Introdução
Este trabalho tem por escopo analisar a legitimidade de um ato administrativo (in casu, uma autorização para supressão de vegetação) editado em consonância com o arcabouço legal à época em vigor, quando, posteriormente, advém nova legislação passando a exigir a perfeição de outro requisito para fins de deferimento do citado ato administrativo.
Trata-se de situação corriqueira nas Procuradorias do IBAMA espalhadas Brasil afora, que demanda, por parte do intérprete, uma escorreita leitura das normas ambientais em vigor, atenta à teleologia e unidade de todo o sistema jurídico.
Em se tratando de Direito Ambiental, a solução a ser dada ao caso concreto difere daquela que seria encontrada nos ramos privatísticos do Direito. O legislador constituinte, ao erigir o meio ambiente sadio para as gerações atuais e futuras como direito fundamental, impôs, nessa seara, a sobrepujança dos princípios da prevenção e precaução em detrimento de valores outros, tais como o ato jurídico perfeito ou o direito adquirido.
Significa isto dizer que, no direito ambiental, a validade de um ato administrativo expedido é aferida de forma rebus sic standibus. Caso sobrevenha normatização mais rigorosa, passando a exigir mais requisitos ou condicionantes, não há falar-se em direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Estes institutos não se coadunam com o regime de Direito Público. Sua aplicabilidade encontra maior guarida no Direito Civil e no Direito Comercial. Consubstanciam a resposta do Direito à necessidade de pacificação social e estabilização das demandas, materializando o Princípio Constitucional da Segurança Jurídica.
Ocorre que valores constitucionais como a Segurança Jurídica podem, no caso concreto, ceder em detrimento de outros valores de hierarquia igualmente constitucional, tal como a preservação do meio ambiente. Os princípios hermenêuticos da Máxima Efetividade e da Harmonia determinam, em hipóteses deste jaez, que nenhuma norma seja sacrificada. A rigor, o conflito entre princípios é meramente aparente, isto porque o princípio da unidade da Constituição estatui que as suas normas são harmônicas entre si, inexistindo sobreposição ou hierarquia entre estas.
Nestas situações em que, aparentemente, princípios constitucionais estão em conflito, imprescindível se faz lançar mão da técnica de decisão judicial denominada “Ponderação de Interesses”, sempre sob o manto do princípio da proporcionalidade.
Outrossim, é possível afirmar que não existem valores ou princípios absolutos no ordenamento jurídico. O Princípio da Segurança Jurídica (juntamente com seus consectários naturais: coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido) poderá ceder quando cotejado com outro princípio de envergadura igualmente constitucional, após a realização de uma ponderação de interesses à luz do Princípio da Proporcionalidade. É o que acontece, por exemplo, com o Princípio da Preservação do Meio Ambiente.
Não será legítimo permitir que um dano ao meio ambiente seja perpetrado sob o fundamento de que o empreendedor possui uma autorização emitida com supedâneo na legislação à época em vigor. O Direito Ambiental é um dos ramos do direito mais relacionados com a pesquisa científica. Dessa forma, caso a ciência identifique que determinada forma de exploração é menos danosa ao meio ambiente, esta deverá ser exigida do empreendedor, mesmo que, em momento anterior, se tenha entendido que outra técnica seria suficiente.
Na mesma linha, pode ocorrer de a limitação da ciência em determinado período engendrar o entendimento de que o deferimento de uma autorização ou licença pressupunha somente o atendimento de “x” condicionantes. Posteriormente, o avanço científico identifica a insuficiência destas condicionantes “x” para fins de preservação ambiental, acrescentando a necessidade de observância da condicionante “y”. Sobrevindo alteração legislativa que preveja a obrigatoriedade de cumprimento da nova condicionante, a novel legislação será aplicável mesmo àqueles administrados que obtiveram a autorização ou licença do órgão ambiental competente em período anterior à mudança da lei.
1- Desenvolvimento
Passamos a apresentar um exemplo que auxiliará na compreensão da tese aqui defendida.
Suponhamos que um empreendedor pretenda instalar uma linha de distribuição de energia elétrica com 200 KV de tensão, em uma área de 60 hectares ocupada por matas secundárias em diversos estágios de regeneração.
O empreendimento citado é de significativo impacto ambiental, estando sujeito, portanto, ao procedimento de licenciamento ambiental, conforme a Lei Federal 6.938/81 e a Resolução 237/97 CONAMA. Devido à circunstância do impacto ambiental não ser regional ou nacional, a competência licenciatória, em tese, será do órgão ambiental estadual.
O IBAMA, durante ação fiscalizatória, realizada em 2010, dirige-se ao local da instalação da linha de distribuição de energia elétrica antes do início das obras. O empreendedor, então, apresenta uma Autorização Para Supressão de Vegetação, expedida pelo órgão estadual do meio ambiente em 2007. Apresenta, também, uma declaração desse mesmo órgão, igualmente datada de 2007, informando que dita Autorização é o único procedimento ambiental necessário (isto porque estavam em vigor a Lei Estadual 7.799/2001 e o Decreto 7.967/2001 -alterado pelo Decreto 8.398/2002-, que isentava de licença ambiental as linhas de transmissão com tensões inferiores a 230 KV).
Necessário se faz realizar um passeio pela legislação ambiental vigente à época da expedição da retro mencionada declaração (2007).
O Decreto 7.967/2001 (alterado pelo Decreto 8.398/2002) regulamentou a Lei Estadual nº 7.799/01 (que institui a Política Estadual de Administração dos Recursos Ambientais e dá outras providências). Este Decreto assim dispôs:
Art. 180 - Dependerá de prévia autorização ou de licenciamento ambiental do órgão competente, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis, a localização, construção, instalação, ampliação, alteração e operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetivas ou potencialmente poluidoras, bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental.
§ 1º - São passíveis de licença ou autorização ambiental as obras, serviços e atividades, agrupadas nas 07 (sete) divisões, relacionadas e codificadas no Anexo V deste Regulamento, como segue:
(...)
V - Divisão E: Serviços Grupo 33: Produção e Distribuição de Gás Natural Grupo 34: Geração e Transmissão de Energia Elétrica acima de 230 KV.
Em 10 de Outubro de 2008, foi publicado o Decreto Estadual 11.235/08, que regulamentou a Lei Estadual 10.431/06 e revogou o Decreto 8.398/02 (este dispensara de licenciamento as linhas com tensões inferiores a 230 KV). Este Decreto 11.235/08, em seu anexo III, enquadrou as obras de construção de linhas de distribuição de energia elétrica acima de 69 KV como passiveis de licenciamento ambiental. Vejamos:
Anexo III – Tipologia e Porte dos Empreendimentos e Atividades Sujeitos a Licença, Autorização ou Termo de Compromisso de Responsabilidade Ambiental.
Grupo E2: Geração, Transmissão E Distribuição de Energia Elétrica
E2.3 |
Construção de linhas de distribuição de energia elétrica com tensão > 69 KV |
Licença |
Extensão (Km) |
Micro < 15 Pequeno > 15 < 30 Médio > 30 < 80 Grande > 80 < 150 Excepcional > 150 |
Noutro giro, a regularidade do empreendimento em questão, sendo a área ocupada por matas secundárias em diversos estágios de regeneração, pressupõe a prévia obtenção de Autorização Para Supressão De Vegetação Secundária Em Estágio Médio Ou Avançado De Regeneração.
Como dito, suponhamos que o empreendedor apresentou uma Autorização Para Supressão emitida pelo órgão estadual, datada de 2007. Nesse período, bastava a emissão deste ato administrativo para que se pudesse, licitamente, suprimir aquele tipo de vegetação.
Sucede que, com a publicação do Decreto Federal 6.660/08, passou-se a exigir, além da Autorização de Supressão emitida pelo órgão estadual, a obtenção de anuência prévia por parte do IBAMA. Cumpre trazer a baila o teor do art. 14, da Lei 11.428/06:
Art. 14. A supressão de vegetação primária e secundária no estágio avançado de regeneração somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública, sendo que a vegetação secundária em estágio médio de regeneração poderá ser suprimida nos casos de utilidade pública e interesse social, em todos os casos devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, ressalvado o disposto no inciso I do art. 30 e nos §§ 1o e 2o do art. 31 desta Lei.
§ 1o A supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2o deste artigo.
§ 2o A supressão de vegetação no estágio médio de regeneração situada em área urbana dependerá de autorização do órgão ambiental municipal competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente, com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.
O Decreto Federal 6.660/08, regulamentando a Lei 11.428/06, estabeleceu, em seu art. 19, os casos em que seria cabível a anuência prévia do IBAMA, a saber:
Art. 19. Além da autorização do órgão ambiental competente, prevista no art. 14 da Lei nc 11.428, de 2006, será necessária a anuência prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, de que trata o § 1c do referido artigo, somente quando a supressão de vegetação primária ou secundária em estágio médio ou avançado de regeneração ultrapassar os limites a seguir estabelecidos:
I - cinqüenta hectares por empreendimento, isolada ou cumulativamente; ou
II - três hectares por empreendimento, isolada ou cumulativamente, quando localizada em área urbana ou região metropolitana.
§ 1c A anuência prévia de que trata o caput é de competência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes quando se tratar de supressão, corte ou exploração de vegetação localizada nas unidades de conservação instituídas pela União onde tais atividades sejam admitidas.
Diante do panorama suso descrito, quadra responder aos seguintes questionamentos:
a- O advento do Decreto Estadual nº 11.235/08 e da Resolução CEPRAM 3.925/09 torna inviável a instalação do empreendimento sem a prévia realização de licenciamento ambiental, mesmo possuindo o empreendedor declaração do órgão estadual, datada de 2007, de que a Autorização de Supressão era o único procedimento ambiental necessário?
b- Sendo a área ocupada por mata secundária em estágio médio ou avançado de regeneração superior a 50 hectares, o advento do Decreto Federal 6.660/08 (que passou a exigir a anuência prévia do IBAMA para a supressão de vegetação secundária em estágio médio ou avançado de regeneração nos empreendimentos superiores a 50 ha) ensejou a perda da validade da Autorização Para Supressão concedida em 2007 – sem anuência do IBAMA – e ainda não executada?
2- Conclusão
Inicialmente, será abordado o segundo questionamento.
A “Autorização Para Supressão De Vegetação Secundária Em Estágio Médio Ou Avançado de Regeneração”, no caso sub examine, passou a exigir, com a publicação do Decreto Federal 6.660/08, a obtenção de anuência prévia por parte do IBAMA.
O Decreto Federal 6.660/08, regulamentando a Lei 11.428/06, estabeleceu, em seu art. 19, os casos em que seria cabível a anuência prévia do IBAMA. Entre eles, previu a situação em a supressão de vegetação secundária em estágio médio ou avançado de regeneração ultrapassa o limite de cinquenta hectares por empreendimento.
À época em que foi emitida a “Autorização para Supressão de Vegetação” apresentada pelo empreendedor (2007), ainda não tinha sido publicado o citado Decreto 6.660/08, o que só veio a ocorrer em 21 de novembro de 2008.
Ocorre que, até o presente momento, ainda não teria sido iniciada a instalação da linha de distribuição de energia elétrica. Neste diapasão, a legislação ambiental atualmente em vigor exige a anuência prévia do IBAMA para fins de implantação do referido empreendimento.
A questão, portanto, exige saber: a publicação de um diploma legal que passa a exigir um novo requisito para o deferimento de “Autorização de Supressão de Vegetação em Estágio Médio e Avançado de Regeneração” torna ilegítima uma Autorização expedida em momento no qual tal requisito não era exigível?
O entendimento majoritário preconiza que sim, mormente diante da constatação que o advento do Decreto 6.660/08 precedeu o início da instalação do empreendimento.
No direito ambiental, vigem os princípios da precaução e prevenção. Pelo primeiro, quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Pelo último, aponta-se a necessidade de prever, prevenir e evitar, na origem, as transformações prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente.
A conjugação de ambos os postulados fez com que o Decreto 6.660/08 passasse a exigir a anuência prévia do IBAMA para fins de supressão de vegetação secundária em estágios avançado e médio de regeneração nos empreendimentos superiores a 50 hectares.
Os princípios da precaução e da prevenção devem ser observados não somente pelo legislador, mas também pelos Poderes Judiciário e Executivo. Neste diapasão, o Poder Executivo, regulamentando a Lei 11.428/06, editou o Decreto 6.660/08, que, para a hipótese em apreço, estatuiu a obrigatoriedade de preexistência de anuência da autarquia ambiental federal.
Outrossim, a resposta à indagação formulada demanda a realização de uma ponderação entre postulados constitucionais. De um lado, milita, aparentemente, o princípio da segurança jurídica (asseverando a validade de um ato realizado com base na legislação aplicável à época), do outro estão o princípio da legalidade, da efetiva preservação ambiental (de forma que, em se tratando de matéria afeta ao meio ambiente, todas as exigências legais passam a ser imediatamente aplicáveis aos atos futuros e àqueles que, apesar de já expedidos, ainda não exauriram ou iniciaram a produção de seus efeitos).
Quando se disse, no parágrafo pretérito, “aparentemente, o princípio da segurança jurídica” pretendeu-se preconizar que este princípio, em verdade, não está sendo violado. Isto porque, para que violação existisse, deveria ter ocorrido situação bastante diversa: a autorização expedida e a realização da intervenção teriam que estar concluídas no momento da edição do Decreto 6.660/08! Porém, situação diversa se apresenta, ou seja, antes do início da intervenção do empreendedor, adveio a mudança na legislação ambiental, circunstância que tornou imperiosa a adequação da Autorização anteriormente deferida às novas exigências legais (anuência prévia do IBAMA).
O dispositivo constitucional abaixo transcrito corrobora o quanto afirmado nos dois últimos parágrafos. Vejamos:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Parágrafo 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
III- definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
Ressalte-se que, uma empresa que se predispõe a realizar um empreendimento deste porte, seguramente possui um eficiente corpo jurídico, o qual, pressupõe-se, teve plena ciência da atualização da legislação concernente às Autorizações Para Supressão de Vegetação em Estágios Avançado e Médio de Regeneração. Ademais, mesmo que assim não fosse, a alegação de desconhecimento da lei não escusa a prática da infração, nos termos da Lei de Introdução ao Código Civil.
Tudo que até aqui foi dito se aplica integralmente ao primeiro questionamento.
Com efeito, o Decreto Estadual 11.235/08, regulamentando a Lei Estadual 10.431/06, revogou o Decreto 8.398/02, que dispensava de licenciamento linhas com tensões inferiores a 230 kv. Assim, o empreendimento em questão passou a exigir a prévia realização de licenciamento ambiental.
Destarte, com fulcro em todas as considerações retro expendidas, tem-se que, para a regularidade do empreendimento, imperioso se faz que, antes do início da intervenção, o empreendedor obtenha o competente licenciamento ambiental e que a Autorização Para Supressão de Vegetação Secundária em Estágio Avançado e Médio de Regeneração passe a contar com a anuência prévia do IBAMA.
Do contrário, poderá ser autuado pelos órgãos ambientais das três esferas federativas (haja vista a competência comum em matéria de proteção e fiscalização do meio ambiente), sendo alvo de sanções como multa, embargo da obra ou empreendimento e obrigação de recuperar o dano ambiental causado. Poderá ser exigido, ainda, o pagamento de uma reparação a título de dano moral coletivo.
Procurador Federal lotado no IBAMA de Eunápolis - BA<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FUENTE, Rodolfo Ribeiro de la. Advento de lei nova passando a exigir novo requisito para o deferimento de autorização de supressão de vegetação: validade ou invalidade da autorização expedida sob a égide da legislação anterior e ainda pendente de execução? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2011, 08:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23415/advento-de-lei-nova-passando-a-exigir-novo-requisito-para-o-deferimento-de-autorizacao-de-supressao-de-vegetacao-validade-ou-invalidade-da-autorizacao-expedida-sob-a-egide-da-legislacao-anterior-e-ainda-pendente-de-execucao. Acesso em: 23 dez 2024.
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