Este artigo jurídico tem por escopo fazer um breve ensaio crítico acerca do artigo 80, § 1.º, inciso I, da Lei 9.430 de 27 de dezembro de 1996, que trata da suspensão do Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ das empresas inexistentes de fato (referido dispositivo encontra-se regulamentado pelo artigo 34, inciso III, da Instrução Normativa 748, da Receita Federal do Brasil). Trocando em miúdos, trata, portanto, de uma sanção a ser aplicada às ditas “laranjas”, expressão de conotação pejorativa utilizada para designar aquelas pessoas (naturais ou, no caso aqui tratado, jurídicas) constituídas com o único propósito de sonegar tributos. O mencionado dispositivo de lei tem a seguinte redação:
Art. 80. As pessoas jurídicas que, estando obrigadas, deixarem de apresentar declarações e demonstrativos por 5 (cinco) ou mais exercícios poderão ter sua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ baixada, nos termos e condições definidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, se, intimadas por edital, não regularizarem sua situação no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data da publicação da intimação. (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)
§ 1o Poderão ainda ter a inscrição no CNPJ baixada, nos termos e condições definidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, as pessoas jurídicas: (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)
I – que não existam de fato; ou (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)
Ocorre que a Receita Federal do Brasil, enquanto órgão da Administração Pública Federal que (também) instaura procedimentos administrativos fiscais para a apuração de evasão fiscal, foi investida do poder de suspender o CNPJ das empresas que supostamente sonegaram tributos.
É no mínimo inquietante que o dispositivo de lei aqui tratado e este proceder da RFB ainda não tenham sido objeto de controvérsia nos tribunais, dado seu conteúdo flagrantemente inconstitucional. Não se trata aqui de defender a prática de infrações penais (crimes contra a ordem tributária) e tributárias (sonegação fiscal), mas sim de procurar afastar práticas truculentas (polizeistaat) que não se afeiçoam ao Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1.º).
Assim, é preciso que sobre o artigo de lei sejam jogadas as luzes da Constituição da República Federativa do Brasil, interpretando-se a lei de acordo com a Constituição e não o contrário, evitando assim o que STRECK chama “fascínio pelo direito infraconstitucional”, o que é “fruto da resistência do paradigma positivista -, a ponto de ocorrer, em determinados casos, uma adaptação da Constituição às leis ordinárias... Enfim, continuamos a olhar o novo com os olhos do velho”.
Nesse sentido, o artigo 80 da Lei 9430/96 encontra-se em rota de colisão, precisamente, com o art. 5.º, inciso XIX, da Constituição Federal, que reza:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
Um leitor desatento do texto constitucional, ou mesmo um partidário do positivismo-dedutivista, poderia concluir que este dispositivo se limitaria às associações stricto sensu, tal como concebidas pelo Direito Civil no art. 44, inciso I, do Código Civil Brasileiro.
No entanto, é cediço que a “interpretação literal, é a mais pedestre das interpretações” (cf. TEMER apud MELLO – STF MS 27931 MC/DF - DJe-062 DIVULG 31/03/2009 PUBLIC 01/04/2009 RTJ VOL-00210-03 PP-01249).
Portanto, uma leitura mais acurada do texto constitucional levará à conclusão de que tal dispositivo constitucional refere-se tanto às associações quanto às sociedades empresárias.
A bem da verdade, o ser humano é gregário por excelência, e as pessoas jurídicas nada mais são do que o agrupamento de pessoas naturais, que voltadas para fins lícitos e de acordo com as condições legais, formam uma “associação”, seja ela uma associação em sentido estrito, uma sociedade ou uma fundação, e nesse sentido, prelecionam GAGLIANO e PAMPLONA, afirmando que o “Estado, as associações, as sociedades, existem como grupos constituídos para a realização de determinados fins”.
No ponto, é preciso registrar que os pressupostos existenciais das pessoas jurídicas como um todo são os mesmos, quais sejam: i) a vontade humana criadora; ii) a observância das condições legais para sua instituição; iii) a licitude de seus objetivos (cf. GAGLIANO e PAMPLONA).
É de fácil percepção, portanto, que conquanto se distingam no que tange ao elemento teleológico, ontologicamente não há distinção entre as pessoas jurídicas, sejam elas associações, sociedades ou fundações.
Em outras palavras, o texto constitucional, ao se referir a “associações”, utilizou a expressão como gênero-sinônimo de pessoa jurídica, do qual são espécies as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, todas previstas no plano infraconstitucional. Nesse sentido, preleciona BRANCO:
O termo associação no texto constitucional tem sentido amplo, nele se incluindo as modalidades diversas de pessoas jurídicas conhecidas no direito civil, bem como outros grupamentos desvestidos de personalidade jurídica. Pontes de Miranda adverte que não está em causa a personalidade do ente, para que seja definido como associação. ‘No sentido do texto brasileiro – diz o jurista -, associação é toda coligação voluntária de algumas ou de muitas pessoas físicas, por tempo longo, com o intuito de alcançar algum fim (lícito), sob direção unificante.
Vale frisar as palavras do eminente Procurador-Regional da República e doutor pela Universidade de Brasília – UNB: a expressão “associação”, empregada pela Constituição, tem sentido amplo, incluindo-se as diversas modalidades de pessoas jurídicas conhecidas no direito civil. Necessário, portanto, recorrer ao Código Civil Brasileiro, o qual elenca as seguintes pessoas jurídicas de direito privado:
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
III - as fundações.
IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
V - os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
§ 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
§ 2o As disposições concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente às sociedades que são objeto do Livro II da Parte Especial deste Código.”
É justamente sob a forma de sociedade que se constituem as empresas alvo da suspensão levada a efeito pela Receita Federal do Brasil, de tal sorte que cabe apenas e tão somente ao Poder Judiciário suspender o CNPJ, eis que aqui temos uma reserva de jurisdição, ou tomando por empréstimo expressão utilizada por SAMPAIO, temos um “espaço vazio” de atuação da Administração.
A interpretação sistemática do texto constitucional reforça esta linha de raciocínio (já que, como cediço, a Constituição não se interpreta em tiras, como por diversas vezes ressaltado por todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal), bastando deitar os olhos sobre o parágrafo único do art. 170 da CF/88, que preconiza “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Resta cristalino, portanto, que se a Constituição assegura liberdade para o exercício de qualquer atividade econômica, ressalvados os casos previstos em lei, razão pela qual estamos diante de um direito fundamental (é cediço na jurisprudência do Pretório Excelso, que o catálogo de direitos fundamentais não se restringe ao art. 5º, se espraiando por todo o texto constitucional). Como direito fundamental que é, este somente pode ser restringido se houver autorização constitucional para tanto (princípio da concordância prática), a qual se encontra, precisamente, no inciso XIX, do art. 5º da CF/88, única hipótese em que se pode suspender as atividades de uma associação (ou sociedade empresária, conforme aqui exposto).
Desse modo, o elastecimento do dispositivo constitucional acima citado, para que se aplique não só às associações em sentido estrito, mas também às sociedades empresárias, excluindo-se, por isso mesmo, a possibilidade de suspensão do CNPJ administrativamente (medida de todo arbitrária), é solução hermenêutica que se coaduna com a normatividade da Constituição, pelo que podemos concluir, juntamente com HESSE, que
A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.
A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.
Sendo assim, e sob a ótica da força normativa da constituição, necessário se faz que os legitimados (art. 103 da CRFB) provoquem a jurisdição constitucional, para que seja declarada a inconstitucionalidade material do art. 80, § 1º, inciso I, da Lei 9.430/96, e, por arrastamento, do art. 34, inciso III, da IN 748 da RFB, por afronta à cláusula de reserva de jurisdição prevista no art. 5º, inciso XIX, da CF/88.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm> acesso em 02 de dez. 2010.
______ Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2005. 422p.
______ Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Disponível em <http://www.planalto.gov.br> acesso em 02 de dez. 2010.
_______ Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n.º 748, de 28 de junho de 2007. Disponível em <http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/ins/2007/in7482007.htm> acesso em 02 de dez. 2010.
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, v. 1, 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição (trad. Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
STRECK, Lenio. A revolução copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa) compreensão do fenômeno no Brasil – uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica. Disponível em <http://www.trf4.jus.br/trf4/upload/arquivos/emagis_atividades/lenioluizstreck.pdf> acesso em 02 de dez. 2010.
Graduado em Direito Pelo Centro Universitário Vila Velha - UVV, pós-graduado em Direito Processual Civil pelas Faculdades de Direito de Vitória - FDV, advogado no estado do Espírito Santo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIRIO, Danilo Raposo. A inconstitucionalidade material do art. 80, § 1.º, inciso i, da Lei 9.430/96 - suspensão das atividades da sociedade empresária e cláusula constitucional de reserva de jurisdição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2010, 08:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22370/a-inconstitucionalidade-material-do-art-80-1-o-inciso-i-da-lei-9-430-96-suspensao-das-atividades-da-sociedade-empresaria-e-clausula-constitucional-de-reserva-de-jurisdicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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