Sumário: 1. Introdução. 2. Modelos de Prova. 3. Ordem Isonômica e Prova Argumentativa. 4. Ordem Assimétrica e Prova Demonstrativa. 5. Conclusão.
1 Introdução
O conhecimento, no processo, tanto da questão de fato, quanto da questão de direito, pressupõe uma idéia de ordem.
A ordem atua na seleção de informações relevantes dentre as diversas que se apresentam como passíveis de prova, sendo, porém, diretamente dependente da prevalência, em determinado momento histórico, da retórica sobre a lógica ou desta sobre aquela.
Diante disso, tem-se que há duas idéias opostas de ordem. Uma, em que prevalecem os princípios da retórica, chamada isonômica, e outra, em que predominam os da lógica, a que se dá o nome de assimétrica.
Decorre de cada uma dessas ordens o conceito clássico e o conceito moderno de prova, sendo que as suas principais diferenças residem nas premissas jusfilosóficas de cada um, tendo por conseqüência uma determinação absolutamente diversa daquilo que é relevante na indagação.
O presente opúsculo tem por escopo a abordagem dos modelos probatórios no Direito Comparado, bem como dos conceitos clássico e moderno de prova.
No entanto, faremos, por entendermos necessária, a sua análise em conjunto, como conditio sine qua non, com a do contexto e das características das chamadas ordens isonômica e assimétrica, as quais, por sua vez, estão na base de cada um dos conceitos de prova.
2 Modelos de prova
O processo não consiste em um fenômeno unitário e homogêneo[1], mas, ao contrário, tem “o seu tecido interno formado pela confluência das idéias, projetos sociais, utopias, interesses econômicos, sociais, políticos e estratégias de poder reinantes em determinada sociedade, com notas específicas de tempo e espaço” [2].
Dessarte, como o conhecimento, no processo, não só da questão de fato, mas também da questão de direito, pressupõe a idéia de ordem, aquele terá alterada a sua base axiológica na mesma medida em que a idéia de ordem variar em face de sua dependência direta da resposta dada ao questionamento preliminar acerca da prevalência da retórica sobre a lógica ou desta sobre aquela[3].
Esse perene conflito entre retórica e lógica teve como resultado ora a preponderância de uma ora a de outra, ao sabor das vicissitudes de cada momento histórico, cujas implicações se refletem diretamente no processo.
Disso, embora, como ressalta Giuliani[4], retórica e lógica não estejam em oposição, mas se complementem na construção do conceito de ordem, com o predomínio de uma ou de outra, formaram-se duas opostas idéias de ordem. Uma, a que se deu o nome de isonômica, em que prevalecem os princípios da retórica, e outra, chamada assimétrica, em que predominam os parâmetros estabelecidos pela lógica.
O conceito de prova, da mesma sorte, está intimamente ligado à idéia de ordem, pois, nas palavras de Giuliani:
Senza ordine, non é possibile una forma correta di conoscenza, come è rivellato dalle forme prelogiche della mente umana, legate ai meccanismi psicologici della memoria e del ricordo[5].
A ordem representa o princípio da racionalidade e da economia da investigação, permitindo a seleção de informações relevantes dentre as diversas que se apresentam como passíveis de prova[6].
As grandes alterações se dão porque as soluções oferecidas pela retórica ao problema do papel do juiz e das partes em juízo são opostas às oferecidas pela lógica.
Observe-se que, em qualquer dessas ordens, ocorre tão-somente uma preponderância da retórica sobre a lógica ou vice-versa, mas não uma total suplantação dos princípios de uma ou de outra.
É em cada uma delas que prevalece, também, o conceito clássico e o conceito moderno de prova, respectivamente, de modo que, para que se possam delinear as características de cada uma dessas concepções do direito probatório, faz-se necessário um breve escorço acerca do contexto em que se insere o que se convencionou chamar de ordem isonômica e ordem assimétrica.
As diferenças entre os dois conceitos de prova estão, precipuamente, nas premissas jusfilosóficas de cada um, consistindo na determinação absolutamente diversa daquilo que é relevante na indagação, ou seja, estão em sua base uma “análise oposta do fato”[7].
Danilo Knijnik, citando Alessandro Giuliani, afirma que:
A concepção clássica põe em evidência o caráter seletivo do conhecimento e relativo do fato: dominada como é, pelo problema do erro, trata de limitar rigidamente o campo da indagação, renunciando ao conhecimento do fato em sua totalidade. A concepção moderna vê, ao contrário, no alargamento do campo de indagação o meio para um melhor conhecimento dos fatos (o princípio da “total evidence”): a determinação do fato parece uma operação em certo sentido técnica, e o mundo dos fatos parece ter uma autonomia completa, tornando possível a introdução de critérios quantitativos numéricos para seu acertamento.[8]
Há, portanto, dois modelos fundamentais de prova: um segundo o qual ela é um argumento persuasivo destinado a convencer o julgador da oportunidade de aceitar como possível uma certa versão dos fatos relevantes para a decisão; e outro, em que a prova é entendida como um instrumento demonstrativo, cuja finalidade é o conhecimento científico da verdade dos fatos relevantes para a decisão[9].
3 Ordem isonômica e prova argumentativa
Para a ordem isonômica, a possibilidade de uma verdade prática depende da realização de uma cooperação involuntária entre os participantes de uma discussão.[10]
Contudo, a investigação, em tal ordem, deve evitar tanto a tentação da demonstração científica, quanto a vitiosa argumentatio.[11] Isso porque essa ordem não é nem pré-constituída, como um sistema, nem espontânea, e encontra o remédio à falibilidade do juízo na divisão do conhecimento e na definição (actio finium regundorum) dos papeis dos participantes da lide (julgador, partes e testemunhas).
Na ordem isonômica, há um constante temor de uma perversio ordinis, seja proveniente de odiosa intervenção externa, seja decorrente do abuso do processo pelas partes. Isso se constata, claramente, na obra de Ioanes Saresberiensis (nome latino) ou John of Salisbury, em que ele sustenta ser o processo coisa das partes, não do juiz, sendo deste a função de controlar o juízo das partes, sem, todavia, substituí-lo pelo seu próprio, em violação ao princípio do contraditório e em detrimento das alternativas argumentativas que lhe são apresentadas[12].
Alessandro Giuliani[13], citando o seguinte trecho da obra Policraticus de John of Salisbury, afirma que, no momento introdutório do processo, não apenas as partes, mas também os causídicos se obrigavam a não lançar mão de manobras que resultariam em abuso do processo, ressaltando a preocupação com a manutenção da ordem:
Ut vero rerum veritas citius illucescat, litigatores ipsos, personas videlicet principales, non ante ad litem Iudex admittet, quam ei praestito sacramento faciant fidem, quod iustitiae insistent, et calumniam omnem procul facient, seu et ipsi patroni causarum, quo fidelior possit esse examinatio, ab ipsa contestatione litis, iuramento arctantur ad veritatem et fidem, iurantes quod cum omni virtute sua, omnique ope, quod iustum et verum examinaverint, clientibus suis inferre procurabunt, nihil studii relinquentes prout cuique possibile est; et quod ex industria sua non protahent lites. Nam eas oportet a iudicibus infra biennium vel triennium terminari. Policraticus. Livro V. Capítulo 13.
(Para que mais rapidamente se esclareça a verdade das coisas, os próprios litigantes, certamente os principais sujeitos, não serão admitidos pelo juiz à lide antes que em sacramento [sob juramento] afirmem que buscarão a justiça e se afastarão de qualquer calúnia, ou também os próprios advogados das partes, para que mais fiel possa ser o exame, da própria contestação da lide, jurarão pela verdade e pela fé que buscarão o que é justo e verdadeiro com toda a sua virtude e com toda a sua força, na condução de seus clientes, sem abandonar nenhum estudo, dentro do possível, e que deliberadamente não protrairão as lides. Isso porque elas devem ser julgadas pelos juízes dentro de dois ou três anos. – Tradução nossa.)
É, também, a problemática do erro que imprime à metodologia da investigação um caráter seletivo na base de uma lógica da relevância, concebida em regras de exclusão[14], ou seja, a sempre presente idéia do erro, de falibilidade do próprio conhecimento humano, traz como conseqüência a busca de meios de evitação do equívoco[15].
O conceito clássico de prova está inserido, portanto, em uma concepção filosófica, segundo a qual o fato não pode ser conhecido em sua totalidade, sendo apenas adquirido por meio de probabilidade.
Nesse contexto, o contraditório constitui princípio basilar da ordem isonômica, visto que ele oferece ao juiz um conhecimento que nenhuma mente individual poderia alcançar sozinha:
Il contraddittorio offre al giudice un sapere che nessuna mente individuale potrebbe ricercare autonomamente: l’interesse delle parti serve inconsapevolmente alla ricerca della verità pratica, irriducibile ad una verità necessaria peculiare delle scienze dimostrative.[16]
Mais do que isso, nas palavras de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “o contraditório representa o único método e instrumento para a investigação dialética da verdade provável” no ambiente cultural da ordem isonômica. Valemo-nos, ainda, das magistrais palavras do jurista gaúcho para explicar o contexto e as idiossincrasias dessa ordem:
O processo, fartamente influenciado pelas idéias expressas na retórica e na tópica aristotélica, era concebido e pensado como ars dissedendi e ars oponendi et respondendi, exigindo de maneira intrínseca uma paritária e recíproca regulamentação do diálogo judiciário. Dado que nas matérias objeto de disputa somente se poderia recorrer à probabilidade, a dialética se apresentava, nesse contexto, como uma ciência que ex probabilibus procedit, a impor o recurso ao silogismo dialético. Na lógica do provável, implicada em tal concepção, a investigação da verdade não é o resultado de uma razão individual, mas do esforço combinado das partes, revelando-se implícita uma atitude de tolerância em relação aos “pontos de vista” do outro e o caráter de sociabilidade do saber. A dialética, lógica da opinião e do provável, intermedeia o certamente verdadeiro (raciocínio apodítico) e o certamente falso (raciocínio sofístico). No seu âmbito, incluem-se os procedimentos não demonstrativos, mas argumentativos, enquanto pressupõem o diálogo, a colaboração das partes numa situação controvertida, como no processo. Em semelhante ambiente cultural, o contraditório representa o único método e instrumento para a investigação dialética da verdade provável, aceito e imposto pela prática judiciária à margem da autoridade estatal, decorrente apenas da elaboração doutrinária, sem qualquer assento em regra escrita.[17]
O conceito de prova típico, portanto, da ordem isonômica, ou seja, o conceito clássico, consiste em uma prova argumentativa: probatio quidem est rei dubiae et per argumenta iudici faciens fidem (a prova, portanto, é esclarecer [tornar fidedigna] ao juiz, por meio de argumentos, uma coisa dúbia – tradução nossa)[18].
Conforme afirma Giuliani[19], clássica é a concepção de prova como argumentum, tendo sido de Cícero a definição mais madura, segundo a qual, argumentum est ratio quae rei dubiae faciat fidem (argumento é a razão que esclarece uma coisa dúbia – tradução nossa).
Essa frase de Cícero foi extraída de sua clássica obra Topica, em cujo contexto se lê:
[6] Cum omnis ratio diligens disserendi duas habeat partis, unam inveniendi alteram iudicandi, utriusque princeps, ut mihi quidem videtur, Aristoteles fuit. Stoici autem in altera elaboraverunt; iudicandi enim vias diligenter persecuti sunt ea scientia quam dialektikon appellant, inveniendi artem quae topika dicitur, quae et ad usum potior erat et ordine naturae certe prior, totam reliquerunt. [7] Nos autem, quoniam in utraque summa utilitas est et utramque, si erit otium, persequi cogitamus, ab ea quae prior est ordiemur. Ut igitur earum rerum quae absconditae sunt demonstrato et notato loco facilis inventio est, sic, cum pervestigare argumentum aliquod volumus, locos nosse debemus; sic enim appellatae ab Aristotele sunt eae quasi sedes, e quibus argumenta promuntur. [8] Itaque licet definire locum esse argumenti sedem, argumentum autem rationem quae rei dubiae faciat fidem.
([6] Toda ratio disserendi diligente possui duas partes, uma inventiva (de encontrar) e a outra judicativa (de julgar), sendo Aristóteles, ao que me parece, o criador de ambas. Os Estóicos, por sua vez, elaboraram-nas. A judicativa é diligentemente perseguida pela ciência chamada Dialética, enquanto a arte inventiva, chamada tópica, a qual melhor era ao uso e certamente anterior pela ordem da natureza, foi totalmente abandonada. [7] Nós, porém, visto que ambas são dotadas de suma utilidade, e, se possível, pensamos em pesquisá-las, começando pela primeira. Visto que é fácil encontrar as coisas escondidas por meio de um locus (lugar) demonstrado e conhecido, dessa forma, quando desejamos investigar um argumento, devemos conhecer os locos (lugares); assim, elas são chamadas por Aristóteles, por assim dizer, a sede da qual os argumentos emergem. [8] Dessarte, pode-se definir o locus como a sede do argumento, o qual, por suas vez, é a razão que esclarece uma coisa dúbia. Tradução nossa.)
Esse conceito de prova como argumentum, no dizer de Michele Taruffo[20], está compreendido em um procedimento probatório caracterizado por desenvolver-se por meio do diálogo entre as partes e dar-se perante um juiz passivo, ou seja, sem o poder de intervir na prova dos fatos (iudex non potest in facto supplere). Esses fatores é que vão caracterizar a ordem como isonômica.
Diante disso, visto que pertencentes ao passado, os fatos têm em sua reconstrução valorações opostas, incumbindo às partes a apresentação das suas versões como duas hipóteses argumentativas, dentre as quais cabe ao julgador escolher uma.
A verdade dos fatos, nesse contexto, nunca é absoluta, mas é dada pela hipótese mais provável, ou seja, com maiores elementos de confirmação.
A formação do conceito clássico de prova delineia-se ainda na antiguidade, entre os séculos V e I a. C.[21]. É, porém, no período justinianeu que se fixam os chamados princípios clássicos da prova, que, até então, não passavam de responsa a questionamentos feitos em casos concretos.[22]
Como assevera Giuliani, foi com base nos textos contidos no Corpus justinianeu que, a partir da Idade Média, se fez possível construir a lógica da prova no mundo ocidental[23].
Assim, o conceito clássico de prova como argumentum está intimamente ligado a uma idéia do normal, sendo que este não corresponde àquilo que normalmente acontece (id quod plerumque accidit), mas àquilo que é eticamente preferível[24]. Nas palavras de Giuliani, “esiste insomma una scala di probabilità, che è conessa con un sistema di valori. I valori vivono nella disputa, nel dialogo, nella ricerca: non esistono come un dato di conoscenza esterno ed oggettivo”[25].
Todavia, é no chamado ordo iudiciarius medieval que essa concepção do direito probatório encontra o seu auge, dominando na Europa do século XII ao século XVII, quando cede lugar ao predomínio dos valores de uma outra ordem (a assimétrica), não mais inspirada na dialética aristotélica, mas, sim, na lógica ramista.
Desde a metade do século XIII, conexamente com o início do declínio da retórica, a idéia de provável começou a transmudar-se e, lenta e progressivamente, a adquirir um caráter objetivo, emergindo a idéia de normal como id quod plerumque accidit[26]. Surge a tentativa de superar os limites da verdade provável, acreditando-se ser possível alcançar a verdade real.
Com essa alteração de paradigma, logo prevalecerá uma nova ordem, diretamente influenciada pelos ideais lógico-científicos de sua época e especialmente embasada na lógica ramista a partir do século XVI.
4 Ordem assimétrica e prova demonstrativa
Com a difusão e a larga aceitação da lógica de Pierre de la Ramée, segundo a qual a matemática constituía o protótipo sobre o qual se modelariam todas as formas de conhecimento, a retórica e a prova argumentativa rendem-se à lógica e à prova demonstrativa, sob os auspícios dos grandes desenvolvimentos científicos experimentados na modernidade.
Houve, assim, uma passagem da ars disserendi à ars ratiocinandi, ligada à dialética ramista, que ofereceu um status lógico às idéias latentes já mesmo na segunda fase do ordo iudiciarius[27].
O papel da lógica matemático-científica na prevalência da ordem assimétrica sobre a ordem isonômica consiste, principalmente, na crença na capacidade humana de conhecer os fatos em sua totalidade. No dizer de Alessandro Giuliani:
La metodologia ramista della scoperta scientifica, benché trascurabile dal punto di vista della storia, ha esercitato un grande fascino nell’evoluzione delle idee moderne sul processo e sulla prova fino al XVIII secolo. Le ragioni di questo successo vanno ricercate anzitutto nell’idea della verità oggettiva o materiale: i fatti contingenti – anche nell’esperienza giudiziale – possono essere sottoposti alla verificazione e al controllo, come i fatti empirici.[28]
Não predomina mais o temor do erro, da injustiça, diante da falibilidade humana, mas, ao contrário, crê-se piamente que o homem possa alcançar a verdade material por meio de um método científico. Como assevera Danilo Knijnik:
Identifica-se, pois, que, ao mesmo tempo em que as idéias atinentes ao positivismo ganharam força, o sistema da prova haveria, necessariamente, de sofrer a sua influência, pois, finalmente, a aceitação do modelo subsuntivista determinaria que a pesquisa de fato, até então concebida dentro de uma premissa dialética e pluralista, pudesse ser concebida na sua “totalidade absoluta”, na sua “verdade total e objetiva”, na sua “independência” e “autonomia” quanto ao “mundo do direito”, desprezando-se, com isso, a relatividade que lhe era imanente, a possibilidade do erro e do equívoco.[29]
Somou-se a isso, para caracterizar por completo a mudança de paradigma, com a prevalência de uma ordem assimétrica, a apropriação, pelo soberano, do monopólio da legislação processual, campo que lhe era tradicionalmente vedado na ordem isonômica. Tal passagem histórica é brilhantemente explicada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira no excerto ora transcrito:
A mudança de perspectiva, introduzida pela lógica de Pierre de la Ramée (século XVI), já antecipa uma alteração de rumo que busca incorporar ao direito os métodos próprios da ciência da natureza, um pensamento orientado pelo sistema, em busca de uma verdade menos provável, com aspirações de certeza, a implicar a passagem do iudicium ao processus. Tudo isso se potencializa, a partir do século XVII, com a estatização do processo, com a apropriação do ordo iudiciarius pelo soberano, pelo príncipe, que passa a reivindicar o monopólio da legislação em matéria processual, tendência incrementada depois pelas idéias do iluminismo e pelo verdadeiro terremoto produzido pela Revolução francesa.[30]
Desse modo, conforme célebre passagem de Nicola Picardi, não só no direito probatório, mas também no direito processual como um todo, ocorre uma transição de um modo de pensar voltado para o problema, ou seja, tópico, para um modo de pensar sistemático, embasado no saber científico:
L’applicazione della logica ramistica allo studio del processo rappresenta, invece, il momento di transizione da un modo di pensare orientato sul problema ad un modo di pensare sistemático, modellato sul sapere scientifico; e la procedura, da una disciplina che studia verità “probabili”, diviene, almeno tendenzialmente, una scienza delle verità “assolute”.[31]
As regras, nesse contexto histórico, não mais dependem dos princípios da retórica, mas, sim, dos da lógica, a qual reivindica uma função legislativa, e não meramente auxiliar[32].
O triunfo, porém, do modelo assimétrico está estreitamente ligado à passagem das provas racionais às provas legais, decorrente da vitória do soberano no que concerne à sua intervenção na legislação processual[33]. Vale citar a esclarecedora explicação de Alessandro Giuliani:
Il trionfo del modello asimmetrico, insinuatosi nella seconda fase della procedura romano-canonica, resta legato al passagio dalle prove razionali alle prove legali: ossia alla fortuna del sovrano nel’intervento, attraverso la legislazione processuale, in un settore tradizionalmente contestatogli (l’ordus iudiciarius). Sulla base di ben diversi contesti culturali ed istituzionali, tra il XVII e il XVIII secolo si sono consolidati due opposti sistemi probatori, costruiti come modelli puri rispettivamente dell’ordine isonomico e dell’ordine asimmetrico: la law of evidence in Inghilterra e il Beweisrecht in Prussia.[34]
Como afirma Nicola Picardi, até a idade moderna, o processo era considerado fruto da manifestação da razão prática, não tendo regramento legislado:
Fino all’età moderna la procedura era considerata manifestazione di una ragione pratica e sociale, che si era realizzata nel tempo attraverso la collaborazione della prassi dei tribunali e della dottrina.[35]
Nesse influxo de idéias, inspiradas no cientificismo dominante na época, chega-se a uma autonomia completa entre fato e direito, passando-se a encarar aquele como algo externo, sem, porém, descurar da necessária relação entre o fato e a conseqüência jurídica. Essa é a lição que nos dá Alessandro Giuliani:
[...] al mondo dei fatti viene riconosciuta una autonomia completa: quando si ammette il fatto come qualcosa di esterno, oggettivo, viene meno quell’aspetto di contrarietà nella ricerca, che nel passato era sembrato essenziale, sotto l’influsso delle teoria retoriche e dialettiche. Se il giudice deve porre a base della decisione il fatto confessato, derivano alcune conseguenze dal punto di vista lógico: a) la questione di fatto è nettamente separata dalla questione di diritto (che conosce solo il giudice); b) deve esistere um rapporto di necessita fra il fatto e la conseguenza giuridica[36].
Na ordem assimétrica, “a prova é entendida como instrumento demonstrativo, voltado para o conhecimento científico da verdade dos fatos relevantes para a decisão”[37]. Seguindo, Hermes Zanetti Jr explica que:
Neste modelo o procedimento é caracterizado pelo forte ativismo judicial, ou seja, um juiz burocrata, presentante do Estado, que participa da instrução probatória ativamente. Desta forma é considerado assimétrico, justamente porque o juiz assume papel relevante na instrução e acaba por desigualar a relação de isonomia entre as partes.[38]
A partir dessa época, o direito, como ciência jurídica, passa a ter como ideal uma ordenação exaustiva, dominado que é por um pensamento sistemático típico de uma lógica cientificista.
A assimetria da ordem, contudo, veio aos poucos se mostrando, com a introdução lenta e gradual da intervenção judicial nas questões fáticas, visto que, nesse momento, iudex potest in facto supplere.
Exemplos marcantes nos são apresentados por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, que, em sua obra “Do Formalismo no Processo Civil”, explicita os caso da Prússia, em cuja legislação processual de 1793 e 1795, conferiu ao juiz poderes de se assegurar das verdadeiras condições dos fatos da causa, bem como o da reforma promovida por Bellot, no Cantão de Genebra, em que ao juiz é dado até mesmo investigar os fatos ex officio:
[...] os inconvenientes do procedimento do direito comum induziram a Prússia, o principal Estado alemão, a tomar enérgicas medidas para ampla reforma do Judiciário. Dentro de uma inspiração da função judicial de molde inquisitório, os §§ 6º e 7º da Introdução à Ordenança Judicial Geral (Allgemeine Gerichtsordnung) de 1793 e 1795 atribuíram ao juiz, de modo significativo, o dever e, por conseqüência, o poder de se assegurar das verdadeiras condições dos fatos da causa. O juiz, portanto, mesmo de ofício estava autorizado a investigar o fundamento dos fatos surgidos no processo e, tanto quanto necessário, trazê-los à luz para a correta aplicação da lei.[39]
No mar da passividade das primeiras décadas do século XIX, sobressai como onda encapelada de grande porte a obra de Bellot, o projeto da Loi de Procédure Civile do Cantão de Genebra, decretado pelo Conseil Representatif et Souverain em 29 de setembro de 1819.
De modo verdadeiramente precursor, destina-se papel ativo ao juiz, inclusive na investigação dos fatos da causa. No art. 150, o Code de Procédure outorgou ao juiz a possibilidade de determinar de ofício o interrogatório das partes, o juramento e ouvida de testemunhas, o exame pericial e exibição de documentos, sempre que não estivesse suficientemente esclarecida a verdade material.[40]
Dessa forma, na ordem assimétrica, claramente, privilegiam-se as operações solitárias da mente do juiz, considerado advocatus partium generalis (advogado geral das partes), nas palavras de Leibniz[41].
5 Conclusão
Em conclusão, tomando emprestadas as palavras de Alessandro Giuliani, o direito probatório pode ser considerado como um capítulo da história político-constitucional de uma época, refletindo as suas variações nas relações de harmonia e dissonância principalmente nas relações institucionais entre legislador e juiz e entre este e o cidadão[42].
A concepção clássica de prova predominou durante a ordem isonômica, entre os séculos XII a XV, fundada no caráter seletivo do conhecimento e relativo do fato. Diante da constante presença do problema do erro, da falibilidade humana, nela é limitado o campo de indagação, com a renúncia ao conhecimento do fato na sua totalidade.
O pensamento probatório desse período é o de uma verdade provável, obtida a partir da ars oponendi et respondendi (diálogo regrado).
O ordus iudiciarius medieval, apontado por Giuliani como um modelo em que predomina a ordem isonômica, representa um fator de equilíbrio no constitucionalismo medieval, visto que o próprio direito probatório, assim como o direito processual como um todo, sofrem influência direta dos valores constitucionais predominantes em sua época:
L’Ordo iudiciarius medioevale – considerato come il modello della procedura razionale nelle decisioni pratiche – rappresenta un fattore di equilibrio nel costituzionalismo medioevale.[43]
No caso da ordem isonômica, o que a determina é a sua autonomia frente ao soberano, porquanto os seus princípios não estão submetidos às normas estabelecidas pelo legislador, mas, ao contrário, respeita tão-somente os da retórica e os da ética:
[...] il primato del’ordo è nella sua extrastatualità, in quanto i suoi princìpi non dipendono dalla volontà del legislatore, ma dalla retorica e dalla etica[44].
Vale, ainda, ressaltar que o conceito clássico de prova subentende uma filosofia político-constitucional de limitação do poder, vedando qualquer intervenção externa ao processo.
Diante desse contexto, considerada a incapacidade do homem de conhecer a verdade, crença dominante no período em comento, a prova não pode ser mais do que o convencimento acerca de uma verdade provável por meio da argumentação, por meio da persuasão.
A concepção moderna de prova, por sua vez, fruto que é do iluminismo, do racionalismo, busca um alargamento do campo de indagação para melhor conhecimento dos fatos (total evidence), procurando conhecer o fato em sua inteireza. Isso porque a determinação dos fatos é entendida como uma operação técnica.
Inspirada e diretamente influenciada pelos princípios das ciências exatas, emergentes e avassaladores em sua época, a prova deixa de ser baseada na argumentação, fundada na retórica, para acompanhar as idéias do momento e adotar um método quase científico de averiguação da verdade. A concepção moderna de prova, portanto, passa a ser demonstrativa, firme na crença de que nenhum conhecimento é ao homem vedado.
Com base nesses dois diferentes contextos culturais e institucionais, entre os séculos XVII e XVIII, consolidam-se dois sistemas probatórios opostos: a law of evidence inglesa, embasada no modelo da ordem isonômica, e a Beweisrecht prussiana, fundada na ordem assimétrica[45].
Todavia, como afirma Michele Taruffo, existem relações entre os modelos de prova e os sistemas processuais. Não são, porém, de simétrica coincidência, mas de complexa e articulada inter-relação.
Inegável, por fim, que, na atualidade, um desses modelos seja o predominante em cada sistema jurídico do ocidente, ainda que latente, mas, de qualquer forma, seja prevalecente o conceito de prova argumentativa, seja o de prova demonstrativa, ambos, em determinadas situações, inexoravelmente, se interpenetram, para influenciar com seus princípios e valores um ao outro.
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ZANETTI JR, Hermes. O problema da Verdade no Processo Civil: Modelos de Prova e de Procedimento Probatório. In: Introdução ao Estudo do Processo Civil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.
[1] GIULIANI, Alessandro. Ordo iudiciarius medioevale (Riflessioni su un modello puro di ordine isonomico). In Rivista di Diritto Processuale, ano XLIII, n° 3, p. 598-614, luglio-settembre 1988, p. 598.
[2] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A Garantia do Contraditório. In: Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 227.
[3] GIULIANI, op. Cit., p. 598.
[4] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 519.
[5] Idem, Ibidem.
[6] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 519.
[7] KNIJNIK, Danilo. Os Standards do Convencimento Judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, ano 97, v. 353, p. 15-52, jan-fev 2001, p. 22.
[8] Idem, Ibidem.
[9] TARUFFO, Michele. Modelli di prova e di procedimento probatorio. Rivista di Diritto Processuale, Padova, v.45, n.2, p.420-48, apr./giugno, 1990, p. 420-421.
[10] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 523.
[11] Idem, Ibidem.
[12] GIULIANI, Alessandro. Ordo iudiciarius medioevale (Riflessioni su un modello puro di ordine isonomico). In Rivista di Diritto Processuale, ano XLIII, n° 3, p. 598-614, luglio-settembre 1988, p. 610.
[13] Idem, p. 610, nota 29.
[14] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 531.
[15] KNIJNIK, Danilo. Os Standards do Convencimento Judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, ano 97, v. 353, p. 15-52, jan-fev 2001, p. 22.
[16] GIULIANI, Alessandro. Ordo iudiciarius medioevale (Riflessioni su un modello puro di ordine isonomico). In Rivista di Diritto Processuale, ano XLIII, n° 3, p. 598-614, luglio-settembre 1988, p. 606.
[17] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A Garantia do Contraditório. In: Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 228-9.
[18] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 530.
[19] GIULIANI, Alessandro. Il Concetto di Prova: Contributo alla Logica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1971, p XI.
[20] TARUFFO, Michele. Modelli di prova e di procedimento probatorio. Rivista di Diritto Processuale, Padova, v.45, n.2, p.420-48, apr./giugno, 1990, p. 420.
[21] GIULIANI, Alessandro. Il Concetto di Prova: Contributo alla Logica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1971, p. XI.
[22] Idem, p. 109.
[23] Idem, Ibidem.
[24] ‘GIULIANI, Alessandro. Il Concetto di Prova: Contributo alla Logica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1971, p. 231.
[25] Idem, Ibidem.
[26] Idem, p. 233.
[27] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 549.
[28] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 552.
[29] KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 75.
[30] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A Garantia do Contraditório. In: Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 228-9.
[31] PICARDI, Nicola. Processo Civile (dir. moderno), in Enciclopedia del Diritto, XXXVI, Milano: Giuffrè, 1987, p. 111.
[32] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 539
[33] Idem, p. 542.
[34] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 542.
[35] PICARDI, Nicola. Processo Civile (dir. moderno), in Enciclopedia del Diritto, XXXVI, Milano: Giuffrè, 1987, p. 114.
[36] GIULIANI, Alessandro. Il Concetto di Prova: Contributo alla Logica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1971, p. 208.
[37] ZANETTI JR, Hermes. O problema da Verdade no Processo Civil: Modelos de Prova e de Procedimento Probatório. In: Introdução ao Estudo do Processo Civil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004, p. 143.
[38] Idem, Ibidem.
[39] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 37.
[40] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 47.
[41] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 521.
[42] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 522.
[43] GIULIANI, Alessandro. Ordo iudiciarius medioevale (Riflessioni su un modello puro di ordine isonomico). In Rivista di Diritto Processuale, ano XLIII, n° 3, p. 598-614, luglio-settembre 1988, p. 613.
[44] GIULIANI, Alessandro. Ordo iudiciarius medioevale (Riflessioni su un modello puro di ordine isonomico). In Rivista di Diritto Processuale, ano XLIII, n° 3, p. 598-614, luglio-settembre 1988, p. 613.
[45] GIULIANI, Alessandro. Prova in Generale. A) Filosofia del dirito, in Enciclopedia del Diritto, XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 542.
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Doutorando em Direto pela Università di Roma Tor Vergata.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Eduardo Cunha da. Prova argumentativa ou prova demonstrativa: uma questão de ordem Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2011, 08:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23377/prova-argumentativa-ou-prova-demonstrativa-uma-questao-de-ordem. Acesso em: 23 dez 2024.
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