SUMÁRIO: 1 – EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR 1.1 - Evolução do direito do consumidor no mundo; 1.2 - Evolução do direito do consumidor no Brasil 2 – A INFLUÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NO SISTEMA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 3 - O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO NORMA PRINCIPIOLÓGICA DE ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL 4 – A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL 4.1. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de consumo 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RESUMO
O presente artigo tem o condão de abordar a Teoria Geral da Relação Jurídica de Consumo, tema importante e intrincado, que tem sido importante objeto de investigação nos últimos tempos. Apesar de o direito do consumidor ter sido um ramo introduzido nos currículos das faculdades de direito do Brasil apenas após a Constituição de 1988, a proteção do consumidor e dos hipossuficientes ocorreu no nosso país desde as Ordenações do Reino. Para compreender as tendências deste Direito Protetivo apontadas na contemporaneidade, torna-se necessário traçar um panorama histórico e ideológico da proteção do sujeito de direito, o consumidor, e da relação jurídica a qual ele participa. O objetivo deste texto não será esgotar o tema, mas sim determinar a ocorrência, ou não, de alterações na visão da proteção ao Consumidor na pós-modernidade, a partir de um paralelo entre os aspectos principiológicos, sociológicos e formais que fundamentam a matéria na sua história. Além disso, tem-se a pretensão de demonstrar a eficácia horizontal deste direito fundamental na relação privada e da importância do mecanismo na defesa do cidadão, no atual Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS CHAVE: RELAÇÃO JURÍDICA CONSUMO; EFICÁCIA HORIZONTAL; DIREITOS FUNDAMENTAIS; RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE PARTICULARES
1 – EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
1.1 - EVOLUÇAO DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO MUNDO
Remontar as origens históricas de nosso Direito do Consumidor é imprescindível para a exata compreensão dos contornos juscivilísticos da contemporaneidade.
A origem do consumidor é atribuída aos EUA, já que foi o país que primeiro dominou o capitalismo e sofreu a conseqüência do marketing agressivo da produção, da comercialização e do consumo em massa. Pode-se dizer que os primeiros movimentos consumeristas de que se tem notícia ocorreram no final do séc. XIX.
Em 1872 foi editada a Lei Sherman Anti Trust, com a finalidade de reprimir as fraudes praticadas no comércio, além de proibir práticas desleais, tais como: combinação de preço e o monopólio.
Contudo, há contornos de aplicação da proteção do consumidor desde o código de Hamurabi, bem como nas jurisprudências e nos costumes de vários países. Havia no Hamurabi uma disposição que dizia que o construtor de barcos era obrigado a refazê-lo no caso de defeito estrutural, já se observa que havia certa preocupação em proteger as relações de compra e venda da época.
Outro exemplo é a lei 233 rezava que o arquiteto que viesse a construir uma casa cujas paredes de revelassem deficientes, teria a obrigação de reconstruí-las ou consolida-las às suas próprias expensas. Extremas, seriam as conseqüências de desabamentos com vítimas fatais: o empreiteiro da obra, além de ser obrigado a reparar os danos causados ao empreitado, sofria punição (morte) caso houvesse o desabamento vitimado o chefe de família; caso morresse o filho do dono da obra, pena de morte para o respectivo parente do empreiteiro, e assim por diante.
Na Índia, no século XII a.C., o sagrado Código de Massú previa multa e punição, além de ressarcimento dos danos, àqueles que adulterassem gêneros – “lei” 697 – ou entregassem coisa de espécie inferior àquela acertada, ou vendessem bens de igual natureza por preços diferentes – “lei” 698.
A França de Luiz XI, ano de 1481, punia com banho escaldante aquele que vendesse manteiga com pedra para aumentar o peso ou misturasse água no leite.
Percebe-se que as punições eram severas quando o direito do consumidor, ainda não reconhecido como tal, fosse desrespeitado.
No ano de 1773 aconteceu o episódio contra o imposto do chá, reação dos consumidores contra os produtores do chá inglês.
Porém, somente em 1914 criou-se a nos EUA Federal Trade Comission, que tinha o objetivo de aplicar a lei antitruste e proteger os interesses do consumidor.
Assim, apesar de ter encontrado apariçoes de proteçao ao consumidor em legislaçoes muito antigas, pode-se afirmar que o sujeito do direito, consumidor, foi reconhecido pelo direito não faz muito tempo.
Importa esclarecer que a proteção do consumidor fora mencionada nos estudos de sociologia do fim do sec XIX de Max Weber e Karl Marx, mas surgiu fortemente nos anos 60-70 do século XX.
As duas grandes guerras contribuíram para o surgimento da sociedade de consumo, haja vista que o desenvolvimento industrial fluía a todo vapor, necessitando de consumidores para despejar seus mais diversos produtos. Era o capitalismo que chegava para ficar, liderada pela mais nova grande potência, que se firmavam os Estados Unidos.
Essa nova conjuntura influenciou sensivelmente as características contratuais. Os contratos paritários, frutos de acordos de vontade, discutidos cláusula a cláusula, tornaram-se menos freqüentes, e chegavam com toda força na sociedade massificada, os contratos de adesão, formulados pela empresas e impostos aos consumidores, continham conteúdo padrão, não dando alternativas, se não em comungar com o que lhe foi imposto.
O modelo de produção em série, o fordismo, desenvolvido para atender a demanda crescente após a Segunda Grande Guerra foi o precursor da contratação em massa. Ou seja, quando uma empresa desenvolvia um produto e depois o reproduzia milhares de vezes, fazia o mesmo com os contratos. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Todavia, o conteúdo do contrato sempre trazia mais vantagens à parte que o propôs e dessa forma, estava instalada a desigualdade entre as partes contratuais.
Um marco histórico importante para o reconhecimento do consumidor como sujeito de direitos ocorreu em 1962, quando o presidente norte-americano John Kennedy, em um discurso, enumerou os direitos do consumidor e os considerou como um desafio necessário para o mercado. Pode-se afirmar que a partir daí iniciou-se uma reflexão profunda sobre o tema. O Presidente mencionou que em algum momento de nossas vidas “todos somos consumidores”. Kennedy localizou os aspectos mais importantes na questão da proteção ao consumidor, afirmando que os bens e serviços deviam ser seguros para uso e vendidos a preços justos.
Neste contexto, no dia 05 de março de 1962, Kennedy citou quatro direitos fundamentais ao consumidor, que tiveram repercussão no mundo todo. Inclusive, a importância deste fato, fez com que o Congresso Americano definisse este dia como Dia Mundial dos Direitos Consumidor. Foram mencionados os direitos: 1 – DIREITO À SAÚDE E À SEGURANÇA, relacionado à comercialização de produtos perigosos ä saúde e a vida; 2 – DIREITO À INFORMAÇAO, compreendido à propaganda e à necessidade de o consumidor ter informações sobre o produto para garantir uma boa compra; 3 – DIREITO À ESCOLHA, referindo-se aos monopólios e às leis antitrustes, incentivando a concorrência e a competitividade entre os fornecedores; 4 – DIREITO A SER OUVIDO, visando que o interesse dos consumidores fosse considerado no momento de elaboração das políticas governamentais.
De toda sorte, em 1973, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, na 29ª Sessão em Genebra, reconheceu os direitos fundamentais do consumidor e consolidou a noção de que o direito do consumidor seria um direito humano de nova geração, um direito social econômico, direito de igualdade material do mais fraco, do cidadão civil nas suas relações privadas frente aos fornecedores de produtos e serviços.
Finalmente em 1985, a Assembléia Geral da ONU editou a resolução n. 39/248 de 10/04/1985 sobre a proteção ao consumidor, positivando o princípio da vulnerabilidade no plano internacional. As diretrizes constituíam um modelo abrangente, descrevendo oito áreas de atuação para os Estados, a fim de prover proteção ao consumidor. Entre elas: a) proteção dos consumidores diante dos riscos para sua saúde e segurança, b) promoção e proteção dos interesses econômicos dos consumidores, c) acesso dos consumidores à informação adequada, d) educação do consumidor, e) possibilidade de compensação em caso de danos, f) liberdade de formar grupos e outras organizações de consumidores e a oportunidade de apresentar suas visões nos processos decisórios que as afetem. Estas diretrizes forneceram importante conjunto de objetivos internacionalmente reconhecidos, destinados aos países em desenvolvimento, a fim de ajudá-los a estruturar e fortalecer suas políticas de proteção ao consumidor.
Daí, vários países passaram a abordar a questão da proteção do consumidor na jurisdição interna, adaptando ou elaborando legislação própria e o processo de tutela do consumidor desenvolveu-se paralelamente à abertura de mercados. Como conseqüência, o estabelecimento de medidas protecionistas levou os países a produzir produtos de maior qualidade e de maior aceitação internacional, protegendo o mercado interno de produtos estrangeiros não preparados para esta competição.
1.2 - EVOLUÇAO DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL
Com relação ao Brasil, desde os tempos do império, já se observava uma proteção discreta do consumidor e, para esboçar um breve histórico da civilística brasileira, parece-nos impossível dissociá-lo da história do Direito Português, em um primeiro momento, e do Direito Europeu, como um todo, em um segundo momento. Neste sentido, Giordano Bruno Soares Roberto expõe:
Não é possível compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar para sua história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das caravelas portuguesas em 1500. A história é mais antiga. O Direito brasileiro é filho do Direito Português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo. (ROBERTO, 2003, p. 5)
Sabe-se que o direito brasileiro se resumia ao que era posto pelas Ordenações do Reino de Portugal, durante todo o período de colonização. Em outras palavras, nossos direitos civis não passavam de simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.
As Ordenações Filipinas, publicadas no ano de 1603, vigeram desde o início do século XVII até a proclamação da independência brasileira em 1822, regendo o ordenamento jurídico privado no Brasil por mais de 300 anos. Tratava-se de uma compilação jurídica marcada pelas influências do Direito Romano, Canônico e Germânico, que juntos constituíam os elementos fundantes do Direito Português. E como não poderia deixar de ser, influenciaram a legislação brasileira com o seu tom patriarcalista e patrimonialista.
Uma vez proclamada à independência do Brasil, uma lei editada em outubro de 1823 determinou a manutenção das Ordenações Filipinas em nossas terras, bem como demais formas normativas emanadas dos imperadores portugueses que vigoravam até a data de 26 de abril de 1821.
No Livro V das Ordenações Filipinas já foi possível encontrar uma norma de proteção, ainda que indireta, do consumidor. No título LVII diz que “se alguma pessoa falsificar alguma mercadoria, assim com cera, ou outra qualquer, se a falsidade, que nisso fizer, valer hum marco de prata, morra por isso”. Percebe-se que a coação psicológica sobre o fornecedor acabava por proteger o consumidor.
Outro exemplo presente nas Ordenações Filipinas - Livro IV - de proteção ao Consumidor:
Título XIII
Do que quer desfazer a venda, por ser enganado em mais da metade do justo preço (2).
Posto que o contrato da compra e venda de coisa móvel, ou de raiz seja de todo perfeito, e a coisa entregue ao comprador, e o preço pago ao vendedor se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço (3), pode desfazer a venda por bem do dito engano, ainda que o engano não procedesse do comprador, mas somente se causasse da simplicidade do vendedor.
Pode-se comparar esta norma das Ordenações com os seguintes artigos do nosso Ordenamento jurídico atual:
CDC - ART. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
§ 1º - Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III - mostram-se excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
CC/02 - Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz;
O curioso era que as Ordenações do Reino tratavam como hipossuficientes: o menor, as mulheres e discretamente o consumidor. A mulher já se encontrava protegida no caso de fiança, contudo, tal proteção se dava pelo motivo de serem consideradas as mulheres “fracas de entendimento”, e, neste aspecto, é inegável que a legislação evoluiu ao equiparar homens e mulheres, garantindo-lhes situação política e social idêntica. Contudo, vale o exemplo sobre a preocupação do Estado com os hipossuficientes.
Título LXI
Do benefício do Senatus consulto Velleano (1), introduziu em favor das mulheres que ficam por fiadoras de outrem.
Por Direito é ordenado (2), havendo respeito à fraqueza do entender das mulheres, que não pudessem fiar, nem obrigar-se por outra pessoa alguma, e em caso que o fizessem fossem relevadas de tal obrigação por um remédio (3) chamado em Direito Velleano; o qual foi especialmente introduzido em seu favor, por não serem danificadas obrigando-se pelos feitos alheios (1) [...]
Somente em 1917, surgiu o primeiro Código Civil Brasileiro e as Ordenações do Reino deixaram de ser aplicadas na doutrina civilista. De autoria do jovem Clóvis Bevilácqua, o código civil foi fundado dentro de uma filosofia marcada pelo liberalismo político e econômico, apresentando característica nitidamente patrimonialista.
Todavia, a preocupação com as relações de consumo surgiu no Brasil a partir das décadas de 40 e 60, quando foram criadas diversas leis regulando aspectos de consumo. Dentre essas leis pode-se citar a Lei n.º 1221/51, lei de economia popular, a Lei Delegada n.º 4/62, a Constituição de 1967, com a emenda n.º 1 de 1969 que citam a defesa do consumidor.
A partir do seu surgimento nos Estados Unidos, o direito do consumidor ainda levou algum tempo para chegar ao Brasil. Este direito tutelar foi introduzido com a Constituição Federal de 1988, que reconheceu um novo sujeito de direitos, o consumidor, individual e coletivo, assegurando sua proteção tanto como direito fundamental, no art. 5º, XXXII[1], como princípio da ordem econômica nacional no art. 170, V, da CF/88[2].
Finalmente, em 1990, o Congresso Nacional conforme orientação de nossa Carta Magna, elaborou a Lei 8.078 de 11/09/1990 de proteção ao consumidor, criando o Código de Defesa do Consumidor. Por tratar-se de verdadeiro “microssistema jurídico”, já que, nele, encontram-se normas de direito penal, civil, constitucional, processuais penais, civis e administrativas, com caráter de ordem pública, e por constituir legislação extremamente avançada, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor influenciou as legislações dos outros países do Mercosul.
A proteção do consumidor, então, é um direito fundamental já declarado pela ONU, positivado em nossa Constituição e reconhecido pelos países-membros do Mercosul.
2 – A INFLUÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NO SISTEMA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Claudia Lima Marques, após comparação de legislações do mundo e as suas funções nos ensina que o Código Civil Francês de 1804 influenciou muito a legislação brasileira. Todavia, como já dito, o Código Civil de 1916 e todo ordenamento privado sofreu influências das codificações portuguesas, espanhola, italiana, assim como da Alemanha e da Suíça.
Os autores alemães alegam que a família romana de direitos, na qual o Brasil se insere, tendo em vista a origem do direito romano e da influência dos colonizadores Portugueses
Sabe-se que o direito civil português vigorou no Brasil do descobrimento até 1917, quando começou a vigorar o código civil de 1916, e teve decisiva influência de continuidade, patrimonialismo, formalismo e unidade no nosso sistema jurídico. Contudo, após a República o direito brasileiro começou a sofrer influência do direito norte-americano.
Na família romano-germânica (França, Alemanha, Itália, Portugal Espanha, dentre outras) a proteção dos consumidores nas relações contratuais resultou de jurisprudências que concretizavam as clausulas gerais da boa-fé nas relações jurídicas massificadas do séc. XX.
No Brasil, porém, a evolução foi diferente muito mais lenta, haja vista que o código de 1916 não trazia a clausula geral de boa-fé expressa, apenas estava presente a boa-fé interpretativa no código comercial de 1950, o que inibia a sua aplicação pelos juízes.
Ministro Ruy Rosado de Aguiar justifica que o nosso direito permaneceu formalista e positivista durante os séculos XIX e XX, o princípio pacta sunt servanda permanecia fortemente arraigado e preso ainda ao dogma liberal da vontade, e neste contexto, o jurista brasileiro não desenvolveu suficientemente o princípio da boa-fé.
Cláudia Lima Marques alega que o direito privado brasileiro caracterizou-se até os anos 70 por uma forte defesa da manutenção do individualismo e do liberalismo do CC/16, o que o fez distanciar-se da realidade de uma sociedade massificada e de grandes desigualdades entre os sujeitos de direito privado.
Foi em 1985 que se criou no Brasil o CNDC - Conselho Nacional de Defesa do Consumidor junto ao Ministério da justiça que reuniu um grupo de pessoas especialistas para serem os autores do Anteprojeto do CDC, dentre eles: Ada Pellegrini Grinover; Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamín; José Geraldo Brito Filomeno; Zelmo Denari; Nelson Nery; Kazuo Watanabe; Leonardo Roscoe Bessa. Mas, foi somente em 1988, que o Brasil reconheceu o consumidor como sujeito vulnerável, protegido pelo direito.
Ada Peregrini declara que a inspiração do CDC viera de modelos legislativos estrangeiros da Itália, França, Bélgica, Estados Unidos, Espanha Alemanha e México, tendo sido a principal fonte o Código Francês. Os autores aproveitaram a sua formação internacional do direito.
Por fim, Cláudia Lima Marques chama o CDC de uma obra comparatista, atualizada para o sec XXI e que tal lei é modelo na América Latina.
3 - O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO NORMA PRINCIPIOLÓGICA DE ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL
A origem da codificação protetiva no Brasil se deu através da efetivação do mandamento constitucional previsto no art. 48 do Ato das Disposições transitórias[3], para que o legislador ordinário estabelesse um Código de Defesa e Proteção do Consumidor, o que aconteceu em 1990, pela Lei 8.078/90.
Tal norma especial, lei ordinária, nasceu da constatação da desigualdade de posição e de direitos entre o consumidor e o fornecedor, fundamentado na proteção da dignidade humana.
Cláudia Lima Marques declara que:
“o direito do consumidor visa cumprir um Triplo Mandamento constitucional:
1) promover a defesa dos consumidores;
2) de observar e assegurar como princípio geral e imperativo da atividade econômica, a necessária defesa do sujeito de direitos , o consumidor;
3) de sistematizar a tutela especial infraconstitucional através de uma microcodificação”. (MARQUES, 2008, p.21)
Bruno Miragem ensina que o consumidor, sujeito de direito com status constitucional, teria os seus direitos protegidos de forma preferencial em relação a outros direitos de matriz infraconstitucional e resume: “O direito do consumidor, enquanto direito subjetivo caracteriza-se ontologicamente como direito humano fundamental”. (MIRAGEM, 2007, p. 111)
Claudia Lima Marques classifica o direito do consumidor como disciplina transversal entre o direito privado e público, que visa proteger um sujeito de direitos, o consumidor, em todas as suas relações jurídicas frente ao fornecedor. Isso porque há normas nele normas de direito público e privado. (MARQUES, 2008)
Importa dizer que, no Brasil hoje, a Constituição Federal de 1988 serve de centro valorativo e normativo de todo o sistema jurídico, também do direito privado, transformando o direito privado brasileiro em constitucional, limitado e consubstanciado pelos direitos fundamentais. Quer se dizer que o Direito Privado atual deve ser interpretado conforme a Constituição e seus valores, o que nos leva a discordar da afirmação de Cláudia Lima Marques sobre a natureza transversal do direito do consumidor.
Muitos doutrinadores entendem que, desde 1988, tem-se no Brasil um novo direito privado permeado pela função social e tripartide, composto pelo direito civil, pelo direito de empresa e pelo direito do consumidor.
Neste contexto, pode-se afirmar que normas que compõem o direito do consumidor são de direito privado, mas não são disponíveis, pois são de ordem pública e interesse social, conforme dita o art. 1º do CDC. Consideradas normas cogentes, imperativas que nao toleram renúncia por convenções, nao podendo ser afastadas por disposição particular.
Além disso, as normas do CDC são consideradas principiológicas, no sentido de veicular valores e fins a serem alcançados. O CDC é permeado de normas que estabelecem fins, ultrapassa-se a técnica tradicional do binômio Hipótese/sanção, para vincular normas descritivas de valores.
Gustavo Tepedino afirma que o CDC, o ECA e o Estatuto da cidade são exemplos de diplomas jurídicos que contém normas que nao prevêm relação de imputação com causas e efeitos, prevêem apenas valores a serem protegidos. Observa a ampla utilização da técnica de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados associado a normas descritivas de valores. (TEPEDINO, 2004)
O STJ, recentemente, frisou: “As normas de proteçao e defesa do consumidor têm indole de ordem pública e interesse social. Sao, portanto, indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão. (STJ, Resp 586, Rel. Min Herman Benjamim, 2t, DJ 19/03/2010).
Assim, o que ocorre seria uma interdisciplinariedade da função tutelar do direito do consumidor, já que o CDC reúne em seu corpo, normas de direito público (direito administrativo, penal, processual civil) e de direito privado para proteger o consumidor em suas relações de natureza privada com os fornecedores de bens e serviços.
Portanto, conclui-se que as normas de proteção ao consumidor são de direito privado não porque suas normas sejam todas de direito privado – ao contrário – mas, sim, porque o seu objeto de tutela é o sujeito de direito privado, o consumidor, agente privado diferenciado, vulnerável e complexo.
4 - A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL E PRINCÍPIO DA ORDEM ECONÔMICA
Como já visto, a defesa do consumidor tem origem constitucional nos arts. 5, XXXII e 170 da Constituição Brasileira, o que significa compatibilizar a proteção do consumidor como direito fundamental com os princípios da ordem econômica. Por meio do artigo, 170, V, deve-se garantir a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos através da implementação de uma política de nacional de consumo.
A defesa do consumidor como princípio geral da atividade econômica está emparelhada e atua lado a lado, do com outros princípios basilares para o modelo político-econômico brasileiro, como o da soberania nacional, da livre concorrência, dentre outros. Como principio, tem o condão de controlar as normas que procuram afastar a tutela protetiva. Observa-se aqui, que se ocorrerem situações práticas de colisão de princípios gerais da ordem econômica, entre si, devem ser resolvidas pelo recurso da ponderação de interesses em matéria constitucional.
O interessante é notar que para Ruy Rosado de Aguiar Jr., o princípio da boa-fé seria o critério auxiliar para a viabilização dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica. O Ministro defende que utilizando a ponderação de interesses a luz da boa-fé, da natureza da operação econômica envolvida e o custo social desta operação, a solução poderá não ser necessariamente a mais favorável ao consumidor. As palavras do ministro:
(...) a boa-fé não serve tão-só para a defesa do débil, mas também atua como fundamento para orientar interpretação garantidora da ordem econômica, compatibilizando interesses contraditórios, onde eventualmente poderá prevalecer o interesse contrário ao consumidor, ainda que a sacrifício deste, se o interesse social prevalente assim o determinar. Considerando dois parâmetros de avaliação: a natureza da operação econômica pretendida e o custo social decorrente desta operação, a solução recomendada pela boa-fé poderá não ser favorável ao consumidor. (AGUIAR, 1995, P. 21)
Neste sentido, pode-se afirmar que o principio geral da atividade econômica de defesa do consumidor impõe a realização de uma política pública com dupla eficácia: a positiva determina que os poderes públicos tenham o dever de desenvolver o programa constitucional, por meio de ação coordenada; a negativa quer impedir que o legislador ou a Administração Pública edite normas conflitantes com o objetivo do programa constitucional de proteção do consumidor.
Já que defesa do consumidor também é um direito fundamental, oportuno se faz neste momento definir o que seriam esses direitos: Bonavides acredita que os direitos fundamentais “são os do homem que as Constituições positivaram”, recebendo nível mais elevado de garantias ou segurança, pois, cada Estado, tem seus direitos fundamentais específicos. Entretanto, o autor acrescenta que os direitos fundamentais “estão vinculados aos valores de liberdade e dignidade humana, levando-nos, assim, ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana”. (BONAVIDES, 2000, p. 514-518)
Já Canotilho ensina que a positivação dos direitos fundamentais, considerados “naturais e inalienáveis” do indivíduo pela Constituição como normas fundamentais constitucionais, é que vincula o direito. Sem o reconhecimento constitucional, estes direitos seriam meramente aspirações ou ideais, seriam apenas “direitos do homem na qualidade de normas de ação moralmente justificadas”. (CANOTILHO, 1998, p.369)
Claudia Lima Marques também afirma ser o direito do consumidor um direito humano de terceira geração, um direito positivo de atuação do Estado na sua projeção, que atinge a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros aqui residentes.
Quanto à terminologia de direitos humanos e direitos fundamentais, surge a necessidade de diferenciação: direitos humanos são sempre direitos do ser humano inerentes a sua dignidade e convívio social, sem, contudo, apresentar juridicidade constitucional, enquanto os direitos fundamentais encontram-se positivados na esfera constitucional:
Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem o ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional e que, portanto, aspiram a validade universal para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).
Atualmente, a doutrina os classifica em direitos humanos fundamentais em primeira, segunda, terceira e quarta dimensões[4] cujos conteúdos ensejariam os princípios: liberdade, igualdade e fraternidade.
Direitos de primeira dimensão ou de liberdade seriam os direitos e as garantias individuais e políticos clássicos, as chamadas liberdades públicas. Visam inibir a interferência indevida do Estado na vida do cidadão.
Os direitos de segunda dimensão ou de igualdade referem-se aos direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século XX. Eram os direitos de caráter social. Neste caso, a interferência do Estado era desejada para garantir a igualdade material dos indivíduos.
Já os direitos de terceira dimensão ou de solidariedade ou fraternidade são os da coletividade, de titularidade coletiva ou difusa. Entre eles, encontram-se o direito à paz, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação e à proteção do consumidor. (DE LUCCA, 2008)
Bonavides cita a quarta dimensão de direitos originários do mundo globalizado: os direitos à democracia, à informação, ao pluralismo. Seriam estes direitos que possibilitariam a legítima globalização política. (BONAVIDES, 2000, p.524)
Alguns autores defendem que a defesa do consumidor seria coligada à Cláusula Geral da Personalidade, ou seja, a Constituição, ao prever o respeito à dignidade humana como seu fundamento mais importante, e ainda, considerar como objetivo da República a erradicação da pobreza e a marginalização, para reduzir as desigualdades, mostram-se com a intenção de proteger os consumidores.
Neste contexto, Gustavo Tepedino assevera:
(...) o coligamento destes preceitos com os princípios fundamentais da Constituição, que incluem entre os fundamentos da República “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), e entre os objetivos da República “erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III), demonstra a clara intenção do legislador constituinte no sentido de romper a ótica produtivista e patrimonialista que muitas vezes prevalece no exame dos interesses dos consumidores.
O constituinte, assim procedendo, não somente inseriu a tutela dos consumidores entre os direitos e garantias individuais, mas afirma que sua proteção deve ser feita do ponto de vista instrumental, ou seja, com a instrumentalização dos seus interesses patrimoniais à tutela de sua dignidade e aos valores existenciais. Trata-se, portanto, do ponto de vista normativo, de proteger a pessoa humana nas relações de consumo, não já o consumidor como categoria de per se considerada.
A proteção jurídica do consumidor, nesta perspectiva, deve ser estudada como momento particular e essencial de uma tutela mais ampla: aquela da personalidade humana; seja do ponto de vista de seus interesses individuais indisponíveis, seja do ponto de vista dos interesses coletivos e difusos. (TEPEDINO, 1998, p. 249-250)
A propósito, o STJ já sumulou que: A intervenção do Estado na ordem econômica, fundada na livre iniciativa deve observar os princípios do direito do consumidor como seu limitador, já que este se trata de objeto de tutela constitucional especial.
CANOTILHO chama a defesa do consumidor de “princípio constitucional impositivo” que apresenta duas funções: a primeira como instrumento para assegurar a todos existência digna e a segunda, para instrumento para assegurar a conquista o objetivo particular a ser alcançado (assume a função de DIRETRIZ, para Dworkin, a “norma-objetivo”), justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas. (CANOTILHO, 2000)
Assim, como todo o Direito Privado, o sistema de amparo às relações de consumo surge em consonância com a axiologia e principiologia constitucional, visando alcançar a igualdade substancial ou material nas relações jurídicas de consumo. Esta almejada igualdade pode ocorrer através da aplicação da Tese da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais.
4.1 – A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO:
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também chamada pela doutrina de eficácia privada ou externa, ou Drittwirkung, defende a força vinculante e a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre os indivíduos, sobretudo no que diz respeito às relações privadas em que há nítido desequilíbrio de forças entre os sujeitos envolvidos, fazendo com que os direitos fundamentais exerçam função essencial para o deslinde da questão, restaurando ao sujeito ofendido a integridade de sua dignidade como pessoa humana.
Importa esclarecer que a doutrina tradicional entende os direitos fundamentais como normas destinadas a proteger o indivíduo contra eventuais violações causadas pelo Estado, quando este abusa de seu poder.
Gilmar Mendes bem explicita:
A História aponta o Poder Público como destinatário precípuo das obrigações decorrentes dos direitos fundamentais. A finalidade para o qual os direitos fundamentais foram inicialmente concebidos consistia, exatamente, em estabelecer um espaço de imunidade do indivíduo em face dos poderes estatais. (MENDES, 2008, p. 275).
Neste assunto, parte da doutrina defende que a aplicabilidade das normas vinculadoras de direitos fundamentais nas relações entre particulares é mediata, isto é, os direitos fundamentais seriam direitos relativos à defesa do particular contra o poder do Estado, implicando que as relações extra-estatais estariam fora da zona de incidência dos direitos fundamentais, entregues aos diversos subsistemas jurídicos autonomia plena.
Esses investigadores jurídicos entendem que as regras constitucionais vinculadas aos direitos fundamentais não podem ser opostas aos particulares diretamente, pois os valores objetivos traçados no seio constitucional devem ser materializados através da produção de normas jurídicas de baixa densidade (normas infraconstitucionais), ou seja, a regulamentação das regras constitucionais seria o caminho apropriado para proteção dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.
Em contraponto à tese da eficácia mediata dos direitos fundamentais, estão os aqueles doutrinadores que defendem que os direitos fundamentais produzem eficácia imediata e irrestrita, o que provocaria a eficácia nas relações privadas, ou seja, a aplicabilidade do artigo 5º, § 1º da CF não se restringiria somente ao Poder Público, mas também, as relações jurídicas estabelecidas entre particulares. Isto porque o texto Constitucional prescreve que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata e não delimita nem restringi sua atuação, isto é, não há bloqueio constitucional na aplicabilidade dos direitos fundamentais em qualquer relação, seja ela: pública; mista; ou privada.
Nesta linha de raciocínio, Sarlet expõe:
Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos fundamentais, nas condições de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada separação entre Estado e sociedade, entre público e o privado, os direitos fundamentais alcançam sentido apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, no Estado social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade cada vez mais participa ativamente do exercício do poder, de tal sorte que a liberdade individual não apenas carece de proteção contra os poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera que a liberdade se encontra particularmente ameaçada. (SARLET, 2007, p. 398-9)
O debate referente à eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídico-privadas teve início nos anos cinqüenta e primórdios da década de sessenta, na Alemanha. Ingo Sarlet lembra que a doutrina e a jurisprudência evocam como paradigma o famoso caso Lüth, cuja decisão proferida pela Corte Federal Constitucional da Alemanha, em 1958, reconheceu que os direitos fundamentais não possuíam apenas a função de direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas também, consistiriam em decisões valorativas de natureza objetiva da Constituição, produzindo eficácia em relação a todo o ordenamento jurídico, fornecendo diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.
Guilherme Magalhães Martins afirma que “os direitos básicos dos consumidores seriam normas materialmente constitucionais fundamentais, dotadas de EFICÁCIA HORIZONTAL, irradiando-se por todo o ordenamento jurídico público e privado”, em que pese não se situarem no texto constitucional. (MARTINS, 2010, p.2)
Fica claro, então, que a opção da CF/88 em tratar da defesa do consumidor se deu pela grande necessidade de corrigir certas situações de desequilíbrio social e contratual, provenientes do fenômeno de contratação em massa herdados do Estado Liberal. Para tanto, a CF ofereceu instrumentos de ação de cunho jurídico ou econômico. Desta forma, o CDC identifica um novo sujeito de direito especial, o consumidor, e o protege através de um sistema de normas e princípios orgânicos.
Nesse ponto, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins dissertam:
O reconhecimento do efeito horizontal parece ser necessário quando encontramos, entre os particulares em conflito, uma evidente desproporção de poder social. Uma grande empresa é juridicamente um sujeito de direito igual a qualquer um de seus empregados. Enquanto sujeito de direito, a empresa tem a liberdade de decidir unilateralmente sobre a rescisão contratual. Na realidade, a diferença em termos de poder social, ou seja, o desequilíbrio estrutural de forças entre as partes juridicamente iguais é tão grande que poderíamos tratar a parte forte como detentora de um poder semelhante ao do Estado. ( DIMITRI, 2007, p.109)
Seguindo esta linha, pode-se concluir que o elevado grau de desigualdade entre os particulares, o que se constata entre os sujeitos da Relação Jurídica de Consumo, autoriza e firma o entendimento da incidência imediata dos direitos fundamentais nas relações extra-estatais. Isto partindo do fundamento que quanto mais o direito a ser tutelado for essencial à vida da pessoa humana (carga valorativa alta) maior deverá ser a subsunção das normas de direitos fundamentais nas relações entre particulares.
As normas jurídicas vinculadoras de direitos fundamentais, transportadores de imensa carga valorativa, devem ser interpretadas de forma literal e irrestrita, sendo certo que não caberá ao legislador ordinário, bem como ao cientista do direito restringir sua a atuação, eficácia e aplicabilidade.
O Constituinte de 1988 prescreveu, taxativamente, que os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata, pois é impensável a colocação de regras prescritas por subsistemas antes da aplicabilidade do sistema constitucional. Portanto, a eficácia horizontal do direito fundamental do consumidor, também possui aplicabilidade imediata nas relações intersubjetivas privadas, haja vista que o mandamento constitucional não ofertou qualquer restrição em relação a sua eficácia.
Não é demais lembra que, no concernente aos limites da autonomia privada, a incidência direta da dignidade a pessoa humana nas relações contra si mesma, já que a ninguém é facultada a possibilidade de usar de sua liberdade para violar a própria dignidade, de tal sorte que a dignidade da pessoa assume a condição de limite material à renúncia e auto-limitação de direitos fundamentais (SARLET, 2007, p.402)
Há diversas formas de se proteger os direitos fundamentais nas relações entre particulares, uma delas seria por meio de intervenções legislativas, a exemplo da ampla legislação trabalhista e de proteção ao consumidor, assegurando a livre formação da vontade dos hipossuficientes, e prevenindo a discriminação, no âmbito das relações civis.
Também pode se dar por meio da interpretação e aplicação de cláusulas gerais de direito privado, a exemplo da jurisprudência formada sobre os contratos de adesão, em que se considerou abusiva a eleição de foro inserida nesses contratos, somente após muitas decisões que o legislador alterou o CPC no seu art. 112 e inseriu um caso excepcional de incompetência relativa pode ser declarada de ofício pelo juiz[5].
A propósito, quando o STF, em julgado de sua segunda turma, definiu pela aplicação do CDC às instituições bancárias de crédito e securitárias, chancelou a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas.
Após o exposto, percebe-se que a incorporação pela CF/88, de situações jurídicas antes disciplinadas pelo Direito Civil, nos mostra que a “pessoa-consumidor” se projeta numa dimensão constitucional, de modo que, na hipótese de conflito entre o direito fundamental do consumidor e as exigências do mercado livre, aquele (o consumidor) terá sempre primazia, sendo perfeitamente possível a aplicação horizontal dos direitos fundamentais para garantir o equilíbrio nas Relações Jurídicas de Consumo.
Findo o trabalho, percebe-se que nos vinte e poucos anos do Código de Defesa do Consumidor, muito se evoluiu na teoria contratual neste país e, particularmente, graças à nova visão inserida no mercado de consumo após o advento do CDC. Muitos aspectos históricos foram importantes para o surgimento da questão consumerista, principalmente o discurso de John F. Kennedy, considerado por muitos o seu marco principal.
A Constituição Brasileira inseriu a defesa do consumidor no rol dos direitos fundamentais, como um direito e garantia individual, que pode ser reclamado e efetivado por este importante sujeito de direitos, seja contra o Estado, ou nas relações privadas.
A temática dos direitos fundamentais tem sido, há muito, explorada pela doutrina nacional e estrangeira, dada a sua alta relevância para o cotidiano dos operadores do direito. Reconhece a doutrina que os direitos fundamentais possuem uma função autônoma por constituírem valores que a sociedade deve respeitar e concretizar.
O que fundamenta a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas de consumo é a existência de uma desigualdade fática entre os sujeitos da Relação Jurídica Consumerista. Neste contexto, corroboro com a doutrina mais moderna ao salientar que os direitos fundamentais não se prestam apenas à defesa do cidadão contra o Estado, devem também proteger o indivíduo em suas relações privadas.
Daí pode-se concluir que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais pode e deve ocorrer nas relações de direito privado, seja por meio da atuação dos indivíduos na sociedade, ou pela interpretação sistemática do ordenamento jurídico, bem como pela construção do direito através da aplicação das cláusulas gerais, da boa-fé, função social, no caso concreto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Art. 5º, CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
[2] Art. 170, CF/88: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
V - defesa do consumidor;
[3] Art. 48, ADCT. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.
[4] Importa esclarecer que a terminologia “direitos de primeira, segunda e terceira gerações” é duramente criticada por diversos autores já que estes direitos se completam, expandem-se, acumulam-se não se substituem ou se sucedem.
[5] Art. 112. Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa.
Parágrafo único. A nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu.
Bacharel em Administração de Empresas e Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Especialista em Educação a distância pela Universidade Católica de Minas Gerais - PUC - Minas. Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tutora de Direito do Consumidor da PUC Minas. Advogada.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo. A Teoria Geral das Relações de Consumo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2011, 06:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23829/a-teoria-geral-das-relacoes-de-consumo. Acesso em: 23 dez 2024.
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