INTRODUÇÃO - 1 O sistema da responsabilidade penal subjetiva - 2 A formação da vontade como etapa do comportamento criminoso - 3 O problema da involuntariedade na formação da vontade - 4 A inexigibilidade de vontade diversa e seu desdobramento no campo da punição - CONCLUSÕES - BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por meta verificar se, diante da constatação de que não há propriamente liberdade de escolha no momento da formação da vontade, é possível a formulação de juízo de censura no que tange ao aspecto subjetivo do comportamento delituoso.
A referida verificação, que não pode se esquecer da filosofia de Santo Tomás de Aquino e de Aristóteles, tem seus olhos voltados para o direito penal brasileiro, razão pela qual se faz imprescindível a visita, conquanto breve, a alguns dos aspectos do sistema pátrio, máxime do aspecto subjetivo que marca o modelo de responsabilidade penal no Brasil.
O tema, apesar de teórico, possui grande importância para o universo jurídico, porquanto traz à tona a discussão acerca dos limites do direito – vexata quaestio da disciplina criminal – e, sobretudo, a discussão do caráter que deve assumir a pena (se retributivo ou não).
É sempre útil, ademais, o estudo de temas ainda não suficientemente debatidos. E não é nenhum exagero afirmar que o tema em questão, por mais que venha a receber especial atenção da comunidade científica, estará sempre a exigir nova reflexão, dado o grau de complexidade que envolve o assunto.
1 O sistema da responsabilidade penal subjetiva
À guisa de intróito, vale destacar que, diferentemente do sistema objetivo[1] que marcou as origens do direito penal, o sistema moderno, do qual não se afasta o brasileiro, é assinalado pela responsabilidade penal subjetiva.
Conforme explicita Marina Becker[2], a subjetivação do direito penal é uma marca das tendências modernas. “É no desvalor da ação, mais do que no desvalor do resultado, que as modernas tendências fundamentam a punição do delito”, conclui a autora.
O sistema da responsabilidade penal subjetiva tem por característica exigir, para a configuração de qualquer infração penal, um dado suporte anímico (imprevisão do previsível, no mínimo). Daí ser decorrência sua o princípio da culpabilidade (nulla poena sine culpa), pelo qual não há crime sem culpa. “Os resultados que não foram causados a título de dolo ou culpa pelo agente não podem ser a ele atribuídos, pois a responsabilidade penal, de acordo com o princípio da culpabilidade, deverá ser sempre subjetiva”, anota Rogério Greco[3].
A indispensabilidade da consideração do aspecto subjetivo se justifica, na opinião de Miguel Reale Junior[4], porque a ação humana é provida de sentido, “como expressão que é de uma escolha conscientemente realizada e da eleição dos meios consonantes com os fins propostos pelo que o agir é um conduzir-se”.
Impende notar que o sistema da responsabilidade penal subjetiva, atrelado aos postulados da Teoria Finalista da Ação, impõe a bipartição da conduta em duas fases. É o que será visto no tópico a seguir.
2 A formação da vontade como etapa do comportamento criminoso
A primeira fase da conduta é também chamada de fase interna, subjetiva ou da cogitação. É nesse primeiro momento que ocorre a formação da vontade, entendendo-se por vontade, segundo Aníbal Bruno[5], o impulso causal da ação. Afora as infrações de natureza culposa, nas quais a vontade se dirige à realização da ação/omissão (não do evento), a fase interna é o momento em que se dá a cogitação, ou seja, é o momento em que surge na mente do indivíduo a vontade de produzir o resultado lesivo.
É na fase da formação da vontade que se manifestam pensamentos, sentimentos, emoções e demais processos mentais que caracterizam o aspecto anímico da conduta criminosa. A formação da vontade, por assim dizer, é fruto da dinâmica das funções mentais superiores que forjam a realidade psíquica do indivíduo. É o que se depreende do estudo sistemático da obra Psicologia Jurídica, de José Osmir Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni Mangini.
A segunda fase da conduta, por sua vez, é a fase em que a vontade do indivíduo se manifesta por meio de uma ação ou de uma omissão. A fase externa da conduta, também chamada de fase da atuação, é, por assim dizer, a fase da manifestação de pensamentos, sentimentos, emoções e demais processos mentais.
A fase da atuação é indispensável para a configuração de qualquer infração penal, sendo insuficiente a mera cogitação. Tal regra, expressa pelo brocado latino cogitationes poenam nemo patitutur, faz com que não atinjam status de ação, segundo Juarez Cirino dos Santos[6], os “pensamentos, atitudes e emoções como atos psíquicos sem objetivação”.
No Brasil, conquanto possa haver uma ou outra figura criminosa caracterizada pela mera cogitação[7], o citado brocardo latino também é respeitado. Os pensamentos e demais processos mentais que caracterizam a realidade psíquica do indivíduo, se não manifestados, são absolutamente desconsiderados pelo sistema penal pátrio.
3 O problema da involuntariedade na formação da vontade
A ideia de responsabilidade penal subjetiva tem por base a crença de que o ser humano possui livre arbítrio, isto é, liberdade de agir ou não agir[8]. No Brasil, a responsabilidade penal, que não pode ser separada da ideia de culpabilidade como juízo de censura (reprovação), também encontra apoio na liberdade de escolha que supostamente possui o indivíduo.
É a crença de que há liberdade de agir ou não agir, afinal, que justifica a sujeição do indivíduo à responsabilização penal. Tal afirmativa encontra suporte na filosofia de Santo Tomás de Aquino[9], que afirma:
Pues no parece que pueda ser meritorio o demeritorio que alguien obre necessariamente de tal modo que no pueda evitarlo. Es también considerada entre las opiniones extrañas a la filosofía: porque no sólo es contraria a la fe, sino que subvierte todos los principios de la filosofía moral. Pues si no hay algo libre en nosotros, sino que por necessidad somos movidos a querer, se excluye la deliberación, la exhortación, el precepto y el castigo, la abalanza y el vituperio, sobre los que versa la filosofía moral.
Sólo si el actuar es libre habrá algo meritorio o demeritorio; sin mérito o demérito se subvierten todos los principios de la filosofia moral.
(...) es proprio de la filosofia moral (...) considerar las operaciones humanas en cuanto están ordenadas entre sí y con respecto al fin.
(...) Pero me refiero a las operaciones humanas que proceden de la voluntad del hombre según el orden de la razón. Porque las operaciones que se encuentran en el hombre, pero que no dependen de la voluntad y la razón, no se dicen propiamente humanas sino naturales, como resulta claro en el caso de las operaciones del alma vegetativa, que de ninguén modo caen bajo la consideración de la filosofía moral. Así como el sujeto de la filosofía natural es el movimiento o la cosa móvil, así el sujeto de la filosofía moral es la actividad humana ordenada a un fin, o sea el hombre como agente voluntario en vista del fin.
A filosofia aristotélica, seundo Wayne Morrison[10], segue a mesma direção. Para que se possa “louvar ou acusar, louvar a virtude e culpar o vício, uma pessoa deve ser verdadeiramente capaz de fazer uma escolha. Aristóteles afirmava que um ato pelo qual uma pessoa podia ser considerada responsável deve ser um ato voluntário”.
Tendo em vista, portanto, que a responsabilidade individual e o juízo de reprovação têm por base a liberdade de escolha do indivíduo, é possível afirmar que, quando comprometida a referida liberdade, a responsabilidade individual e o juízo de reprovação perdem espaço.
Na esfera do direito penal brasileiro, para se ter uma ideia, a liberdade de escolha se encontra comprometida nos casos de inimputabilidade, de ausência de potencial conhecimento do caráter ilícito do fato e de inexigibilidade de conduta diversa. Na hipótese de inimputabilidade, o indivíduo não tem condição psíquica de escolher entre o certo e o errado; na hipótese de ausência de potencial conhecimento do caráter ilícito do fato, a impossibilidade de conhecimento impede que o indivíduo escolha a via do comportamento lícito. Na terceira hipótese, a violência moral e a pressão psicológica turvam, outrossim, a liberdade de escolha do indivíduo.
No Brasil, as três situações acima elencadas constituem causas de exclusão da culpabilidade. Sem liberdade de escolha, ou melhor, sem o mínimo de condições que favoreçam a escolha livre, não há se falar em reprovabilidade. No campo da atuação, por assim dizer, a culpabilidade encontra restrição nas hipóteses em que a escolha de outra atuação não se pode esperar ou exigir. Em outras palavras, sempre que alguém não dispõe de efetiva liberdade de optar por “agir-de-outro-modo”, torna-se prejudicada a realização de qualquer juízo de censura.
Ocorre que, se a liberdade de escolher entre agir ou não agir é a base que sustenta o juízo de censura acerca da atuação do indivíduo (segunda fase da conduta), a liberdade de escolher entre pensar ou não pensar, sentir ou não sentir, querer ou não querer etc., é a base que sustenta, ou deve sustentar, o juízo de censura acerca da formação da vontade do indivíduo (primeira fase da conduta). Tal raciocínio conduz à seguinte conclusão: só é possível a formulação de qualquer juízo de censura em face da vontade do indivíduo se esta vontade representa uma escolha sua.
Para que o problema seja mais bem esclarecido, vale o seguinte exemplo: A, pensando que um homem jamais pode levar desaforo para casa, passa a ter a vontade de matar B, que lhe ofendeu. Formada a vontade, A parte em direção de B, golpeando-o mortalmente. No que tange ao tema da liberdade de escolha, este exemplo revela duas etapas diferentes: num primeiro momento, põe-se em questão a liberdade que tem o indivíduo de escolher seus pensamentos e suas vontades (liberdade na formação da vontade); num segundo momento, põe-se em relevo a liberdade que tem o indivíduo de escolher entre agir ou não agir conforme seus pensamentos e vontades (liberdade de atuação).
Como dito, o direito como um todo trabalha com a crença de que há liberdade de atuação e, por isso, só afasta o juízo de censura quando outra atuação não se pode esperar ou exigir do indivíduo. Esta suposta liberdade de atuação, porém, que já tem sido contestada por importantes estudos da neurociência[11], não se confunde com a liberdade na formação da vontade, a qual, segundo a psicologia, pode ser encarada como um mito, já que ninguém pensa o que quer pensar, nem sente o que quer sentir; antes pensa e sente o que lhe impõe o complexo conjunto de fatores determinantes.
Ocorre que, se o juízo de censura no que se refere ao comportamento criminoso tem por base a liberdade de atuação, o juízo de censura no que se refere ao suporte anímico do comportamento criminoso, por coerência, deve ter por base a liberdade na formação do pensamento. É justamente sobre a liberdade na formação do pensamento, ou melhor, sobre sua ausência, que versará o capítulo seguinte.
4 A inexigibilidade de vontade diversa e seu desdobramento no campo da punição
As funções mentais superiores, dentre as quais se destacam os pensamentos, as sensações, as emoções, etc., sofrem influência de um sem-número de fatores externos ao querer do indivíduo. Para Howard S. Friedman e Miriam W. Schustack[12], a personalidade de um indivíduo se subordina a oito fatores, a saber: fatores inconscientes, forças do ego, aspectos genéticos e fisiológicos, experiências, dimensão cognitiva, predisposições específicas (traços), dimensão espiritual e interação com o ambiente.
A sensação, para se ter uma ideia, definida como “operação por meio da qual as informações relativas a fenômenos do mundo exterior ou ao estado do organismo chegam ao cérebro”[13], sofre influência do estado emocional, dos limiares inferiores e superiores, da quantidade de informações recebidas, do nível de estresse, dentre outros fatores.
De igual modo, a percepção, que realiza “a interpretação da imagem mental resultante da sensação”[14], também sofre influência de fatores incontáveis, como experiências anteriores, crenças e valores, captura visual, expectativas, emoções, etc. No campo da percepção, a propósito, vale destacar, ainda, os fenômenos da figura-e-fundo e das ilusões perceptivas. Pelo primeiro, o indivíduo, sem perceber, atribui sempre importância ao que ocupa lugar de figura, como é o caso de um homem que, ao experimentar um veículo, atenta para a capacidade do motor (figura) e não para a beleza exterior do automóvel (fundo). Pelo segundo, o indivíduo percebe estímulos sensoriais com equívoco em virtude de fatores como, por exemplo, fatores culturais. É o que ocorre quando se torna mais fácil confundir uma nuvem com um disco voador numa serra distante do que no “labirinto urbano de uma avenida movimentada”[15].
Da mesma forma que as sensações e as percepções são alteradas conforme diversas circunstâncias alheias à vontade do indivíduo – pois o indivíduo não sente o que quer sentir, nem percebe o que quer perceber; simplesmente sente e percebe (síndrome de Pierandello: “assim é se lhe parece”), conforme estejam combinados os fatores da emoção, do estresse, das crenças, dos valores, etc. –, o pensamento também deflui de um série de fatores, dentre os quais se destacam a linguagem, o modelo de crescimento, o grau de inteligência, o exemplo dos pais, o componente genético[16], as formas de aprendizagem, etc.
O que uma pessoa pensa – a maneira como vê o mundo, as pessoas, as relações, etc. – é fruto de uma carga construída ao longo da vida, sobretudo ao longo de seus primeiros estágios. Nenhum pensamento é consequência do nada; os processos mentais todos não acontecem ao acaso, mas têm suas razões para acontecer.
Para Jean Piaget[17], a forma como uma pessoa pensa advém, antes de mais nada, da passagem individual por diversos estágios. É o que se depreende a seguir:
(...) as pessoas desenvolvem a capacidade de pensar, passando por estágios, desde o nascimento, cada um deles apoiado no anterior. Essa evolução acompanha nitidamente o desenvolvimento anátomo-fisiológico das estruturas cerebrais (daí a nutrição insuficiente provocar danos para a evolução do psiquismo).
As emoções, de igual modo, não são escolhidas pelo indivíduo. Ninguém escolhe se apaixonar; ninguém escolhe sentir raiva por alguém; ninguém escolhe sentir compaixão por certa pessoa. Todas as formas de emoção são também fruto de uma conjugação de fatores.
Para se ter uma ideia geral do que foi dito até aqui, basta atentar para o relato feito por Eduardo Ferraz[18]:
As experiências ocorrem da seguinte forma:enquanto o voluntário permanece em uma máquina de fMRI, os pesquisadores apresentam fotos, filmes, músicas ou discursos. Esta máquina mede as propriedades magnéticas dos glóbulos vermelhos (que transportam o oxigênio). Dependendo da área cerebral mais ativada pelo fluxo sanguíneo, conclui-se que tipo de reação o estímulo causa. Os neurocientistas já constataram, por exemplo, que a migração de sangue para o córtex pré-frontal mostra que o voluntário se identificou com a marca ou com o sabor de um produto, mesmo antes de a pessoa perceber isso de forma consciente.
Diante dos estudos visitados – que sequer precisaram passar pelos estudos de Sigmund Freud (a clássica divisão entre “id”, “ego” e “superego”) e de outros investigadores da mente humana – é possível perceber que o ser humano não pensa o que quer pensar, não sente o que quer sentir, não tem as emoções de sua escolha, não tem a memória que deseja, e assim por diante. Mesmo na atividade finalista, segundo Goffredo Telles Junior[19], o Homem “ ‘quer’ o que sua natureza quer”. O ser humano, por assim dizer, não é dono de sua atividade mental. Se o indivíduo tem o poder de escolher entre agir ou não de acordo com seu conteúdo subjetivo (pensamentos, sentimentos, percepções, vontade, desejo, etc.), falta-lhe o poder de escolher entre querer ou não querer, desejar ou não desejar, sentir ou não sentir, etc. O Homem, assim, pode até ser dono de suas atitudes (liberdade de atuação), mas não é dono de suas manifestações mentais (liberdade na formação da vontade)[20].
Ocorre que, se não há liberdade de escolha no âmbito da formação da vontade, esta, que representa a primeira fase da conduta criminosa, não pode ser objeto de censura, reprovação. Como visto anteriormente, afinal, o juízo de culpabilidade só é possível no terreno da liberdade de escolha. É possível a reprovação de alguém por agir ilicitamente quando possível a opção de não agir de tal modo (tanto que não é possível a reprovação no caso de inexigibilidade de conduta diversa, por exemplo), e só seria possível a reprovação de alguém por pensar, sentir ou querer, se tais processos mentais fossem voluntários (neste caso, e somente neste caso, haveria “exigibilidade de vontade diversa”). Como, porém, não há voluntariedade no campo da formação da vontade, qualquer juízo de censura que se faça em relação ao aspecto subjetivo se torna um juízo de censura que se realiza fora dos limites da liberdade humana.
Entretanto, o aspecto anímico, conforme anota Paulo José da Costa Junior[21], não se separa do aspecto externo do comportamento. É o que sustenta o autor:
Todo comportamento é simultaneamente físico e psíquico. Ambas as componentes (física e psíquica) integram-se e completam-se, de maneira íntima. Entre elas, não medeia simples relação sucessória. Não há desconexão ou divórcio. Uma só unidade, com dúplice aspecto. O aspecto psicológico reflete-se na face externa da conduta. Dela não se cinde, pois o caráter psíquico é o aspecto subjetivo do comportamento, uma qualidade da ação e não um fato que a antecede.
Se o aspecto subjetivo é parte inseparável do comportamento externo, ainda que o ser humano tenha liberdade de escolher entre agir ou não agir, isto é, ainda que tenha liberdade de atuação, tal se encontra limitada, em parte, pela ausência de liberdade no âmbito subjetivo.
Ocorre que, se o comportamento como um todo tem uma parte caracterizada pela presença de liberdade e outra parte caracterizada pela ausência de liberdade – e se, deveras, representam partes incindíveis –, o direito penal não pode levar em conta a presença de liberdade de uma das partes para formular juízo de censura em relação ao todo. Em outros termos: ou o direito penal censura apenas o fato externo, ou não censura nenhuma parte da conduta. O erro, pois, consiste na formulação de juízos de reprovação em relação ao comportamento como um tudo, inclusive em relação ao aspecto interno.
Para encerrar a reflexão proposta pelo presente trabalho, vale observar que o direito penal brasileiro da atualidade não leva em conta, ao menos por enquanto, os aspectos aqui abordados. A exacerbação da pena prevista para o delito de homicídio em razão da presença de uma qualificadora subjetiva (ex.: motivo torpe), por exemplo, é só uma das muitas hipóteses a revelarem que o direito pátrio não só censura o aspecto externo do comportamento (o agir), como também censura o aspecto interno do comportamento (o pensar, o sentir, o querer, etc.).
Urge esclarecer, finalmente, que a ideia proposta pela presente pesquisa não sugere um possível retorno ao sistema da responsabilidade penal objetiva, tampouco sugere que o sistema pátrio deixe de diferenciar fatos praticados sob diferentes suportes anímicos. A questão que se coloca visa apenas à reflexão acerca do caráter punitivo, repressivo, expiatório, do direito penal brasileiro[22]. Por todas as razões expostas, parece claro que a sanção não pode ter caráter de censura, máxime quando parte sua se prende ao aspecto puramente subjetivo, já que ausente a liberdade de escolha no que tange, pelos menos, a uma parte do comportamento delituoso.
CONCLUSÕES
De todo o exposto, pode-se concluir o seguinte:
1) O direito penal brasileiro segue o sistema da responsabilidade penal subjetiva, razão pela qual exige, além do comportamento externo e de seu resultado danoso, um determinado suporte anímico (imprevisão do previsível, no mínimo);
2) O direito penal brasileiro trabalha com a noção de culpabilidade (juízo de censura), apoiando-a na ideia de liberdade de escolha, já que a reprovabilidade só é possível no campo da liberdade humana;
3) A liberdade de escolha é possível no âmbito da atuação – e mesmo aqui, as ciências relacionadas à neurobiologia e à psicologia têm suas dúvidas –, mas não é possível no âmbito da formação da vontade, já que o aspecto anímico de cada indivíduo independe de sua vontade ou de sua escolha, mas depende de diversos fatores, inclusive genéticos;
4) Por não se submeter à liberdade de escolha, a formação do pensamento não pode ser objeto de qualquer juízo de censura. A culpabilidade, pois, pode atingir quando muito o aspecto da atuação, não podendo alcançar o aspecto anímico da conduta. Isso não significa que medida alguma deva ser imposta; significa apenas que a medida eventualmente aplicada não pode ter cunho de reprovação;
5) O direito brasileiro ainda realiza juízo de censura tanto em relação à atuação quanto em relação à formação da vontade, situação que se encontra desajustada sob o ponto de vista de que a censurabilidade somente se impõe diante da liberdade de escolha.
BIBLIOGRAFIA
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[1] José Francisco Cagliari, O dolo e a culpa na evolução do conceito de culpabilidade, p.11.
[2] Marina Becker, Tentativa criminosa, p.103.
[3] Rogério Greco, Curso de direito penal – Parte geral, p.87.
[4] Miguel Reale Junior, Instituições de Direito Penal, p.131.
[5] Aníbal Bruno, Direito Penal – Parte Geral, p.185.
[6] Juarez Cirino dos Santos, Manual de Direito Penal – Parte Geral, p.49.
[7] Há quem afirme que o crime de quadrilha ou bando (art. 288, CP) constitui crime de mera cogitação.
[8] A ideia de livre arbítrio e de responsabilidade provém da Escola Clássica, da qual o Código Penal de 1940 não se afastou, mesmo tendo admitido vários postulados da Escola Positiva. Nesse sentido, vale citar as palavras de Magalhães Noronha, que afirma: “É o novo Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás, o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas” (Direito Penal, p.61).
[9] Santo Tomás de Aquino, Comentario de la Ética a Nicómaco, Centro de Antropología Filosófica y Cultural, Buenos Aires, 1983, Lib. I, Lección I, nº2, apud Alfredo L. Repetto, El acto culpable: el dolo y la culpa como sus formas, p.18
[10] Wayne Morrison, Filosofia do Direito, p.55.
[11] Confira-se, a propósito, o que escreve Daniel R. Pastor: “Nos referimos a los experimentos sobre la secuencia de la formación de consciencia en el cerebro de Benjamin Libet expuestos en su obra Mind Time (...). Según estos experimentos las decisiones humanas responderían, en primer lugar, a um impulso causal que no es controlado de modo consciente, aunque inmediatamente después, en segundo lugar, el agente perciba una sensación de ‘acompañamiento’ de lo hecho que le hace creer que lo quiso, de forma tal que, como se dice en la literatura especializada a modo de resumen de estas experiencias empíricas, no hacemos lo que queremos, sino que queremos lo que hacemos” ( El problema da la libertad de acción en el derecho penal, p.9).
[12] Howard S. Friedman e Mirian W. Schustack, Teoria da Personalidade, p.2.
[13] José Osmir Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni Mangini, Psicologia Jurídica, p.13.
[14] Idem, p12.
[15] Idem, p.17.
[16] A genética é tão determinante que pode estipular o grau de felicidade de uma pessoa. Uma criança muito feliz, sempre alegre e de bom humor, por exemplo, pode sofrer de uma síndrome chamada de Síndrome de Angelman (Howard S. Friedman eMiriam W. Schustack,Teorias da Personalidade, p.156).
[17] Apud José Osmir Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni Mangini, Psicologia Jurídica, p.26.
[18] Eduardo Ferraz, Por que a gente é do jeito que a gente é, p.46-47.
[19] Goffredo Telles Junior, Direito Quântico, p.182.
[20] Esta conclusão, no entanto, não é pacífica. Willian Glasser, em sua obra Teoria da Escolha, faz o seguinte comentário: “Por pior que você se sinta quando está doente ou sentindo dor, grande parte do que ocorre no seu corpo é um resultado indireto das ações e dos pensamentos que você escolhe ou escolheu diariamente em toda a sua vida” (p.15).
[21] Paulo José da Costa Junior, Curso de Direito Penal, p.52.
[22] Quanto ao caráter expiatório da pena, vale observar a assertiva de Oswaldo Henrique Duek Marques (Fundamentos da Pena, p.6), que afirma: “Atualmente, embora os sistemas penais busquem alicerçar-se teoricamente em postulados tidos como racionais e científicos, com limites traçados pelos princípios fundamentais dos direitos humanos, constantes em textos constitucionais, do ponto de vista prático arrimam-se em fundamentos míticos de vingança e castigo”.
Advogado. Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Arthur Davis Floriano. A inexigibilidade de vontade diversa no âmbito do direito penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2011, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23887/a-inexigibilidade-de-vontade-diversa-no-ambito-do-direito-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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