1 – Problemática
As funções de agente autônomo de investimentos e administrador de carteiras de títulos e valores mobiliários são reguladas pela normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de acordo com a competência que lhe foi atribuída pela Lei 6.385/76[i].
Hodiernamente regulam tais funções as Instruções CVM nºs 434/2006[ii] – que dispõe sobre Agentes Autônomos – e 306/1999[iii], consolidada, – que dispõe sobre o Administrador de Carteiras.
No presente artigo a matéria central a ser explorada é a legalidade da existência de uma pessoa jurídica agente autônoma e outra jurídica administradora de carteiras no mesmo grupo empresarial de fato, ou seja, sem as formalidades do grupo empresarial de sociedades previsto na Lei 6.404/76[iv].
Sobre o tema transcreve-se de logo as disposições pertinentes constantes, respectivamente, das Instruções CVM nºs 306/1999 e 434/2006:
Art. 16. É vedado ao administrador de carteira:
...
IV – Promover negociações com os valores mobiliários das carteiras que administra, com a finalidade de gerar receitas de corretagem para si ou para terceiros;
Art. 16. É vedado ao agente autônomo de investimento:
...
IV – contratar com investidores a prestação de serviços de:
...
b) administração de carteira de títulos e valores mobiliários, salvo se o agente autônomo – pessoa natural, autorizada pela CVM também para exercer a atividade de administração de carteira, não estiver contratualmente vinculado, direta ou indiretamente, a entidades do sistema de distribuição de valores.
Das normas acima facilmente se percebe a finalidade de coibir operações sem fundamento econômico por parte do administrador de carteiras, proibindo a CVM que o administrador empreenda operações que tenham por fim apenas gerar receitas de corretagem, para si ou para terceiros.
Diante dessa realidade normativa muitos grupos empresariais do setor passam a questionar a legalidade de uma realidade fática largamente difundida no mercado, a atuação por parte do mesmo grupo em ambas as atividades, originando-se tal questionamento tanto por parte de grupos já assim estruturados anteriormente sem uma maior análise das normas, quanto por parte de grupos mais conservadores ou mesmo por novos players, que agora pretendem atuar em ambos os seguimentos do mercado de valores mobiliários.
Para os menos introduzidos no funcionamento do mercado, vale esclarecer que a negociação de valores mobiliários em mercados organizados, ou seja, bolsas de valores ou mercados de balcão, só é possivel através de corretoras devidamente autorizadas pela CVM e associadas ao mercado no qual pretenda o investidor negociar.
Ainda assim, informa-se que as corretoras podem captar clientela diretamente ou através de agentes autônomos, terceirizando a captação. Tais profissionais do mercado, então, são remunerados através da corretagem gerada em cada negócio intermediado pela corretora, havendo um contrato entre agente autônomo e corretora para regular a participação de cada um nas receitas de corretagem geradas pelos clientes captados pelo agentes. Ou seja, agentes e corretoras não são remunerados pelos lucros do investidor, mas pela simples intermediação dos negócios, ainda que resultem em prejuízos ao cliente.
De outra sorte, os administradores de carteiras de valores mobiliários são profissionais que gerem as finanças de investidores, recebendo remuneração normalmente atrelada ao beneficio econômico percebido pelo cliente com o serviço.
Ocorre que os administradores de carteiras, agindo em nome de seus clientes, devem socorrer-se dos serviços de uma corretora, com ou sem a intermediação de um agente autônomo, para negociar em mercados organizados, assim como qualquer outro interessado, de forma que a atuação dos administradores necessariamente gera receitas de corretagem para terceiros.
É nessa direção que a atuação do mesmo grupo empresarial nas funções de administrador de carterias e agente autônomo ou corretora pode gerar um conflito de interesses perigoso, pois o grupo pode orientar a atuação do administrador de carteiras de forma a gerar a maior receita de corretagem possível, mesmo que disso não resulte beneficios ao cliente vinculado ao administrador de carteiras, valendo esclarecer que atualmente todas essas funções podem ser exercidas por pessoas jurídicas.
No presente artigo, contudo, explora-se apenas a problemática no que concerne aos agentes autônomos, deixando de lado as corretoras, haja vista que a atividade das últimas é muito mais facilmente monitorada pelas autoridades do setor e pelos mercados organizados, enquanto que os agentes autônomos representam uma maior dificuldade de atuação para a fiscalização, seja pelo menor volume financeira que movimentam, seja pela vinculação quase que indireta que possuem com os mercados organizados, atuando sob as corretoras – o que faz as atenções regulatórias e fiscalizadoras recairem sobre as últimas.
2 – Desenvolvimento
Diante da possibilidade de conflito de interesses apresentada acima entendem alguns que o simples perigo abstrato da atuação do mesmo grupo empresarial em ambas as atividades torna-a ilegal, de forma que a atuação dupla seria contrária ao disposto nas Instruções Normativas pertinentes.
Contudo, ressalta-se a posição do Colegiado CVM sobre a interpretação correta de suas normas que limitam direitos, entendendo o órgão regulador que a interpretação deve ser restritiva, literal, não cabendo uma leitura extensiva com o fim de obstacular situações não expressamente vedadas pela norma, o que se verifica do seguinte julgado[v]:
Quanto ao termo manifestado pela SIN de que com a manutenção de ambos os registros surjam dificuldades para a fiscalização da eventual atuação irregular como administrador de carteira, não considero que essa razão seja suficiente para que se crie uma nova modalidade de extinção do registro, seja de administrador de carteira ou de agente autônomo. A administração pública não pode interpretar extensivamente as próprias regras, partindo do pressuposto de que serão fatalmente desobedecidas. Na verdade o entendimento da Superintendência, na medida em que não está amparado pelo texto do ato normativo, traria um ônus injustificado para o Recorrente.
Como se vê, no precedente citado concluiu o colegiado pela impossibilidade de interpretação extensiva das normas regulamentares expedidas pela CVM para restringir direitos, posicionando-se no sentido de que não é razoável ou legal entender-se que os operadores do mercado praticarão irregularidades, fatalmente desobedecendo os impedimentos legais. Tal conclusão é inclusive respaldada pelo princípio constitucional da legalidade, prescrito no artigo 5º[vi], segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude da lei”.
Assim, a interpretação das normas CVM que limitam direitos é restritiva, cabendo à fiscalização demonstrar e comprovar que no caso concreto os envolvidos utilizam-se da literalidade das normas para burlar seus fundamentos teleológicos, seus ideais.
Partindo dessa premissa é que se entende pela possibilidade de atuação do mesmo grupo em ambas as atividades, podendo um agente autônomo pessoa física ser sócio de uma pessoa jurídica administradora de carterias e outra pessoa jurídica agente autônoma ao mesmo tempo, nada impedindo tal vinculação societária.
Isto porque as normas em estudo proíbem duas situações específicas: I – a contratação de agente autônomo para prestação dos serviços de administrador de carteiras; e, II – operações do administrador de carteira que tenham por objetivo gerar receitas de corretagem.
Agentes autônomos pessoas físicas, responsáveis pela interação entre uma corretora e uma agente autônoma pessoa jurídica, no entendimento sustentado, podem participar como sócios de pessoa jurídica que exerce a atividade de administração de carteiras, desde que deixem de participar das atividades operacionais da sociedade administradora, que deverão ser exercidas apenas pelo administrador de carteiras devidamente autorizado pela CVM, seja ele sócio ou não.
Nesse caso não haverá a prestação do serviço de administração de carteiras por parte dos agentes autônomos, mas apenas a participação societária dos mesmos em uma sociedade com esse objeto.
Salienta-se, por oportuno, que o direito societário brasileiro (i) distingue administradores e sócios, atribuindo diferentes competências para cada uma das posições; bem como, (ii) distingue a pessoa dos sócios da pessoa jurídica, no que concerne aos tipos societários normalmente utilizáveis para a formação de sociedades que tenham por objeto as atividades em debate, devendo tal realidade normativa ser levada em consideração para concluir-se que na condição de meros sociós os agentes autônomos não estarão prestando o serviço de administração de carteiras. Contrariar esta realidade legalmente imposta seria o mesmo que ignorar toda a evolução histórica do direito societário brasileiro.
Com efeito, é possível a participação societária dos agentes autônomos pessoas físicas em pessoa jurídica administradora de carteiras, desde que a operação dessa última seja exercida exclusivamente por pessoa autorizada pela CVM, que não tenha qualquer atuação como agente autônomo e exerça a administração com autonomia, sem influência dos demais sócios e com a devida segregação das atividades dentro do grupo.
Os sócios agentes autônomos, no caso, deverão manter uma recomendável distância das decisões do administrador, não tendo ingerência sobre suas operações, cabendo-lhes apenas deliberar, em reunião ou assembléia de sócios, acerca de matérias exclusivamente societárias, que não poderão ter por objeto atividades operacionais.
Ademais, nessa situação deve o administrador tomar ainda mais cuidado para não praticar atos que tenham por fim gerar receitas à sociedade agente autônoma, nem mesmo praticando atos em que essa interpretação seja possível, ainda que não tenham essa finalidade. No caso de operações passíveis de interpretação negativa, aconselha-se, inclusive, sejam empreendidas por outros intermediários, totalmente desvinculados.
Neste diapasão, vale transcrever julgado do Colegiado CVM[vii] em que o órgão decidiu sobre a questão inversa, muito mais temerária, em que o próprio administrador de carteiras tornou-se sócio minoritário de pessoa jurídica agente autônoma:
A SIN afirma que a participação de um administrador de carteira como sócio minoritário de agente autônomo pessoa jurídica conflitaria com a regra de segregação de atividades da Instrução 306, e com a própria regra da Instrução 434 que, no art. 16, IV, veda a atuação simultânea como administrador e agente autônomo. Tal conflito de normas inexiste, a meu ver, exatamente porque o sócio minoritário do agente autônomo pessoa jurídica não pode exercer qualquer atividade na sociedade. A regra que existe atualmente impõe a segregação de atividades, mas não a de benefícios. O administrador de carteira responsável pela administração vinculada a um conglomerado pode, atualmente, ser sócio da corretora, do banco de investimento, do banco comercial ou da holding do conglomerado, desde que ali não exerça atividades. Apenas por nova regra – e naturalmente com profunda investigação prévia dos modelos internacionais e custos da medida – se poderia passar a impor essa segregação de benefícios. Assim, meu voto é no sentido de responder à consulta pela afirmação da possibilidade de um administrador de carteira registrado na CVM, responsável ou não por pessoa jurídica, ser sócio minoritário de agente autônomo pessoa jurídica, nos termos e com as restrições do parágrafo primeiro do art. 8º, da instrução 434/06.
Portanto, não só os agentes autônomos pessoas físicas podem participar de sociedade com o objeto de administração de carteiras, como um administrador de carteiras ativo pode participar de uma pessoa jurídica agente autônoma de investimentos, o que possibilita ao mesmo grupo empresarial atuar em ambas as atividades.
3 – Conclusões
Ante o exposto acima, verifica-se, pela interpretação literal das Instruções Normativas expedidas pela CVM sobre o assunto, como a própria autoridade reguladora recomenda seja feita a interpretação de suas normas, a possibilidade de atuação do mesmo grupo empresarial em ambas as atividades, sendo incorreto afirmar que o mero perigo abstrato de abuso de poder impede tal configuração empresarial.
Contudo, nesses grupos a segregação da atividade de administração de carteiras disposta no artigo 15 da Instrução 306 deve ser ainda mais rigorosa, cabendo aos envolvidos providenciar uma segregação ostensiva e vigilante.
O mais aconselhável, neste sentido, é uma separação física, mas não sendo possível deve-se manter uma segregação total de arquivos, mantendo os documentos do administrador de carteira em local de acesso restrito. Quanto aos eventuais equipamentos e instalações de uso comum aconselha-se seja preparado um regulamento simples, em que conste por escrito uma definição clara e precisa das práticas que assegurem o uso comum com a devida segregação de informações.
Ademais, de maneira alguma poderão ser realizadas operações na sociedade de administração de carteiras que tenham como fim gerar receitas para a sociedade agente autônoma de investimentos, devendo o administrador ter ainda mais cuidado em suas operações, para que de nenhuma forma uma operação sua possa assim ser interpretada, mesmo que em verdade não tenha essa finalidade.
[i] BRASIL. Lei n. 6.385, 07 de dezembro de 1976. Dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 09 dez. 1976. p. 1637.
[ii] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução CVM nº 434, 22 de junho de 2006. Dispõe sobre a atividade de agente autônomo de investimento e revoga as Instruções CVM nºs 355, de 1º de agosto de 2001, e 366, de 29 de maio de 2002. Disponível em http://www.cvm.gov.br/asp/cvmwww/atos/exiato.asp?File=%5Cinst%5Cinst434.htm. Acessado em 07 de fev. de 2011.
[iii] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução CVM nº 306, 05 de maio de 1999. Dispõe sobre a administração de carteira de valores mobiliários e revoga as Instruções CVM nºs 82, de 19 de setembro de 1988; 94, de 4 de janeiro de 1989 e 231, de 16 de janeiro de 1995. Disponível em http://www.cvm.gov.br/asp/cvmwww/atos/exiato.asp?File=%5Cinst%5Cinst306.htm. Acessado em 07 de fev. de 2011.
[iv] BRASIL. Lei n. 6.404,15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 dez. 1976. Seção 1, p. 21.
[v] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Recurso contra decisão da SIN. Processo CVM Nº RJ 2006/8820, Reg. Col. 5350/2006. 30 de janeiro de 2007. Diretora-Relatora Maria Helena Santana. Disponível em http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=5350-0.HTM. Acessado em 07 de fev. de 2011.
[vi] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988.
[vii] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Trata-se de consulta da Superintendência de Relações com Investidores Institucionais – SIN (fls. 01) a respeito da possibilidade de administradores de carteira integrarem o quadro societário de pessoas jurídicas constituídas para o exercício da atividade de agente autônomo de investimentos, nos termos da Instrução 434, de 22.06.2006. Processo Administrativo nº RJ 2006/9208, Reg. Nº 5359/2006. Consulta SIN. 09 de janeiro de 2007. Relator-Presidente Marcelo Fernandez Trindade, Disponível em http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=5359-0.HTM. Acessado em 07 de fev. de 2011.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e Mestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Bruno Caraciolo Ferreira. Agente autônomo de investimentos pessoa jurídica e administrador de carteiras de títulos e valores mobiliários pessoa jurídica no mesmo grupo empresarial: interpretação das Instruções Normativas da CVM Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 fev 2011, 07:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23460/agente-autonomo-de-investimentos-pessoa-juridica-e-administrador-de-carteiras-de-titulos-e-valores-mobiliarios-pessoa-juridica-no-mesmo-grupo-empresarial-interpretacao-das-instrucoes-normativas-da-cvm. Acesso em: 23 dez 2024.
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