Sumário: Introdução – 1 Problemática da prisão e o sursis– 2 Conceito do sursis– 3 Natureza jurídica do instituto – 4 Escorço histórico do instituto – 5 Sistemas – 6 O sursis no Brasil: origem histórica – 7 Decreto nº 16.588, de 6 de setembro de 1924 - 8 Conclusões – Referências.
INTRODUÇÃO
O tema sob análise é o instituto da suspensão condicional da pena. Primeiramente, será abordada a questão da prisão e a sua inaptidão para ressocializar os criminosos, sobretudo os condenados primários às penas privativas de liberdade de curta duração. Em seguida, serão expostos o conceito, a natureza jurídica, o escorço histórico e os sistemas do sursis.
Por fim, haverá a abordagem acerca do instituto no Brasil, não apenas o seu histórico, como também alguns aspectos do tratamento que lhe foi dado por meio do primeiro diploma que tratou da matéria, a saber: o Decreto nº 16.588 de 1924.
1- A PROBLEMÁTICA DA PRISÃO E O SURSIS
Importa destacar que a prisão é sempre um tema incômodo para os estudiosos do Direito Penal. Por um lado, muitos afirmam ser ela imprescindível para a boa ordem social, por outro, alegam que a mesma se encontra em crise, em razão de uma série de inconvenientes já por todos sabidos.
Segundo Von Ihering, “a história da pena é a história de sua constante abolição”. Todavia, a história da pena de prisão não parece estar associada à sua progressiva abolição, mas sim à sua reforma, calcada na humanização da repressão.
Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”, dedicou um de seus capítulos para o tratamento da “mitigação das penas” e preleciona que os reformistas do século XVIII proferiram diversas críticas à pena de prisão, a exemplo de ser inútil e até nociva à sociedade. Outrossim, ela é cara, mantém os condenados na ociosidade e multiplica-lhes os vícios. Outra desvantagem da reclusão apontada por seus críticos consiste na sua escuridão, assunto de desconfiança para os cidadãos, dado que supõem serem nela cometidas grandes injustiças.[1]
No entanto, “a detenção se tornou a forma essencial de castigo”.[2] Foucault aponta que, no Código Penal francês de 1810, a prisão ocupa “quase todo o campo das punições possíveis”. [3]
Note-se que a substituição das diversas penas em prisão não foi privilégio da França. Foucault aduz que essa mudança também ocorreu, da mesma forma, nos países estrangeiros.
Cabe enaltecer a obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonesana, mais conhecido como o Marquês de Beccaria, tendo em vista a sua contribuição para o processo de humanização das penas. Referida obra influenciou diversas legislações estrangeiras, no sentido de as penas serem específicas e variadas, dependendo não da simples vontade do legislador, mas da natureza das coisas.
Tal livro foi escrito há mais de dois séculos, mas “nele já se proclamavam e defendiam os direitos do homem”.[4]
Beccaria apresentou alguns postulados em relação às penas. Dentre eles, há a menção do contrato social, afirmando que os cidadãos, por viverem em sociedade, cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Em razão disso, não se deveriam aplicar penas que atingissem direitos não cedidos, como ocorria nos casos da pena de morte e das sanções cruéis.
Outrossim, Beccaria questionou as penas de confisco e as infamantes, bem como indicou uma finalidade reformadora para as penas.
Houve outros pensadores de grande importância na reestruturação das prisões, destacando-se John Howard e Jeremy Bentham.
As ideias de Howard contribuíram para o advento de uma linha de intelecção que almeja a criação de estabelecimentos adequados à pena privativa de liberdade, conforme afirma Vladimir Brega Filho[5], em sua tese de doutorado:
As idéias de Howard expostas no livro e nas suas viagens, onde mantinha contato com reis governantes, influenciou a criação de uma corrente de pensamento que buscava criar estabelecimentos apropriados ao cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo como base o isolamento, o trabalho, a instrução.
Dentre as contribuições de Bentham, cumpre citar a sua idealização de um estabelecimento penitenciário com o nome de “panóptico”, no qual o diretor, situado no centro da construção e sem ser visto, poderia observar, ao mesmo tempo, todos os presidiários.
Foucault descreve o panóptico proposto por Bentham e identifica os prisioneiros como atores e as celas como pequenos teatros, conforme vejamos:
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas; cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível.
Além disso, Bentham preocupou-se com a organização do trabalho, a educação profissional, a instrução moral e a religiosa dos reclusos.
Incumbe informar que o Livro V das Ordenações Filipinas previu a pena de morte para inúmeras infrações. Já o Código Criminal de 1830 previu a pena de morte, mas sua aplicação foi reduzida para delitos de insurreição, homicídio agravado e latrocínio, sendo também suprimidas as penas corporais. A pena privativa de liberdade passou a ser a principal sanção.[6]
O Código Penal de 1890 aboliu a pena de morte e trouxe como sanção principal a pena privativa de liberdade, a qual possuía quatro modalidades: prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e a prisão disciplinar destinada aos menores de 21 anos.
Ademais, o Código Penal da República instituiu o limite para o cumprimento da pena privativa de liberdade, que não poderia exceder trinta anos, consoante se depreende do art. 41 do referido diploma.
Destarte, verifica-se que a prisão foi convertida no principal modelo de todo o sistema repressivo, considerada como a melhor solução para a repressão ao crime.
Todavia, o sistema penitenciário nunca foi capaz de readaptar o prisioneiro à vida em sociedade. Essa inaptidão para a recuperação dos criminosos fica mais manifesta quando se trata de condenados primários às penas privativas de liberdade de curta duração, já que acabam sendo influenciados por presos mais perigosos.
Diante da necessidade de se evitar esse problema, desde o último quartel do século XIX, os penalistas e legisladores têm se preocupado em descobrir medidas substitutivas para a prisão curta. Basileu Garcia[7] aduz que o sucedâneo da prisão que obteve maior simpatia dos doutrinadores e do próprio Direito objetivo foi a suspensão condicional da pena, também denominada condenação condicional, ou sursis, conforme a consagrada expressão francesa.
2 – CONCEITO DO SURSIS
Chrysolito de Gusmão[8] apresenta, em seu livro “Da Suspensão Condicional da Pena”[9], de 1926, uma ampla definição da suspensão condicional da pena, conforme vejamos:
§ 1. O substitutivo penal que se concretisa na condemnação condicional ou no sursis (condicional sobreestação da pena), é o instituto jurídico pelo qual, deante d’um crime qualquer ou de certas figuras delictuosas, tendo-se em vista as condições personalissimas do delinquente, em determinados casos e de accordo com condições legaes genéricas ou prefixas determinadamente, põe-se em pratica, por acto declaratório e ordenatório da autoridade jurisdiccional, a condicional renuncia, total ou parcial, por parte do Estado, do poder de punir, seja quanto ao poder declaratório da imputabilidade e responsabilidade penal, seja quanto ao seu jurídico conseqüente – a funcção estatal de imposição e execução das sancções penaes.
Aníbal Bruno define o sursis nos seguintes termos:
“Suspensão condicional da pena é o ato pelo qual o juiz, condenando o delinquente primário, não perigoso, a pena detentiva de curta duração, suspende a execução da mesma, ficando o sentenciado em liberdade sob determinadas condições”[10].
Não obstante a relevância de tais conceitos, pode-se também definir o sursis como a suspensão condicional da execução da pena privativa de liberdade, por meio da qual o réu se submete, durante o período de prova, à fiscalização e ao cumprimento de condições judicialmente estabelecidas.
3- NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO
No que tange à natureza jurídica do instituto sob apreço, há inúmeras posições doutrinárias, dentre as quais se destacam:[11]
a) Instituto de política criminal : trata-se de execução mitigada da pena privativa de liberdade. O condenado cumpre a sanção que lhe foi imposta, mas de forma menos gravosa. Para essa corrente, cuida-se de benefício (art. 77, II, do Código Penal de 1940) e, também, de modalidade de satisfação da pena. Neste sentido: Guilherme de Souza Nucci[12], Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Essa parece ser a melhor posição, no nosso entendimento.
b) Pena : seria uma espécie de pena, embora não prevista no Código Penal. Posiciona-se neste sentido José Mendes[13].
c) Direito público subjetivo do condenado: consubstancia-se em benefício penal assegurado ao réu. O juiz tem liberdade para analisar a presença dos requisitos legais, os quais, acaso presentes, impõem a concessão do sursis. Neste sentido: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Heleno Cláudio Fragoso e Delmanto.[14]
4- ESCORÇO HISTÓRICO DO INSTITUTO
Alguns autores, como Chrysolito de Gusmão[15] e Hugo Auler[16], consignam que o sursis possui afinidade com institutos aparentemente semelhantes que vigoraram no Direito Romano e no Direito Canonico, a exemplo da severa interlocutio. No direito romano, o pretor tinha a faculdade de substituir, nos crimes de incêndio provocados por negligência, a pena de fustigação pela severa interlocutio, que consistia numa admoestação.
Então, verifica-se que, na antiga Roma, já havia a preocupação de se substituir a pena corporal. No entanto, foi no século XIX que o instituto em apreço adquiriu contornos mais precisos e próximos da disciplina atual.
Os doutrinadores divergem no que se refere às fontes do instituto. Uns fazem-no remontar aos Estados Unidos da América do Norte, na metade do século XIX. Mas os norte-americanos adotaram a suspensão da sentença e não da execução da condenação, como se dá na nossa legislação.
O instituto, nos moldes do que possuímos, surgiu na França com o Projeto Bérenger, de 26 de maio de 1884, que foi origem do sistema continental europeu, ao qual nos filiamos.
A Bélgica transformou essa proposta em lei, em 31 de maio 1888, antecipando-se à França, que só veio a adotá-la em sua legislação no ano de 26 de março 1891. Dessa forma, o sistema passou a ser conhecido pelo nome de belgo-francês, franco-belga ou continental europeu.
5- SISTEMAS
Diante do exposto, verifica-se que há dois sistemas gerais acerca do instituto da suspensão condicional da pena, a saber, o anglo-americano e o europeu continental, também chamado belgo-francês ou franco-belga.
a)Sistema anglo-americano ou probation system.
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a prática nesse assunto iniciou-se no mecanismo das leis assistenciais dos menores infratores, estendendo-se, depois, ao Direito Penal comum, como medida de política criminal igualmente proveitosa para o criminoso adulto.
Segundo este sistema, “o magistrado, sem aplicar pena, reconhece a responsabilidade penal do réu, submetendo-lhe a um período de prova, no qual, em liberdade, deve ele comportar-se adequadamente. Se o acusado não agir de forma correta, o julgamento é retomado, com a conseqüente prolação de sentença condenatória e imposição de pena privativa de liberdade.”[17]
b) Sistema franco-belga.
Neste sistema, “o réu é processado normalmente, e, com a condenação, a ele é atribuída uma pena privativa de liberdade. O juiz, entretanto, levando em conta condições legalmente previstas, suspende a execução da pena por determinado período, dentro do qual o acusado deve revelar bom comportamento e atender as condições impostas, pois, caso contrário, deverá cumprir a sanção penal.”[18]
Este foi o sistema adotado na nossa legislação, segundo registram os penalistas. O Ministro João Luís Alves[19] esclareceu os motivos da opção pelo sistema francês:
Foi preferido o regime francês do sursis – suspensão da condenação, ao inglês da probation, suspensão do julgamento, por ser êste, na frase de douto tratadista, menos garantidor, quer em relação ao criminoso, quer em relação à sociedade; não tendo o efeito jurídico de determinar a reincidência, o que é inconveniente.
Insta mencionar que Basileu Garcia[20] e Whitaker[21] entendem o sistema belgo-francês mais vantajoso do que o anglo-americano, uma vez que naquele não se suspende o processo, mas sim a execução da pena, ou seja, há uma sentença condenatória antes da suspensão. Os autores ressalvam que pode acontecer de, durante o processo, ser constatada a inocência do imputado e, não sendo ele culpado, qualquer restrição à sua liberdade seria injusta.
Há doutrinadores que ainda citam outros sistemas, a exemplo do probation of first offenders act, segundo o qual o juiz determina a suspensão da ação penal, permitindo a liberdade do acusado, sem, contudo, declará-lo culpado. Durante a suspensão, o réu deve apresentar boa conduta, sob pena de ser reiniciada a ação penal. Esse sistema foi acolhido, no Brasil, no tocante à suspensão condicional do processo, disposta no art. 89 da Lei 9099/95.[22]
No entanto, o acima citado sistema refere-se à suspensão do processo, e não da pena.
Hugo Auler[23] e Luiz Regis Prado[24] apresentam o sistema alemão como o terceiro regime básico do sursis, segundo o qual se determinava que a pena fosse fixada pelo magistrado, mas afastava a condenação do acusado. O tipo alemão é uma variante dos tipos franco-belga e anglo-saxão porque manda que o juiz apure a autoria, determine a responsabilidade e fixe a pena correspondente, mas não profira a sentença.
6 - O SURSIS NO BRASIL: ORIGEM HISTÓRICA
Ressalte-se, primeiramente, que não houve previsão do instituto sob análise no Livro V das Ordenações Filipinas, no Código Criminal de 1830 e nem no Código Penal de 1890. Ele só surgiu na nossa legislação em 1924.
No Brasil, foi Esmeraldino Bandeira, deputado federal na legislatura de 1906-1908, quem primeiro demonstrou preocupação com o tema, dado que em 18 de julho de 1906 apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei concernente à suspensão condicional da pena. Segundo o próprio autor, não se tratava de ideia sua, mas simplesmente “da tradução do texto de lei Bérenger, também conhecida como lei do sursis” [25].
Em relação ao texto original, uma das modificações feitas por Bandeira foi a inclusão de um requisito de ordem moral para a concessão da suspensão da pena, que ordenava considerar os motivos determinantes e as circunstâncias do delito na avaliação do sursis. O benefício não seria concedido se tais circunstâncias ou motivos revelassem a perversidade ou corrupção do caráter do delinquente.[26]
Diante disso, percebe-se a adesão do autor do projeto à teoria positiva da responsabilidade penal, segundo a qual a ação humana é decomposta por fatores físico, biológico e social, tratada por Enrico Ferri, em sua obra Sociologia Criminale.
Assim, o projeto de 1906 admitia o sursis, considerando-se os seguintes requisitos : a)condenação a uma pena de multa, reclusão, prisão com trabalho ou prisão celular; b) não sendo a pena superior a cinco anos; c)sendo o condenado primário em crime comum; d) se as circunstâncias e móveis do delito não revelassem perversidade ou corrupção de caráter por parte do delinquente.
“Concedida a suspensão, esta duraria por cinco anos e, não sendo revogada neste período, considerava-se extinta a pena. Sendo, ao contrário, revogada a suspensão no período de prova, executar-se-ia a condenação, somada a uma eventual condenação por novo crime. A suspensão não isentaria o réu do pagamento de multa e do adimplemento das obrigações decorrentes do delito, e nem compreenderia as penas acessórias e incapacidades resultantes da condenação; tampouco impediria que se considerasse reincidente o réu em caso de condenação posterior.”[27]
No entanto, tal proposta não se transformou em lei.
Posteriormente, Galdino Siqueira ensaiou a adoção do instituto no art. 39 do seu Projeto de Código Penal Brasileiro, que foi dado em 1913 à publicação.
Decorridos dezesseis anos da apresentação do projeto de Esmeraldino Bandeira, o Congresso Nacional “estava hipertrofiado, não conseguia realizar todo o seu trabalho com a devida celeridade, e por este motivo, delegou alguns assuntos para o Poder Executivo”[28].
Assim, o Congresso Nacional, sob o governo de Epitácio Pessoa, elaborou e votou lei autorizando amplamente o Poder Executivo a promover a reforma de todo o sistema penitenciário, tornar efetivo o livramento condicional e criar a suspensão da condenação, por meio do Decreto nº 4.577, de 5 de setembro de 1922. Entretanto, nenhuma lei a esse respeito foi criada durante seu governo.
Epitácio Pessoa foi substituído por Arthur da Silva Bernardes, que escolheu para Ministro da Justiça o civilista João Luís Alves que, valendo-se da autorização legislativa, submeteu à aprovação do Presidente da República o projeto de lei que se transformou no Decreto nº 16.588, de 06 de setembro de 1924, o qual consagrou a adoção do instituto então denominado de “condemnação condicional”[29] em nossa legislação.
Chrysolito de Gusmão critica a demora de mais de dezoito anos para a introdução do instituto na legislação brasileira, aduzindo que não se pode justificá-la com a existência de uma longa e penosa elaboração legislativa, pois se o projeto de Esmeraldino Bandeira foi uma cópia da lei francesa, o Decreto que instituiu o sursis no Brasil é uma “transplantação, ligeiramente modificada”[30].
Cumpre mencionar que todas as normas desta nova legislação foram posteriormente codificadas no capítulo V do título XI do Decreto nº 16.751, de 31 de dezembro de 1924, que criou o Código de Processo Penal, bem como nos artigos 51 e 52 da Consolidação das Leis Penais, organizada pelo desembargador Vicente Piragibe e aprovada pelo Dec. nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932.
7 – Decreto nº 16.588, de 6 de setembro de 1924
O Decreto nº 16.588/1924 seguiu o sistema franco-belga. Isso pelo motivo de que tal diploma visava estabelecer e definir a responsabilidade penal do réu, mas, ao mesmo tempo, evitar a execução da pena imposta, quando determinadas condições atinentes ao indivíduo e à espécie do crime se apresentavam.
Comentando o Decreto sob análise, Whitaker[31] aduz que a lei quer evitar o contato dos réus primários e de bom caráter com outros mais perigosos. Segundo o autor, as prisões curtas são inconvenientes, porque não têm o tempo preciso para a correção dos criminosos e, entretanto, degradam, humilham e corrompem. Além disso, a vigilância judicial é mera advertência, pena moral, que pode provocar o arrependimento no criminoso. Por fim, o autor aponta como outro motivo do instituto a individualização do castigo.
Assim, segundo ensina Whitaker, o fundamento do instituto não é somente o interesse do delinquente em não ter sua liberdade suprimida, ainda que limitada, mas, sobretudo, o interesse da sociedade, que visa regenerar o criminoso.
Vale citar as finalidades do instituto sob análise, apontadas pelo então Ministro da Justiça, João Luiz Alves, na Exposição de Motivos do Decreto nº 16.588, de setembro de 1924:
1)Não inutilizar, desde logo, pelo cumprimento da pena, o criminoso primário, não corrompido e não perverso;
2) Evitar-lhe, com o contágio na prisão, as funestas e conhecidas conseqüências desse grave mal;
3)Diminuir o índice da reincidência, pelo receio de que se torne efetiva a primeira condenação.[32]
Cabe ressalvar que nem todas as infrações penais possuíam o privilégio da suspensão. Os delitos militares foram excluídos, tal como fizeram as legislações da Bélgica e da França. Argumentavam tal exclusão no sentido de que, além da falta de autorização legal para o instituto abranger as penas militares, o fundamento do contágio da prisão não podia ser invocado para os militares, pois as prisões realizavam-se em lugares onde habitualmente passavam a sua existência profissional (praças de guerra, quartéis, etc).
Ressalte-se que, atualmente, o instituto do sursis é aplicado para os delitos militares e possui previsão nos arts. 84 a 88 do Código Penal Militar.
Os requisitos exigidos pelo Decreto 16.588 para a suspensão ser decretada, consoante o estatuído no art. 1º, foram:
a) Condenação primária;
b) Pena de prisão ou multa conversível em prisão, até um ano;
c) Caráter não perverso ou corrompido do acusado.
No que se refere ao primeiro requisito, cumpre informar que a condenação anterior que impedia a suspensão é a que tinha como pena a prisão e a multa conversível. O decreto 16.588, em seu art. 1º dispõe “em caso de primeira condemnação ás penas de multa conversível em prisão ou de prisão de qualquer natureza”. Assim, a condenação anterior somente à interdição, suspensão ou perda de emprego não servia de obstáculo para a concessão do sursis.[33]
Já no que tange ao segundo requisito, vale salientar que o decreto se referia à pena que fora imposta, e não à pena abstrata. Outrossim, a prisão podia ser de qualquer natureza, já que a o decreto não apontava a sua espécie.
Quanto ao terceiro requisito, não é apenas da natureza do delito que se devia deduzir a existência da perversidade ou corrupção do acusado, mas sim do exame das condições da pessoa (idade, educação, meio em que vive, etc), das causas do delito e das circunstâncias que o cercaram, tal como versa o art. 1º do decreto.
Destaca-se que não havia suspensão da execução da pena nos crimes contra a honra e boa fama, nem contra a segurança da honra e honestidade das famílias, por expressa proibição do art. 5º do aludido decreto. Esses delitos eram os de injúria, calúnia, violência carnal, rapto, lenocínio e poligamia.
No tocante à oportunidade da concessão do benefício, podia ela se dar tanto no momento de ser proferida a sentença condenatória, como depois de ter ela passado em julgado, em razão de o art. 1º do decreto fazer menção expressa não apenas ao juiz, como também ao tribunal.
A jurisprudência da época entendia, pacificamente, que podia ser concedida a suspensão em qualquer tempo, até a final execução da pena, e não apenas na ocasião de ser proferida a sentença condenatória ou a apelação.[34]
O período de prova era de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, no caso de crime, e de 1 (um) a 2 (dois) anos, na hipótese de contravenção.
Por último, impende mencionar que o decreto prevê a revogação da suspensão. Chrysolito de Gusmão afirmava que havia duas hipóteses de “perecimento da condição resolutiva”, quais sejam, decadência e revogação do benefício legal, dispostas nos §§2º e 3º do art. 1º do Decreto regulador do instituto[35]. A decadência, segundo o autor, dava-se quando, após a concessão da suspensão e antes de se tornar inexistente a condenação, verificava-se a prática de uma anterior infração que deveria ter impedido a concessão do benefício. Já a revogação ocorria quando a prática da infração fosse posterior à data da concessão da suspensão.
Nota-se, então, que o decreto em testilha tratou apenas da revogação obrigatória, em razão de outra condenação, seja por fato anterior ou posterior à concessão da suspensão condicional da pena.
De acordo com o §3º do Decreto 16.588, já se entendia que, com a revogação do sursis, o condenado deveria cumprir integralmente a pena que se encontrava suspensa, bem como pela outra punição, de forma sucessiva. Ressalte-se que, atualmente, também não se considera o tempo em que o condenado permaneceu no período de prova, ainda que, nesse intervalo, tenha cumprido as condições impostas.
8 – CONCLUSÕES
Ante o exposto, vale declarar que o instituto do sursis é benéfico para o nosso sistema penal e penitenciário, já que evita o contato dos réus condenados por crime de pequena monta com delinqüentes mais perigosos. Inclusive, a sua adoção favoreceu até a certeza da punição, impedindo que juízes, com receio da promiscuidade dos delinqüentes, nas prisões, absolvessem frequentemente acusados de crimes leves e sem periculosidade.
Tal instituto foi introduzido no nosso ordenamento jurídico em 6 de setembro de 1924, por meio do Decreto nº 16.588. O prazo máximo de duração da condenação para o seu cabimento era de apenas um ano, diferentemente do Código Penal atual, que exige o máximo de dois anos de condenação ou de quatro anos, caso se trate de condenado maior de setenta anos de idade ou por razões de saúde.
Além disso, os períodos de prova do sursis no decreto de 1924 eram menores que os atualmente previstos. Havia dois períodos de prova, um para os crimes, outro para as contravenções. No Código Penal atual, não há este critério de distinção, pois preferiu-se adotar um período de prova maior de acordo com a idade (sursis etário) ou com problemas de saúde (sursis humanitário).
Outra distinção que pode ser apontada, dentre as diversas existentes, é a de que o Decreto 16.588 previa apenas a revogação no caso de outra condenação, seja o fato anterior ou posterior à suspensão e era ela obrigatória. Atualmente, há diversas causas de revogação e esta pode ser obrigatória ou facultativa, a depender do caso.
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[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2000, p.94-95.
[2] Idem, p. 95.
[3] Ibidem.
[4] LINS E SILVA, Evandro. De Beccaria a Filippo Gramatica (uma visão global da história da pena), in Sistema Penal para o terceiro milênio, Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 02.
[5] BREGA FILHO, Vladimir. Suspensão Condicional da Pena e Suspensão Condicional do Processo. Eficácia de cada um dos institutos. Tese de doutorado, sob a orientação do Prof. Doutor Dirceu de Mello, PUC/SP, 2004, p.19.
[6]Idem.
[7] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v. I, p. 171.
[8] GUSMÃO, Chrysolito de. Da Suspensão Condicional da Pena. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926, p.01.
[9] Ressalte-se que esta foi a primeira obra no Brasil acerca do referido instituto, apesar da rica literatura estrangeira então existente.
[10] Bruno, Aníbal. Direito Penal, parte geral, tomo III, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 169.
[11] Preferimos expor as três posições apontadas por Cleber Masson, já que são, ao nosso modo de pensar, as mais relevantes: MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal. Parte Geral. Esquematizado. 2ª ed., São Paulo: Método, 2009, p.701.
[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed.rev. atal. e ampl. São Paulo: RT, 2007, p.307.
[13] José Mendes, em 1908, defendeu sua dissertação de mestrado em que advogava a implementação do instituto no direito brasileiro, bem como posicionou-se no sentido de que o sursis possui a natureza jurídica de pena, conforme apontado por René Ariel Dotti, em O Sursis e o Livramento Condicional nos Projetos de Reforma do Sistema, Justitia, São Paulo: p. 175-194, jan./mar., 1984.
[14] Cf PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral.7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.661.
[15] GUSMÃO, Chrysolito de. Da Suspensão Condicional da Pena. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926, p.02.
[16] AULER, Hugo. Suspensão Condicional da Execução da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 5 e 6.
[17] MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal. Parte Geral. Esquematizado. 2ª ed., São Paulo: Método, 2009, p.700.
[18] Idem.
[19] ALVES, João Luis. Diário Oficial de 9 de setembro de 1924, p. 19.746 apud AULER, Hugo. Suspensão Condicional da Execução da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1957.
[20] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v. I, p.176.
[21] WHITAKER, Firmino. Condenação criminal (sursis). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1930, p. 11.
[22] Entende tal como sistema o autor Cleber Rogério Masson, Direito Penal. Parte Geral. Esquematizado. 2ª ed., São Paulo: Método, 2009, p. 700.
[23] AULER, Hugo. Suspensão Condicional da Execução da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p.90.
[24] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral.7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 663.
[25] Diário do Congresso Nacional, 19/07/1906, p. 847 apud QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Sursis e Livramento Condicional, 1924-1940: a modernização do direito penal brasileiro. Dissertação de mestrado, sob orientação do professor associado José Reinaldo de Lima Lopes, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2005, p. 185.
[26] QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Sursis e Livramento Condicional, 1924-1940: a modernização do direito penal brasileiro. Dissertação de mestrado, sob orientação do professor associado José Reinaldo de Lima Lopes, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2005, p. 185.
[27] QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Sursis e Livramento Condicional, 1924-1940: a modernização do direito penal brasileiro. Dissertação de mestrado, sob orientação do professor associado José Reinaldo de Lima Lopes, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2005, p. 186.
[28] MELLO, Dirceu de. Palestra ministrada em maio de 2005, no auditório Júlio Fabbrini Mirabete, durante o 7º. Curso de Especialização em Direito Penal, promovido pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo apud ALVES, Jamil Chaim. Ascensão e declínio do sursis no Brasil : uma análise histórica. Disponível em http:www.lfg.com.br. 18 julho. 2008.
[29] Ressalte-se que alguns autores da época também denominavam o referido instituto de sobreestação condicional da pena, a exemplo de Chrysolito de Gusmão.
[30] GUSMÃO, Chrysolito de. Da Suspensão Condicional da Pena. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926, p. 69.
[31] WHITAKER, Firmino. Condenação criminal (sursis). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1930, p. 9 e 10.
[32] SIQUEIRA, Galdino. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1947.t.II, p. 863-864.
[33] Cf WHITAKER, Firmino. Condenação criminal (sursis). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1930, p.27.
[34] Cf GUSMÃO, Chrysolito de. Da Suspensão Condicional da Pena. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926, p.157 e 158.
[35] Vale notar que o referido decreto menciona apenas o termo “revogação”, e não decadência.
Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP e bolsista do CNPq. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Nayara Graciela Sales. A origem histórica do sursis no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2010, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22437/a-origem-historica-do-sursis-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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