme em ganho desmesurado, importando em enriquecimento ilícito. 8. Quantum indenizatório mantido em R$ 6.381,50, (seis mil, trezentos e oitenta e um reais e cinqüenta centavos), a fim de atender aos parâmetros precitados. Reconhecida a revelia da denunciada Rossi e, no mérito, negado provimento ao recurso. (Apelação Cível Nº 70029617768, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 14/04/2010)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DUPLICATA FRIA. AUSÊNCIA DE CAUSA SUBJACENTE. DANO MORAL CARACTERIZADO. 1. A emissão de duplicata sem causa jurídica acarreta à decretação da nulidade desta, pois se trata de título de crédito causal, que, necessariamente, deve corresponder à compra e venda mercantil ou à prestação dos serviços, o que não restou demonstrado nos autos. 2. A nulidade propugnada atinge a todos os participantes da cadeia cambiária e não somente aqueles envolvidos diretamente na relação fundamental e concomitantemente na cambiária. 3. Dano moral caracterizado no caso em exame, não necessitando de nenhum outro elemento probatório complementar, a autorizar a reparação almejada, porquanto teve a parte autora título indevidamente protestado no seu nome, em decorrência de duplicata emitida sem causa subjacente. 4. O protesto foi levado a efeito de forma inadequada, devendo a indenização ser equivalente à gravidade do prejuízo causado, levando em conta as condições do ofensor, da vítima e o bem jurídico lesado. Negado provimento ao apelo. (Apelação Cível Nº 70033864968, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 27/01/2010)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DUPLICATA FRIA. PROTESTO INDEVIDO. DANO MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO. Da prova pericial ¿ cerceamento de defesa ¿ descabimento 1. O Juiz é o destinatário das provas, cabendo a ele aferir sobre a necessidade ou não de sua produção, a teor do que estabelece o art. 130 do Código de Processo Civil, a fim de evitar a coleta de prova inútil ao deslinde do litígio. 2. Inexistindo manifestação adequada e oportuna quanto à decisão que determinou a produção de prova oral apenas e havendo, em audiência, a manifestação expressa das partes de que não havia mais provas a produzir, operaram-se os efeitos da preclusão quanto a decisão que declarou encerrada a instrução, o que afasta a alegação de cerceamento de defesa. 3. Ademais, a apelante não trouxe aos autos argumentos suficientes para demonstrar a imprescindibilidade da realização de perícia, ônus que lhe impunha e do qual não se desincumbiu, a teor do que estabelece o art. 330, II, do CPC. Mérito do recurso em exame 4. A emissão de duplicata sem causa jurídica para tanto acarreta à decretação da nulidade desta, pois este tipo de título de crédito deve sempre corresponder à compra e venda mercantil ou à prestação dos serviços, o que não restou demonstrado nos autos. 5. Dano moral caracterizado no caso em exame, não necessitando de nenhum outro elemento probatório complementar, a autorizar a reparação almejada, porquanto teve a parte autora título indevidamente protestado no seu nome, em decorrência de duplicata emitida sem causa subjacente. 6. O protesto foi levado a efeito de forma inadequada, devendo a indenização ser equivalente à gravidade do prejuízo causado, levando em conta as condições do ofensor, da vítima e o bem jurídico lesado. 7. O valor a ser arbitrado a título de indenização por dano imaterial deve levar em conta o princípio da proporcionalidade, bem como as condições do ofendido, a capacidade econômica do ofensor, além da reprovabilidade da conduta ilícita praticada. Por fim, há que se ter presente que o ressarcimento do dano não se transforme em ganho desmesurado, importando em enriquecimento ilícito. Quantum mantido. Negado provimento ao apelo. (Apelação Cível Nº 70032760555, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 16/12/2009)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DUPLICATA FRIA. PROTESTO INDEVIDO. DANO MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. AFASTADA A PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. Da preliminar de não conhecimento do recurso 1. A recorrente abordou no recurso questões de direito, demonstrando especificamente a sua inconformidade com a decisão, apontando os dispositivos legais que entendia aplicáveis ao caso em concreto, de sorte que há motivação recursal, nos termos do artigo 514, II, do Código de Processo Civil. Mérito do recurso em exame 2. A emissão de duplicata sem causa jurídica para tanto acarreta à decretação da nulidade desta, pois este tipo de título de crédito deve sempre corresponder à compra e venda mercantil ou à prestação dos serviços, o que não restou demonstrado nos autos. 3. Dano moral caracterizado no caso em exame, não necessitando de nenhum outro elemento probatório complementar, a autorizar a reparação almejada, porquanto teve a parte autora título indevidamente protestado no seu nome, em decorrência de duplicata emitida sem causa subjacente. 4. O protesto foi levado a efeito de forma inadequada, devendo a indenização ser equivalente à gravidade do prejuízo causado, levando em conta as condições do ofensor, da vítima e o bem jurídico lesado. 5. O valor a ser arbitrado a título de indenização por dano imaterial deve levar em conta o princípio da proporcionalidade, bem como as condições do ofendido, a capacidade econômica do ofensor, além da reprovabilidade da conduta ilícita praticada. Por fim, há que se ter presente que o ressarcimento do dano não se transforme em ganho desmesurado, importando em enriquecimento ilícito. Afastada a preliminar suscitada e dado parcial provimento ao recurso. (Apelação Cível Nº 70031946049, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 16/12/2009)
E ainda os seguintes acórdãos: 70031659097, 71002082709, 70031691975, 70032105082, 70031003874, 70027956903, 70030949143, e muitos outros.
O sacado que não é devedor e que possui um título protestado pode, conforme se depreende das decisões acima, buscar reparação cível contra o sacador e contra o apresentante do título a protesto. Há que se manter em vista que normalmente não é o sacador quem protesta a duplicata fria, ele a emite a fim de negociá-la com um terceiro, como já referido, instituição financeira ou factoring.
Em que pese as reiteradas alegações de ilegitimidade passiva por parte dos sacadores (alegando que não protestou o título, e, portanto não foi o causador do dano), e dos apresentantes (alegando que não emitiu o título, e que fora tão vítima quanto o sacado na operação),nos processos de indenizatórios que possuem como causa de pedir o protesto de duplicatas frias, as condenações costumam ser solidárias (do sacador e do apresentante).
Cumpre ressaltar que a negociação de duplicatas frias é um dos únicos casos em que há direito de regresso do factor contra o emitente/cedente do título.
Além das conseqüências mencionadas na esfera cível, é importante ressaltar que a emissão de duplicatas frias é crime tipificado no Código Penal em seu artigo 172, com pena prevista de dois a quatro anos de detenção e multa.
Pelo exposto nota-se que não é incomum a negociação de “duplicatas frias” no Brasil. Contudo, nota-se também que muitas vezes não seria de grande dificuldade se evitar a aplicação desse golpe por parte das instituições financeiras e factorings, através da verificação de existência do lastro do título, afinal, como se depreende da jurisprudência exposta, os sacadores não costumam tomar muitos cuidados para dissimilar a fraude.
Projeto de Lei n° 3.194, de 1997, da Câmara dos Deputados do Brasil
Este projeto de lei tem por objetivo inibir a emissão e o desconto de duplicatas “frias” por instituições financeiras, reputando como sua causa a inexigência de aceite por parte destas mesmas instituições.
Em que pese a justificação deste projeto de lei fale em desconto de duplicata e em instituição financeira, os artigos aplicam-se tanto às empresas de factoring quanto àquelas instituições. Este projeto de lei prevê em seu artigo 1º, inciso II, a necessidade de uma declaração por escrito (do endossante da duplicata ou do “comprador”), acerca da veracidade do título. O projeto de lei em comento, em seu artigo 2º sujeita as instituições financeiras e as factorings que operarem desconto de duplicata sem a observância do constante do seu artigo primeiro, a algumas penalidades, entre elas o pagamento de multa ao Banco Central.
Como o legislador não refere quem seria o “comprador” constante do artigo primeiro do projeto de lei, tomaremo-no por sacado/devedor da operação que originou o título. O conetivo “ou” utilizado no bojo do referido artigo, inviabiliza qualquer chance de sucesso do pretendido por este projeto de lei, eis que, se o sacador puder declarar por si a veracidade do título, como isto poderia vir a inibir a emissão de duplicatas “frias” (tendo-se em vista que foi ele mesmo quem emitiu o título)? Ademais, a declaração por parte do sacado/devedor chama-se aceite, e já está prevista em lei, sendo justamente a falta desta declaração que originou o presente projeto de lei.
Ainda, o artigo segundo refere que suas penas são aplicáveis às factorings e às instituições financeiras, quando alguma destas realizar desconto de duplicata sem a observância do contido no artigo primeiro deste projeto de lei. Ora, parece que o legislador olvidou-se de que é vedado às factorings realizar desconto de duplicatas, e não refere nenhuma das penalidades previstas como sendo incidente a alguma das modalidades de negócio que as empresas de fomento mercantil podem, de fato, realizar.
Além do já exposto, há que se ressaltar que o desconto de duplicatas sem a observância do aceite é comum, pois a negociação destes títulos hoje em dia, muitas vezes é feito apenas por meio eletrônico, não sendo o sacado/devedor, neste caso, nem mesmo notificado da existência da duplicata. A exigência de algum tipo de declaração por escrito da parte do sacado/devedor, a nosso ver, representaria um enorme retrocesso aos institutos em pauta neste projeto de lei.
[1] ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[2] DONINI, Antônio Carlos. Factoring: de acordo com o novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10.01.2002). Rio de Janeiro: Forense, 2002.
[3] O aceite referido no artigo sétimo da Lei de Duplicatas é questionado, pois a emissão e a negociação destes títulos, hoje em dia, muitas vezes é feita apenas por meio eletrônico.
Acadêmica de direito no IPA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Jenifer Rocha Moreira e. Duplicatas Frias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2010, 09:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22315/duplicatas-frias. Acesso em: 23 dez 2024.
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