1- Introdução
O presente trabalho tem por escopo demonstrar a inviabilidade de uma Unidade de Conservação Municipal sobrepor uma Unidade de Conservação Federal. Serão esmiuçadas as circunstâncias que impedem este fenômeno que, numa análise preliminar, aparenta representar uma maximização da proteção do meio ambiente.
A competência comum atribuída aos entes federativos para proteger o meio ambiente (art. 23, VI, da Constituição Federal de 1988) não possui o condão de abalar a tese aqui defendida, máxime quando os próprios modelos de unidade de conservação adotados já são, por si só, incompatíveis.
A criação de UC’s (Unidades de Conservação) num mesmo espaço por distintas pessoas jurídicas de direito público interno, além de representar uma violação do pacto federativo, pode trazer transtornos à comunidade local, afetando sua subsistência e contrariando os objetivos conciliatórios e preservacionistas que nortearam a elaboração da Lei 9.985/00.
2- Desenvolvimento
A Lei n° 9.985/2000, ao regulamentar o art. 225, §1°, incisos I, II, III e VII, da Constituição Federal, instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC.
O SNUC é constituído pelo conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e municipais, tendo, dentre outros objetivos, a proteção dos recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente (art. 4º, XIII, da Lei n° 9.985/00).
Nos termos da Lei n° 9.985/2000, as unidades de conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas:
a) Unidades de Proteção Integral: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Nacional e Refúgio de Vida Silvestre, e;
b) Unidades de Uso Sustentável: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva da Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural.
O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos recursos naturais. Já no que pertine às Unidades de Uso Sustentável, seu pressuposto principal é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais.
Especificamente quanto aos Parques, cumpre destacar que seu objetivo básico é a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico, sendo que sua área é de posse e domínio públicos, devendo as áreas particulares inseridas em seus limites serem desapropriadas.
Ademais, nos Parques, a visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da Unidade, bem como àquelas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração ou previstas em regulamento.
Já no que tange ao Refúgio de Vida Silvestre, tem-se que seu objetivo é proteger ambientes naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória.
A Reserva Extrativista, por sua vez, é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte. Além disso, tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.
A Reserva Extrativista Marinha do Corumbau, unidade de conservação federal de uso sustentável, foi criada pelo Decreto Presidencial s/n de 21 de setembro de 2000, com objetivo de garantir a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população extrativista da área.
Na mesma linha, o Refugio da Vida Silvestre Rio dos Frades, unidade de conservação federal de proteção integral, surgiu com a publicação do Decreto Presidencial s/n de 21 de Dezembro de 2007, com objetivo básico de preservar ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
Ocorre que, em 31 de dezembro de 2009 foi sancionada e publicada a Lei Municipal n° 856/2009 que instituiu o Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho e dá outras providências. Nesse cenário, faz-se importante destacar alguns trechos da mencionada Lei.
O seu art. 1°, parágrafo único, traz os limites do Parque Municipal Marinho da Paria do Espelho (PMMPE). Já o art. 2° prevê que o referido Parque compreende todas as águas, recifes e plataforma continental, dentro de seus limites.
O art. 4° determina a proibição de qualquer forma de exploração dos recursos naturais, em toda a área do Parque, consoante os termos do Plano de Manejo a ser aprovado em 180 dias.
O art. 8° trouxe a instituição da Taxa de Visitação do PMMPE, fundada no inciso II, do art. 66, da Lei Orgânica Municipal, e no inciso II, do art. 145, da CF/88, como contraprestação aos serviços prestados ou mantidos à disposição do visitante pelo poder Público Municipal, tais como: informações; orientações, coleta de reclamações, distribuição de folhetos informativos; sinalização; fiscalização; identificação da fauna e flora; conservação e manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no Parque; elaboração de pesquisas científicas; vigilância e proteção das paisagens naturais do Parque; promoção de educação ambiental e demais serviços, a critério da autoridade administrativa, destinados à manutenção e proteção do Parque.
O art. 9° da citada Lei dispõe que a Taxa de Visitação tem como hipótese de incidência a utilização, efetiva ou potencial, pelo sujeito passivo, dos serviços, equipamentos públicos e a infra-estrutura do Município e do PMMPE, postos à disposição do Parque e do visitante, e visa financiar os seus objetivos de criação.
O grande cerne da narrativa suso realizada é que grande parte do Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho se sobrepõe às unidades de conservação de uso sustentável Reserva Extrativista do Corumbau e Refugio da Vida Silvestre Rio dos Frades. Esta sobreposição é inconciliável e juridicamente inviável, consoante será a seguir demonstrado.
Cumpre, inicialmente, destacar que a quase totalidade do Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho está localizada em área de propriedade da União (mar territorial, terreno de marinha, praias marítimas), de acordo com o art. 20, VI, V, VI e VII, da Constituição Federal de 1988.
Sucede que um Parque, seja Nacional, Estadual ou Municipal, deverá sempre ser de posse e domínio públicos, de forma que as áreas nele incluídas necessitarão ser desapropriadas, conforme o art. 11, da Lei 9.985/00. Esta circunstância, por si só, já denota a impossibilidade jurídica de uma Unidade de Conservação Municipal sobrepor uma Unidade de Conservação Federal. Isto porque não é dado ao Município desapropriar bens da União, salvo mediante prévia autorização, via Decreto, do Presidente da República.
Neste diapasão, os nossos Tribunais tem posicionamento tranqüilo quanto à impossibilidade de expropriação pelo Município de bens pertencentes à União, senão vejamos:
ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. EXPROPRIANTE. MUNICÍPIO. IMÓVEL PERTENCENTE À UNIÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Município não está autorizado a desapropriar bem pertencente à fundação pública federal, salvo mediante prévia autorização, por Decreto do Presidente da República. Precedentes do TRF - 1ª Região e do STJ. 2. Apelação não provida. (Tribunal Regional Federal da 1ª Região - AMS 200638000131752 - e-DJF1 DATA:15/02/2008 PAGINA:189)
Demais disso, a criação de uma unidade de conservação deve seguir os procedimentos constantes da Lei 9.985/2000 e do Decreto 4.340/2002 (que a regulamentou), assim como a sua ratio. Da mesma forma, diante de uma unidade de conservação devida e previamente constituída, qualquer ato do Poder Público deve respeitar as diretrizes e objetivos da Reserva Extrativista e do Refúgio da Vida Silvestre.
Outrossim, mister se faz consignar que uma unidade de conservação na categoria de proteção integral (Parque) não possui os mesmos objetivos e diretrizes das unidades de conservação de uso sustentável (Resex), principalmente no que se refere ao uso dos recursos naturais, nos termos da Lei n° 9.985/2000.
Com efeito, as unidades Parque e Reserva Extrativista são pertencentes a grupos diversos, logo trazem objetivos diferentes. O Parque pertence às UC’s de Proteção Integral, enquanto a Resex integra as UC’s de Uso Sustentável. Não é de difícil percepção o fato de que o primeiro grupo, por ser mais restritivo, anula o objetivo básico do segundo, que é “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais”. Dessa forma, resta impossibilitada a convivência harmônica entre um Parque e uma Resex numa mesma área.
A criação de uma unidade de conservação do grupo de proteção integral gera a supressão do direito de acesso aos recursos pela população tradicional da RESEX. O advento do Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho determinou a redução da área de pesca marinha e fluvial das famílias que residem na foz do Rio dos Frades há mais de 20 anos.
Cumpre informar que o Decreto n° 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, trouxe o conceito de território tradicional como os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária. Entre os objetivos desta Política Nacional vale destacar os que se seguem, que foram frontalmente violados com a criação de um Parque (Unidade de Conservação de Proteção Integral) na área ocupada pela população tradicional local:
I- garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica;
II - solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação de Unidades de Conservação de Proteção Integral em territórios tradicionais e estimular a criação de Unidades de Conservação de Uso Sustentável;
A impossibilidade de convivência harmônica entre a RESEX Corumbau e o Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho se revela patente, também, no aspecto concernente à visitação pública. O PMMPE, por exemplo, estabeleceu uma taxa ambiental que permite o acesso sem controle ao Parque. Já o Refúgio da Vida Silvestre Rio dos Frades não comporta, neste momento, o turismo, pois não foram iniciados os estudos para a elaboração do Plano de Manejo, que será responsável pelo estabelecimento das normas e diretrizes de uso.
Todos estes inconvenientes e incompatibilidades resultam da tentativa de sobreposição, numa mesma área, de uma UC de Proteção Integral (Parque) com uma UC de Uso Sustentável (Resex), cujos objetivos e diretrizes são notadamente discrepantes, máxime no que se refere ao uso dos recursos naturais.
A rigor, a mencionada impossibilidade de sobreposição ocorre mesmo entre categorias pertencentes às UC’s de Proteção Integral. Como dito, o PMMPE se sobrepôs não somente à RESEX Corumbau, mas também ao Refúgio da Vida Silvestre do Rio dos Frades. Esta última, mesmo sendo do grupo de proteção integral, também possui objetivos diversos e inconciliáveis daqueles estabelecidos para os Parques.
Como se vê, o Poder Público Municipal, ante a prévia constituição de duas unidades de conservação - Reserva Extrativista e Refúgio da Vida Silvestre -, deveria ter atentado para as diretrizes e objetivos destas, antes de promover a criação de um Parque que em nada se coaduna com elas.
Por fim, cumpre registrar a existência de precedente no Supremo Tribunal Federal (AC 1255 MC/RR[1]) – Informativo nº 432 do STF –, do qual se extrai que os interesses da União revestem-se de maior abrangência, caso inviável a colaboração entre os entes políticos envolvidos, quanto à criação de uma unidade de conservação, como se observa da conclusão da decisão monocrática do relator Min. Celso de Mello:
"Isso significa que, concorrendo projetos da União Federal e do Estado-membro à instituição, em determinada área, de reserva extrativista, o conflito de atribuições será suscetível de resolução, caso inviável a colaboração entre tais pessoas políticas, pela aplicação do critério da preponderância do interesse, valendo referir - como já assinalado - que, ordinariamente, os interesses da União revestem-se de maior abrangência”.
Não obstante todas as incompatibilidades até aqui esposadas, quadra explicitar, também, que a Lei n° 7661/88, em seu art. 10, expressamente prevê que as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
É cediço, entretanto, que a instituição de uma “Taxa de Visitação Pública” pelo Município de Porto Seguro culminou por embaraçar e dificultar o acesso das pessoas à Praia do Espelho, mormente diante do baixo poder aquisitivo da população local.
A Lei 9.985/00 autoriza a instituição de uma taxa de visitação. É fato, porém, que o Município de Porto Seguro não se valeu desse permissivo legal. Isto porque, caso de “taxa de visitação” se tratasse, a sua cobrança somente estaria permitida após a edição do Plano de Manejo da Unidade, nos temos do art. 11, §2°, da Lei do SNUC, momento em que são estabelecidas suas normas e diretrizes de uso e termo de gestão.
De plano, se percebe que não se trata de cobrança da taxa de visitação prevista na Lei n° 9.985/2000, mas sim de instituição de tributo de natureza não vinculada em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, como expressamente declarado pelos arts. 8° e 9° da Lei Municipal n° 856/2009.
Duas inconstitucionalidades são clarividentes na Lei Municipal n° 856/2009:
a) Foi desrespeitado o princípio constitucional da anterioridade nonagesimal, constante na alínea ‘c’, do art. 150, da Constituição Federal, que estabelece ser vedado cobrar tributos antes de decorrer noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.
b) Os serviços prestados ou mantidos à disposição do visitante pelo poder Público Municipal não se consubstanciam em específicos ou divisíveis, nos termos do art. 79 do Código Tributário Nacional.
Destarte, por qualquer ângulo que se analise, são flagrantes a ilegalidade e a inconstitucionalidade da Lei Municipal de n° 856/2009, que instituiu o Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho.
3- Conclusão
Vê-se, assim, que o Município de Porto Seguro investiu-se em competência legislativa que não lhe pertence, estabelecendo restrições ao uso e ao acesso de áreas pertencentes à União, o que implica em uma grave violação ao pacto federativo. Na mesma linha, foi desrespeitada a Lei n° 9.985/2000, ao impedir e dificultar o acesso à praia e ao contrariar os objetivos elencados nos Decretos de criação da Reserva Extrativista Marinha do Corumbau e Refugio da Vida Silvestre Rio dos Frades.
Por tudo quanto exposto, após a análise do caso concreto do Parque Municipal Marinho da Praia do Espelho, é inarredável a conclusão acerca da impossibilidade de sobreposição de duas unidades de conservação, sejam elas integrantes da mesma categoria (Unidades de Proteção Integral x Unidades de Uso Sustentável) ou não, mormente quando estabelecidas por entes federativos diversos.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
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