Orientador: Ms. Fábio Abreu dos Passos
RESUMO: O objetivo deste artigo é buscar uma aproximação das teorias e dos conceitos elaborados por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) no séc. XVIII, à realidade jurídica contemporânea. Para alcançarmos tal objetivo foi feita uma revisão bibliográfica das seguintes obras de Rousseau: Contrato Social (1762), Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754) e Emílio ou Da Educação (1762). Rousseau era um dos principais filósofos de sua época. Ele achava necessário mudar a sociedade, dando a todos a liberdade de expressão e culto, proteção contra a escravidão, injustiça, opressão e as guerras. Desta forma acreditava-se contribuir para o progresso do espírito humano. Veremos que perspectivas tais como: “o homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe”, e “a instituição da propriedade com o nascimento da sociedade civil, onde o verdadeiro fundador foi quem lembrou de dizer ‘isto é meu’, é que tornou o homem egoísta, escravo do próprio homem”, são meios que nos levam a imaginar se ainda existem e se podem ser considerados na atualidade, uma comparação breve com o Direito contemporâneo nos revela que algo semelhante, ainda é possível, devido tanta desigualdade.
Palavras-chave: desigualdade, Direito, Rousseau, Contrato Social
Introdução
Este presente ensaio teórico traz para o Direito Contemporâneo a concepção da Origem e os fundamentos da desigualdade entre os Homens, elaborada por Rousseau no Século das Luzes (séc. XVIII). Mostrando que a desigualdade presenciada por Rousseau naquela época persiste na atualidade, embora se possa dizer ou não que de maneira diferente. Mostraremos como se pode resolver e enxergar alguns problemas tendo como recurso as obras de Rousseau. Veremos qual a contribuição delas para o Direito. Para isso, a estrutura principal deste trabalho remeterá primeiramente apresentar um breve contexto histórico tendo como tema principal a discussão entre o que é natural e o que é convenção. Em seguida explanaremos sobre suas principais ideias filosóficas e políticas acerca do tema deste artigo. Mais adiante recordaremos qual o conceito e a aplicação do Direito, não deixando de dizer qual é a visão dogmática e a não-dogmática deste. Aproximamos, em seguida, as “teorias” de Rousseau ao Direito Contemporâneo, abrangendo as principais críticas.
Rousseau: estado de natureza, contrato social e propriedade
Para o célebre pensador, “o homem nasce livre e por toda parte encontra-se agrilhoado”. Rousseau imagina “um estado de natureza” onde cada um vive sozinho. O homem original é uma espécie de animal tranquilo, movido por poucas necessidades, indiviso, sem coerção e, consequentemente, feliz, ligado apenas ao presente (Rousseau, 2001, p. XII).
No Contrato Social Rousseau destaca que a primeira lei natural do homem é zelar pela própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que deve consagrar a si mesmo. É a família, pois, o primeiro modelo das sociedades políticas, ou seja, o primeiro modo de se pensar sociedade. O que diferencia é que na família há o amor dos pais para com os filhos e no Estado há o contentamento de possuir apenas o poder. A força e a liberdade são os primeiros instrumentos da conservação de cada homem. A dificuldade para Rousseau estaria em
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes. Este é o problema fundamental cuja solução é fornecida pelo Contrato Social (ROUSSEAU, 2001, p.20).
Pra o autor a essência do corpo político está na concordância entre a obediência e a liberdade. Ele apresenta que a má socialização resulta de certo peso sociológico, pois quem de certa forma domina seduz a opinião dos fracos estabelecendo por assim dizer um falso contrato, garantindo a liberdade destes – dos fracos, subordinados – se lhes concederem obediência. Essa má socialização é devido ao estabelecimento da propriedade privada, divisão de tarefas, enriquecimento, sujeição. Ninguém ouve mais sua razão, e sim o que lhe convém, nem sua consciência e sim seus preconceitos. Agir livremente com o outro significa estabelecer com ele um contrato em que ambos se comprometem e não uns terem domínio ou vantagem maior que os outros.
Em sua obra Contrato Social ele defende a ideia de que o ser humano nasce bom, porém a sociedade funciona como um pacto, onde os indivíduos, organizados em sociedade, concedem alguns direitos ao Estado em troca de proteção e organização. Esse contrato seria a única base legítima para uma comunidade que deseja viver de acordo com os pressupostos de liberdade.
Em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui o que a natureza poderia tornar os homens desiguais em força ou em talento faz com que todos se tornam iguais por convenção e de direito.
Essa igualdade é apenas ilusória: serve somente para manter o pobre em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na realidade, as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm. Donde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens na medida em que todos eles têm alguma coisa e nenhum tem demais (ROUSSEAU, 2001, p.30).
Rousseau experimenta esboçar nessa obra uma nova regra de administração legítima e segura que garanta os direitos da igualdade e da liberdade, sendo estes inalienáveis.
O homem perde, segundo o Contrato Social, a liberdade natural ou “o direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar”, e ganha a liberdade civil “e a propriedade de tudo que possui”. Para que haja um contrato social genuíno, é necessário a cada indivíduo alienar sua liberdade natural para ingressar na nova ordem civil, formando uma vontade geral que garanta a condição de igualdade para todos. Uma vez estabelecida a vontade geral, está estabelecido o verdadeiro Direito. (DA SILVA, 2005, p. 1).
Pode-se dizer que tudo se organiza em torno da noção de lei, quando estabelecida a sociedade civil. Essa é a expressão da vontade geral, tudo se dá por meio das leis, sendo que ela só é geral quando racional, ou seja, quando seu próprio objeto é geral. O voto e a decisão da maioria são apenas meios cômodos de presumir a vontade geral. Se as paixões intrometem-se, não se ouve mais a razão e já não lida senão com a vontade do número. “A lei apenas pode dizer que nos casos duvidosos é mais racional que a minoria ceda diante da maioria” (Rousseau, 2001, p. XVI).
Depois do Contrato o corpo soberano que surge é o único capaz de determinar o modo de funcionamento da máquina política – como diz Rousseau a máquina é construída, cabe aos outros fazê-la funcionar – determinando até a forma de como será distribuída a propriedade, esse “direito” do corpo soberano é uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação da propriedade privada – quando se fez o contrato – foi total e sem reservas.
Desta vez, pode dizer que estariam dadas todas as condições possíveis para a realização da liberdade civil, surgindo então a própria sociedade civil, pois o povo soberano, sendo agente do processo de elaboração das leis (participação ativa) e ao mesmo tempo aquele que obedece a essas mesmas leis (participação passiva), têm todas as condições para se constituir, agindo por si mesmo. Desse modo haveria uma conjugação perfeita entre a obediência e a liberdade, pois, obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é o próprio ato de mostrar que a pessoa é livre – ato de liberdade. Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições necessárias de elaborar suas leis, num clima de igualdade.
No que tange à propriedade, tanto o direito do primeiro ocupante (muito mais legítimo) – como destaca Rousseau na obra Emílio ou Da Educação (1762) diante do suposto impasse entre o primeiro ocupante (Robert) e o invasor de uma terra já cultivada (Emílio), Rousseau diz: “não trabalharemos na terra antes se saber se alguém não a lavrou antes de nós” (ROUSSEAU, 1999b, p. 100) – quanto o pretenso direito do mais forte devem submeter-se ao julgamento do Direito de propriedade advindo da associação civil que forma a vontade geral.
Rousseau se difere dos demais jusnaturalistas (como Locke, por exemplo), quando se diz respeito ao estado de natureza e a propriedade. Convém lembrar que ele não pode ser confundido com os socialistas do século XIX. Para Rousseau, o estado de natureza – onde diz que o homem vivia de forma inocente, simples, uma vida solitária, mas feliz – é a garantia de dois princípios: a liberdade e a igualdade; princípios nos quais são inalienáveis e que foram violados com a formação da sociedade civil e a instituição da propriedade. Tal violação é descrita por Rousseau em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754.
Rousseau e sua obra: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
Na sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau descreve a constituição do homem e sua degeneração na sociedade.
Rousseau era contrário ao luxo e a vida mundana, para ele o grande mal dos tempos modernos era a civilização burguesa, com hábitos de luxo e de criação de desejos artificiais. Sua visão a respeito da burguesia era por que ele fazia parte desse meio social, daí que surgiram suas críticas. Em seu Discurso, defendeu a tese da bondade natural dos homens que estavam pervertidos pela civilização. Defendia também que tudo é de todos, podendo um homem usufruir de uma terra apenas para plantar o necessário para a sua subsistência. Refere-se a uma época primitiva em que o homem vivia feliz. Foi a sociedade que o tornou escravo e mau, ele dizia: “o homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe”.
A época do estado de natureza terminou devido ao progresso da civilização, a divisão do trabalho, a propriedade privada, criando diferenças irremediáveis entre ricos e pobres, poderosos e fracos.
Rousseau fala que “se pudesse escolher onde nascer, escolheria um lugar onde o amor entre os cidadãos fosse maior que o amor à pátria”. A alma humana é moldada nas vivências. Ela está irreconhecível, depois de ter sido influenciada de todas as formas por conhecimentos, erros e pelo impacto das paixões. Deus criou a alma com majestosa simplicidade. O desejo de autoconhecimento vem do homem, o civilizado, que acaba por ignorar-se (Rousseau, biografia, p.1).
Para entendermos a origem da desigualdade entre os homens, nada mais certo que primeiramente entendermos a origem do homem, como pressupõe Rousseau. Não há duas origens do homem, mas há duas origens da desigualdade, portanto, não podemos confundi-las. Em Rousseau a natureza é anterior à sociedade, logo, só há originariamente um homem, o homem natural, o qual pode degenerar para tornar-se o homem civil, sem deixar de ser homem. Já a desigualdade, pode ser ou natural (física), como a da idade, aquela que uma vez estabelecida pela natureza, não pode ser anulada nem transformada ou moral (política), como a de dinheiro, originada pela convenção social, podendo ser anulada e transformada.
Parece que a principal preocupação de Rousseau na elaboração do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens é demonstrar como o direito natural foi submetido à lei civil que teve como substrato principal a violência legitimada pelo engano e ingenuidade do povo ao entregar-se aos ricos e poderosos, em troca de uma suposta segurança, na qual foi garantida se os subordinados entregassem sua liberdade – até porque ela ficaria de certa forma restrita com o surgimento da sociedade civil, os homens não seriam livres tanto quanto antes – e concedessem sua obediência. Os povos instituíram chefes para assegurar a liberdade, para escapar da escravidão, e não o contrário.
A sociedade civil começou com a propriedade. O progresso e a indústria evoluíram com o tempo, pondo fim aos últimos estágios do estado de natureza.
A desigualdade está ligada ao surgimento da propriedade. Mesmo trabalhando tanto quanto o outro, um tem de sofrer, ser escravo do outro. É com a desigualdade que vem um estado de guerra, de todos contra todos, até por que ninguém mais ajuda os outros, apenas fazem o que é de interesse próprio. Para se desvencilhar disso, os vizinhos de uma área precisaram entrar num acordo, estabelecer um contrato. Rousseau tem uma visão negativa a respeito disso, pois o resultado final vai ser favorecer apenas aos ricos, poderosos, senhores de terra, os capitalistas por assim dizer. As sociedades se multiplicaram rapidamente. Esse suposto acordo não impediu os massacres, as desordens, os preconceitos. O principal direito do homem é a liberdade. Os pobres só têm a perdê-la, ou melhor, pode-se dizer que são escravos.
Tendo como pressuposto fundamental a ideia do “isto é meu”, a instituição da propriedade representa efetivamente a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil. O “isto é meu”, além de identificar a posse de algo a alguém, identifica também a acomodação daqueles que permitiram a violação do estado natural com a instituição da propriedade (DA SILVA, p.1, 2010).
Destaca Rousseau em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam o gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (ROUSSEAU, 1983a, p. 259).
A propriedade é entendida por Rousseau da seguinte forma: alguém que diz que tem algo, e esse algo é delimitado, ou seja, pedaço de terra. Nesse pedaço de terra é que são exercidas todas as atividades necessárias para satisfazer às necessidades humanas principalmente para o cultivo de alimentos essenciais para sobrevivência. São por meio dessas necessidades que os homens, se tornam escravos uns dos outros, lembrando que antes eram todos livres, felizes e não eram egoístas. A ambição em querer ser melhor que os outros, em querer ficar acima dos outros, o desejo em dominar o próximo, tudo isso entre vários outros fatores fazem com que os homens sejam egoístas, maus, que produzam os frutos não mais para suprir o necessário à sua sobrevivência, mas para lucrar, se enriquecer a custa dos outros. O mais forte, então, começou a se servir do mais fraco. A vaidade, a ganância, a ambição nascem da propriedade. Concorrências surgiram, viam quem desempenhava melhor certas atividades.
Quando um homem passou a necessitar do outro, a igualdade desapareceu. Como consequência do progresso e da desigualdade surge preconceitos contrários à razão e à virtude. Tendo o súdito apenas a vontade do senhor, e o senhor apenas suas paixões, desaparece a justiça, cria-se um novo “estado de natureza”, fruto da corrupção. O luxo tem papel importante na decadência do Estado e na desigualdade social.
Rousseau faz um apelo para ser ouvido. Ele recorre a tempos distantes, para reconhecer o tempo em que não havia individualidade. O objetivo maior dele é buscar uma restauração das antigas liberdades e tentar reconstruir a ordem tradicional. Ele busca a natureza quase esquecida, ignorada, no homem moderno. Ele tenta atacar também a medicina. Os males como a fadiga e o esgotamento espiritual para Rousseau existem porque os homens já não vivem mais a vida solitária, como a natureza manda.
Com o intuito de defender os pobres, os ricos desejavam na verdade estender guirlandas de flores em suas ainda mais grossas e terríveis algemas, fazendo-os escravos legítimos ao preço de uma liberdade fictícia. Foi desse modo que, para Rousseau, se constituiu o fundamento da sociedade, do governo e das leis (DA SILVA, 2005, p. 1):
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei de propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão, e à miséria. (p. 269-270).
Para Rousseau, o percurso da humanidade é ruim porque o homem esqueceu-se de sua origem com a formação da sociedade civil e foi aos poucos se perdendo. O homem entregou sua liberdade, que antes não era ilusória e dissipou a igualdade.
Rousseau mostra que a sociedade que surgiu com a instituição da propriedade privada é diferente do estado de natureza, pois ela é representada pela forma corrupta do domínio dos fortes sobre os fracos, dos ricos sobre os pobres, dos espertos sobre os ingênuos. Ele denuncia a fragilidade das leis e da sociedade civil. E hoje, como podemos assimilar a visão de Rousseau com o direito contemporâneo? Existe ainda, desde àquela época, fragilidade nas leis? O direito de propriedade, por exemplo, seria este um direito natural do homem ou um ato individual legitimado pelo Estado com o nascimento do poder político? Para podermos responder a estas perguntas veremos primeiramente o que significa direito e sua aplicação na sociedade e depois compararemos com a visão política de Rousseau, não deixando de levar em conta, pois, a época que ele nasceu e elaborou seus questionamentos e suas “teorias”.
Direito: conceito, aplicação e sua relação com a teoria política de Rousseau
Ao fazer uma análise profunda ver-se-á que a questão: O que é Direito? Não tem um conceito unívoco, sendo por assim dizer bastante complexa. Apresentaremos apenas um conceito aprendido superficialmente no desenrolar das disciplinas.
Muitos pensadores, juristas, cientistas sociais respondem a esta pergunta de diversas maneiras, portanto vale lembrar e afirmar que o Direito é um fenômeno multidimensional, ou seja, que pode ser analisado sob múltiplas perspectivas, das quais se podem extrair conclusões corretas, ainda que não sejam idênticas (SILVA, 2010, Cap. 1, p. 21). Tendo em vista as características básicas do direito, verifica-se que:
(...) o Direito é um produto humano, ou seja, é produzido pelos seres humanos, em seu contexto histórico, de acordo com as circunstâncias em que surgem as normas, sendo, pois um fenômeno histórico. (...) o que se destaca no Direito é a sua natureza normativa (SILVA, 2010, p. 23).
Direito é lei e ordem, conjunto de regras obrigatórias, que garante a convivência social, graças ao estabelecimento de limites às ações de ordem de cada um de seus membros. O direito visa à paz, e o caminho para alcançá-la é a luta contra a injustiça. O seu objeto é o ser humano e a sociedade.
O Direito, no sentido de norma é aplicado de acordo com a conduta humana. É o próprio homem quem o criou com o fim de regular a vida em sociedade. Pode-se dizer que ele é expresso por meio das leis, uma forma de consolidar os interesses, direitos, mudanças que ocorrem na sociedade.
Em se tratando do pensamento político de Rousseau poderíamos elucidar algumas questões que têm aparecido como, por exemplo, em que medida ao estabelecer um dever-ser de toda ação política legítima, o autor estaria propondo outro tipo de sociedade? Pode dizer que dessa maneira ele estaria acreditando numa ação política transformadora?
As respostas às essas perguntas e outras já mencionadas anteriormente serão dadas, mas à frente, pois primeiramente vamos um pouco mais adiante.
Conceito de direito: Visão dogmática X não dogmática
A visão dogmática concebe o direito como simples técnica de controle, organização social, certeza, segurança, previsibilidade e pacificação. Identifica o direito a um simples sistema normativo, emanado da autoridade legal, que disciplina as relações vividas em sociedade por intermédio do uso da força institucionalizada do Estado, que propicia certeza, previsibilidade e segurança aos indivíduos (VERBICARO, 2006, p.1), sabendo, portanto que há ameaça de sanções organizadas, do Estado para com o indivíduo.
Através dessa compreensão dogmática do direito podemos observar que o conceito de Direito é atribuído à ideia de norma geral e positiva – direito objetivo – de maneira abstrata e impessoal. Tendo como fim a responsabilidade de conduzir o convívio dos indivíduos em sociedade, dando a cada um que é seu, ou seja, o que é devido por justiça. Essa visão está dentro de uma perspectiva individualista e de uma igualdade formal – através das leis – que são verdadeiras, porém levam a um real distanciamento do direito em relação aos vários fatores que condicionam a convivência do homem em sociedade.
Convenhamos, pois, destacar que existe uma distância descomunal entre o sistema normativo, que nada mais é que um conjunto de normas e a dinâmica da realidade social, que não deve ser analisada dentro de um contexto formal, até por que é inconcebível esse tipo de análise, mas dentro de um contexto político, econômico, social, valorativo que, condicionam a sua existência.
Como o Brasil é um país essencialmente democrático não há como conceber um direito totalizador, formal, individualista e alheio às implicações políticas, econômicas, sociais inerentes ao seu real condicionamento. Além do mais a principal característica de um Estado Democrático de Direito é a igualdade, a liberdade e a proteção da dignidade da pessoa humana. Não podemos deixar de dizer que no Brasil há uma desigualdade muito grande, tanto no que diz respeito à desigualdade econômica quanto social, entre outras. A realidade brasileira por assim dizer é muito complexa.
Diante disso, como poderemos vislumbrar conceitos tais como: bem comum, isonomia, cidadania, igualdade diante de uma realidade tão desigual? O sistema jurídico-positivo é cheio de contradições, o caso das antinomias de 2º grau, por exemplo, mesmo que existam alguns meios de decidir através de qual lei prevalece sobre a outra, em algum caso conflitivo, sempre vai haver dúvidas se aplicação foi correta ou não, se houve de fato justiça ou não. Tanto neste caso quanto das lacunas na lei são questões que até hoje são discutidas por vários estudiosos. Enquanto uns negam esse problema das lacunas dizendo que é problema das leis, dos códigos, e não do Direito afirmando que no Direito há sempre solução para o caso, outros não aceitam essa “teoria”.
Para resolver esses problemas esperamos que o direito devesse deixar de ser mero expectador da realidade, assegurador da ordem e da segurança – visão conservadora – que de certa forma gera uma realidade inconciliável para ser um instrumento de inclusão, igualdade e transformação sócia – visão crítica, reflexiva – a partir de uma proximidade do direito à dinâmica da realidade social, cultural, econômica. Mas vejamos que essa esperança é quase impossível de acontecer, pois:
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção (FILHO, 2003, p.8).
Na visão não dogmática, uma visão mais dinâmica, o direito é compreendido como um instrumento de direção e promoção social, a fim de propiciar condições de possibilidade à consecução de padrões mínimos de equilíbrio sócio-econômico, com a consequente correção de desigualdades sociais, promovendo uma justiça substantiva realizadora de uma igualdade material (VERBICARO, 2006, p.1), ou seja, esse direito é um “direito subjetivo”.
Essa visão nos mostra a superação de uma visão conservadora do direito e adota-se uma visão mais dinâmica, mais crítica, podendo ser chamada de Zetética, pois tem a função especulativa explícita (SILVA, 2010, p.41) dissolve as opiniões pairando dúvidas, sendo compatível, no entanto, com um sistema jurídico aberto, pois aproxima o direito à realidade social, econômica, política, entre outras, gerando bases críticas e reflexivas.
Com essa visão – não-dogmática – que não precisa seguir um modelo de regra como os magistrados seguem no plano empírico, pressupõe um conhecimento jurídico crítico, reflexivo, problematizante a partir de uma interação entre o direito e a realidade social. “As normas jurídicas só podem ser aplicadas de forma legítima e eficaz quando conectadas hermeneuticamente com a realidade social e econômica, integrando-a como parte necessária do sistema legal” (Verbicaro, 2006, p.1).
Aproximação do Direito à visão política de Rousseau e a contribuição de deste para a atualidade
Vale lembrar primeiramente que a própria história do Direito não é apenas a descrição dos fatos passados, mas, sobretudo uma visão crítica das normas, códigos, leis, sentenças, obras jurídicas, bem como das instituições e institutos jurídicos do passado, para que se possa estabelecer uma conexão com o direito atual.
Isso explica a pergunta feita a respeito da fragilidade nas leis, se ainda existe. Pois bem, se Rousseau já sofria críticas por causa das suas obras, acusadas de ser uma afronta aos costumes morais e religiosos é por que de fato estava “entregando” o “ponto fraco” da burguesia. Ele percebeu certa incredulidade no que diz respeito aos direitos iguais, em sua época. Vejamos que até hoje essa percepção ainda existe. Claro que, não existe conjunto de normas perfeitas e que punem totalmente os indivíduos quando cometem delitos. Até por que nem sempre são encontradas as pessoas que o cometem para serem punidas, ou se encontradas nem sempre não punidas de forma como deve, justa por assim dizer – ressalvando que não podemos colocar o que foi dito como uma regra geral. Por isso, é de certa forma inconcebível um estado de direito totalizador.
Rousseau destaca no Contrato Social que a primeira tarefa do legislador é conhecer bem o povo para o qual irá redigir as leis. Não podemos deixar de esclarecer que Rousseau não era um liberal, mas sim crítico do liberalismo. Devido sua forte crítica ao Estado representativo é que nos permite interpretá-lo assim. Não existe para ele uma ação política boa em si mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial.
Diante da pergunta: O direito de propriedade é um direito natural do homem ou um ato individual legitimado pelo Estado com o nascimento da sociedade civil com poderes políticos? Deparamos que Rousseau inclina-se para o segundo argumento.
Através do conceito de direito assimilado à realidade social, surge à dúvida: Será que o direito é de interesse coletivo, como deveria realmente ser, ou dá preferência ao interesse de uma minoria?
Vejamos que de certa forma infelizmente o direito, como norma, está ligado apenas à classe capitalista. Entretanto a legislação deve ser analisada de forma crítica, pois seria uma utopia acreditar e imaginar que feita à socialização da propriedade, estivesse também sendo feita uma transformação na sociedade.
Rousseau tenta buscar o tempo todo aquilo que constrói os pilares de sua engenharia política: a igualdade e a liberdade. Como moralista e filósofo ele anuncia no Contrato Social: “os homens são responsáveis pela sociedade que fazem, qualquer que seja a escusa sociológica que possam encontrar” (Rousseau, p.22, 2001).
Rousseau foi um revolucionário em sua época. Visou estimular a luta da razão contra a autoridade (conflito das luzes contra as trevas). Se buscarmos aproximá-lo à atualidade veja que remeteria a pensarmos mais no futuro da política, dos direitos individuais e coletivos, da cidadania, até algo mais, no sentido do próprio direito. O direito à propriedade, o direito ao trabalho, são de todos, por que então no que tange à concentração de terras e a declaração de renda nos mostram tanta desigualdade?
O MST (Movimento sem Terra) é considerado pela sociedade como um grupo de vândalos, mesmo os que não usam da violência são assim vistos. Se analisarmos de modo mais profundo veremos que são apenas pessoas excluídas de uma sociedade desigual. Se o Estado é responsável pela garantia dos direitos fundamentais do indivíduo, onde está o direito dessas pessoas, a proteção e garantia da dignidade da pessoa humana?
Este movimento é legal perante a lei, e os que usam da violência para ocupar alguma terra são repreendidos pelo Estado. Vejamos que alguém lá atrás disse que ocupar a terra do outro – aquele que possui mais que o necessário – é errado, por isso que é considerado um ato errado, enquanto houve pessoas que se subordinassem a isso não haveria discussão. Onde está o Estado neste momento para assegurar, como diz Rousseau, terras onde a pessoa possa tirar o necessário para sobreviver? Não é preciso violar o direito do outro, ou roubar um pedaço de terra do outro, basta que o Estado seja mais igualitário.
Considerações finais
Vimos que apesar de serem diferentes épocas, as ideias de Rousseau, permanecem vivas na atualidade. Rousseau não acreditava na separação do Estado com o indivíduo, como queriam os teóricos liberais de sua época. Ele deixa claro o tempo todo que o surgimento da propriedade foi um meio cômodo dos ricos garantirem segurança em seus negócios, até porque encontraram pessoas que se subordinassem a isso. A criação do Contrato é uma forma de legitimar o domínio daqueles que tem tudo sobre os que nada têm. O início da civilização, vista por Rousseau é corrupto. O surgimento do governo e das leis, para o autor, é o que de fato veio a legitimar tal dominação. Uma observação importante que não poderíamos deixar de dizer é que Rousseau via que eram necessárias novas cláusulas e leis que distribuíssem igualmente a propriedade, que redesenhassem o uso desta para que não prevalecesse a força e sim o Direito. O que podemos tirar como exemplo é que talvez seja isso que o sistema jurídico esteja precisando, novas cláusulas, novas leis, uma revisão destas para que pudessem resolver o problema das contradições e lacunas nas leis. A busca por Rousseau para tentar explicar as desigualdades atuais consiste em mostrar que não é algo novo, ou que surgiu devido à globalização. O mundo está sempre em transformação, por isso não podemos deixar que nosso sistema jurídico se baseie em momentos passados, ou que permaneça nestes. Se as leis são meios para consolidar as mudanças em sociedade, nada mais que certo elas andarem juntas (fazer leis de acordo com as mudanças). Sendo o Brasil um país de “todos” prevalece, portanto, a democracia. Mas, então, por que interesses de uns é priorizado mais do que interesses de outros? Como já perguntamos no decorrer do presente trabalho e no qual mostramos que infelizmente a lei está ligada à classe dominante. Diante do exposto e da tentativa de aproximar Rousseau ao Direito contemporâneo faz com que pensemos mais na política, indagando-a e criando um direito, por assim dizer, crítico e reflexivo.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Juliana Silva de. Aproximação da Origem da desigualdade entre os Homens na filosofia de Rousseau ao Direito Contemporâneo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24263/aproximacao-da-origem-da-desigualdade-entre-os-homens-na-filosofia-de-rousseau-ao-direito-contemporaneo. Acesso em: 23 dez 2024.
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