1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de aplicação, no âmbito do Direito Tributário, mais especificamente no bojo do processo judicial de Execução Fiscal, da Teoria da Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica, oriunda do Direito Civil e Comercial.
A experiência na cobrança judicial de débitos fiscais tem demonstrado grande dificuldade na localização do patrimônio da empresa devedora que, ao encerrar irregularmente suas atividades, o desvia com o nítido propósito de frustrar a pretensão dos credores.
É evidente que a proteção legal dada às pessoas jurídicas não pode subsistir caso constatado o abuso de direito, com intuito fraudulento e visando se esquivar das obrigações contraídas.
Ocorre que as manobras ilícitas verificadas não mais se restringem ao desvio do patrimônio da pessoa jurídica para a pessoa física, pois há muito já tem sido utilizada a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no âmbito do Direito Tributário, com fundamento no artigo 135, III, do Código Tributário Nacional.
Assim, com o intuito de coibir tais práticas que vêm impedindo a satisfação dos créditos tributários, pretende-se demonstrar a possibilidade de aplicação dessa teoria de Direito Privado no processo de Execução Fiscal tributária.
2 DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Atente-se para a regra geral de que os patrimônios da pessoa jurídica e das pessoas físicas que a compõe são distintos e incomunicáveis. Trata-se, inclusive, da principal razão da existência da figura jurídica fictícia.
Fábio Ulhoa Coelho denomina essa separação entre os patrimônios dos sócios e da empresa de Princípio da Autonomia Patrimonial, segundo o qual essa regra serve de estímulo aos empreendedores que, ao se lançarem em negócios mais arriscados, não comprometem a totalidade de seu patrimônio particular.[1] Tal idéia, hoje corriqueira, somente restou delineada no Direito Brasileiro com o advento do Código Civil de 1916.
Sintetizando o conceito clássico de pessoa jurídica, Maria Helena Diniz o define nos seguintes termos:
“Assim, a pessoa jurídica é a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”[2]
Vale destacar, no conceito acima transcrito, o objetivo da pessoa jurídica, qual seja, a consecução de seus fins. Exige-se, na constituição de determinada pessoa jurídica, além da união de pessoas naturais e/ou de patrimônios, que ela tenha uma finalidade.
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury afirma que a pessoa jurídica é um instituto jurídico, tal qual o casamento, a fiança, o aviso prévio, entre outros. A doutrinadora arremata:
“Pode-se afirmar, então, que a função de um instituto jurídico é satisfazer determinadas necessidades compatíveis com o ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto de uma forma também compatível com o mesmo. (...) a função geral da pessoa jurídica consiste na criação de um centro de interesses autônomos em relação às pessoas que lhe deram origem, de modo que a estas não possam ser imputadas as condutas, os direitos e os deveres daquela.”[3]
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 562.276, de Relatoria da Ministra Ellen Gracie, já consignou a natureza constitucional da proteção dada ao patrimônio das pessoas jurídicas, diretamente decorrente do princípio a livre iniciativa, estampado no artigo 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Texto Constitucional. Na mesma ocasião, ressalvou as hipóteses legais que mitigam essa regra, todas decorrentes de ilícitos praticados pelos sócios na administração da pessoa jurídica.
É certo que tamanha proteção nem sempre é utilizada para a consecução dos fins colimados na criação da pessoa jurídica; tem sido cada vez mais recorrente a utilização, por parte dos sócios, da “blindagem” para o desvio de patrimônio, com o intuito ilícito de frustrar a pretensão dos credores.
Nas palavras de Cezar Fiuza:
“A inteligência humana criadora e produtiva também tem seu reverso. Logo se percebeu que a segurança atribuída pela personalidade jurídica, no que tange à separação patrimonial e à limitação da responsabilidade de seus membros, poderia ser utilizada para fins diversos dos sociais. A partir daí, surge uma teoria que visa considerar ineficaz a estrutura da pessoa jurídica quando utilizada desvirtualmente.”[4]
No mesmo sentido, as observações de Tullio Ascarelli:
“a existência de uma sociedade não pode servir para alcançar um escopo ilícito; a existência de uma sociedade não pode servir para burlar as normas e as obrigações que dizem respeito aos seus sócios; a existência de uma coligação de sociedades não pode servir para burlar as normas e as obrigações que dizem respeito a uma das sociedades coligadas.”[5]
E foi diante dessa desvirtuação da proteção dada à pessoa jurídica que surgiu a necessidade de se desenvolver a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A doutrina aponta o surgimento da teoria no século XIX, nos países que se utilizam do sistema cammow law, Inglaterra e Estados Unidos, denominada de disregard doctrine. A primeira aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de que se tem notícia foi o julgamento proferido pela Suprema Corte Americana, em decisão proferida pelo Juiz John Marshall, no caso Bank of United States v. Devaux, no ano de 1809.
No Brasil, primeiramente, a teoria também encontrou amparo nas decisões judiciais. Somente com o advento do Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/1990, em seu artigo 28, a disregard doctrine restou positivada no ordenamento jurídico doméstico. O dispositivo possui a seguinte redação:
SEÇÃO V
Da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
São diversas e severas as críticas da doutrina a esse artigo, como breve exemplo – por não se tratar do objetivo do trabalho – vale transcrever os comentários de Fiuza[6]:
“Este artigo possui dois problemas sérios. Em primeiro lugar, mistura casos de genuína aplicação da teoria a casos em que não se a aplicaria, por terem outra solução legal, em que os sócio já são penalizados pessoalmente. Em segundo lugar, há um grande exagero no último período do caput, que impõe aos sócios as penalidades do insucesso gerado pela má administração.”
Vários dispositivos se sucederam na previsão da desconsideração da personalidade jurídica, tais como o artigo 18 da Lei n. 8.884/94 (Lei Antitruste), 4º da Lei n. 9.605/98 (Lei de proteção ao Meio Ambiente) e artigo 50 da do Código Civil de 2002.
Cabe, no entanto, verificar o cabimento da teoria no âmbito do Direito Tributário, devido às peculiaridades inerentes a esse ramo do Direito.
3. DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Pela breve explanação acima, vê-se a importância da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, qualquer que seja o ramo do Direito. Entretanto, tal questão ganha especial relevância quando ela é inserida nas relações tratadas pelo Direito Tributário.
O enfoque principal que se pretende é a abordagem do tema sob a ótica do processo judicial de cobrança de dívida ativa tributária, ou seja, no bojo da execução fiscal.
Inicialmente, impende destacar a posição do autor, pela desnecessidade da edição de qualquer lei para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, pois parte do entendimento de que essa teoria se funda em princípios gerais de Direito, como o Princípio da Boa-fé e o Princípio do não enriquecimento sem causa.
Indo além, é possível afirmar que a superação da personalidade jurídica encontra amparo na própria idéia de “Justiça”, mencionada no preâmbulo da Constituição Federal, bem como estabelecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, elencado no artigo 3º, inciso I, da Carta.
Acerca da eficácia dos princípios no ordenamento jurídico, Humberto Ávila discorre:
“As normas atuam sobre as outras normas do mesmo sistema jurídico, especialmente definindo-lhes o seu sentido e o seu valor. Os princípios, por serem normas imediatamente finalística, estabelecem um estado ideal de coisas a ser buscado, que diz respeito a outras normas do mesmo sistema, notadamente das regras. Sendo assim, os princípios são normas importantes para a compreensão do sentido das regras”[7]
Parece evidente que determinada proteção legal não pode subsistir, independentemente de lei permissiva, diante do abuso de direito, do desvio de finalidade, ou de intuito fraudulento.
É certo, também, que a existência de dispositivos legais tratando da desconsideração da personalidade jurídica evita desnecessárias celeumas jurídicas e promove maior pacificação social; entretanto, conforme exposto, não seria imprescindível.
No âmbito do Direito Tributário, a aplicação de regras de responsabilidade passa necessariamente pela análise das disposições do artigo 146, inciso III, da Constituição Federal, que possui a seguinte redação:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
Diante da redação do dispositivo constitucional, depara-se com a seguinte indagação: normas de responsabilidade tributária estão inseridas na obrigatoriedade de lei complementar para normas gerais sobre obrigação tributária?
Alguns julgados têm sinalizado que sim (TRF4, AG 2008.04.00.020961-1, Primeira Turma, Relator Joel Ilan Paciornik, D.E. 21/10/2008). Entretanto, se trata de posição ainda pouco adotada pela jurisprudência, em especial no que tange à desconsideração da personalidade jurídica.
Cumpre ressaltar, contudo, que mesmo se partindo do pressuposto da necessidade de edição de Lei Complementar para regras de responsabilidade tributária, entendemos que a desconsideração da personalidade jurídica encontra respaldo no artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacional.
Alguns autores criticam a posição de que tal dispositivo implique em desconsideração da personalidade jurídica, afirmando que constitui simples responsabilização dos sócios por dívidas alheias.
O que se vê na prática é a adoção, em peso, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, associada ao mencionado artigo do CTN, para redirecionamento de executivos fiscais de dívida tributária, situação amplamente reconhecida pela jurisprudência, conforme exemplificam os seguintes arestos.
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EFEITOS INFRINGENTES. EXECUÇÃO FISCAL. SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO PARA O SÓCIO-GERENTE. POSSIBILIDADE. 1. A existência de indícios do encerramento irregular das atividades da empresa executada autoriza o redirecionamento do feito executório à pessoa do sócio (Precedentes: AgRg no REsp n.º 643.918/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 16/05/2005; REsp n.º 462.440/RS, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 18/10/2004; e REsp n.º 474.105/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 19/12/2003). 2. Ainda que se trate execução desprovida de natureza fiscal, o redirecionamento da execução é possível quando não demonstrado que a sociedade encerrou suas atividade com as formalizações legais ou sem bens suficientes para garantir os seus débitos. 3. "A paralisação das atividades da empresa aliada ao fato da não-quitação de seus débitos fiscais tem o condão de atestar a dissolução irregular a autorizar a desconsideração de sua personalidade jurídica" (TRF da 4ª Região, AI 2009.04.00.043706-5, 3ª Turma, Rel. Des. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DE 29/04/2010). 4. Embargos de declaração providos.[8]
EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. ART. 135, III, DO CTN. POSSIBILIDADE. FRAUDE À LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. PATRIMÔNIO DO SÓCIO AFETADO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.
1. A insuficiência de penhora não se erige a ponto de inviabilizar a execução ante a possibilidade de reforço.
2. Devidamente comprovada a ação fraudulenta do embargante contra a legislação tributária, desconsidera-se a personalidade jurídica da empresa para atingir o patrimônio do sócio. Inteligência do art. 135, III, do CTN.
3. Não se desincumbindo o embargante do ônus da prova, fica mantida a presunção de certeza e liquidez do título executivo judicial.
4. Não incide juros pela TR(ou TRD) apenas no período anterior a vigência da Lei nº 8.218/91.
5. Atendido um dos requisitos objetivos do art. 17 do CPC, é o quanto basta para configurar-se a litigância de má-fé por parte do embargante, que deferida a produção de prova pericial, se omite por mais de 1(um) ano na prática dos ato processuais pertinentes, inclusive em recolher os honorários periciais, inviabilizando a realização desta prova.
6. Remessa oficial e apelações não providas.[9]
Na mesma toada dos julgados acima, Rubens Requião leciona acerca da possibilidade da utilização do instituto nas relações fiscais:
“Não temos dúvida de que a doutrina, pouco divulgada em nosso país, levada à consideração de nossos Tribunais, poderia ser perfeitamente adotada, para impedir a consumação de fraude contra credores e mesmo contra o Fisco, tendo como escudo a personalidade jurídica da sociedade.
Em qualquer caso, todavia, focalizamos essa doutrina com o propósito de demonstrar que a personalidade jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito.”[10]
Dessa forma, possível concluir que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário tem fundamento no artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacional, prescindindo, assim, de novo dispositivo para ampará-la.
A aplicação da teoria, na grande maioria dos casos, ocorre em virtude da dissolução irregular da sociedade empresarial, que se constata quando a empresa fecha suas portas sem a observância das prescrições legais para o encerramento de suas atividades, constituindo, portanto, infração à lei.
O Superior Tribunal de Justiça, não só contemplou essa hipótese de redirecionamento da Execução Fiscal, como a estendeu para os casos de alteração do endereço da empresa sem a comunicação às autoridades competentes. Eis o teor da Súmula n. 435.
“Súmula 435. Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.
Em que pese a súmula ter sido editada há pouco tempo (13/05/2010), a matéria já era exaustivamente tratada na condução das execuções fiscais e na jurisprudência dos Tribunais. Exemplificando, cumpre citar que, no Supremo Tribunal Federal, é possível localizar julgados nesse sentido já na década de 80[11].
Considerando a prática reiterada do redirecionamento dos executivos fiscais aos sócios-gerentes das empresas executadas, durante tantos anos, têm surgido alguns reflexos negativos na tentativa de satisfação do crédito tributário.
O que se tem observado é que o sócio-gerente, em atividade fraudulenta, não mais se atém a esvaziar o patrimônio da empresa executada, mas também tem se valido de estratagemas para desviar os seus bens particulares, incorporando-os a outras pessoas jurídicas.
Diante de situações abusivas e fraudulentas como essa, com o escopo de viabilizar a percepção dos créditos executados, que a desconsideração inversa da personalidade jurídica se demonstra como uma alternativa viável no processo de execução fiscal de dívidas tributárias.
4. DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Como visto acima, na Execução Fiscal de dívida tributária, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem encontrado amparo nos Tribunais, ensejando, há muito, o redirecionamento do feito contra os sócios-gerentes, fazendo com que estes busquem outros meios de se furtar ao pagamento do débito tributário.
A teoria da desconsideração inversa, ao invés de responsabilizar, por dívida da pessoa jurídica, o integrante do quadro societário da empresa, visa a atribuir à pessoa jurídica débito do sócio. Para melhor compreensão, impende transcrever valiosa lição de Fábio Ulhoa Coelho:
“A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens."[12]
A questão aqui, a nosso ver, reside na confusão patrimonial, pois o sócio, visando desviar seu patrimônio e, com isso, fugir de suas obrigações para com credores, constitui nova pessoa jurídica e transfere a ela seus bens; entretanto, como detém seu controle absoluto, continua de posse e usufruto deles.
O princípio da autonomia patrimonial entre pessoa física e jurídica compreende um benefício à sociedade empresária e seus sócios. A partir do momento em que o administrador transfere patrimônio seu para a titularidade da empresa ele renuncia à benesse legal e permite a desconsideração inversa da personalidade jurídica.
De plano, a primeira situação que salta aos olhos é ausência de previsão legal para a sua aplicação; como mencionado acima, os dispositivos legais citados somente englobam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas não sua forma inversa.
Nessa aparente lacuna, percuciente o seguinte excerto da obra de Suzy E. C. Koury:
“Deve-se ressaltar, inicialmente, como fez GÉNY, que nem todo o direito está compreendido na legalidade. Na verdade, a lei escrita é incapaz de resolver todos os problemas suscitados pelas relações sociais, de tal modo que, mesmo nos casos que pereçam enquadrar-se perfeitamente na hipótese prevista na lei, faz-se necessário investigar as realidades sociais concretas, a fim de que a aplicação da lei a elas produza os resultados intentados pelo legislador.”[13]
Analisando essa situação, restou estabelecido na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal o enunciado n. 283, in verbis:
283 – Art. 50. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
A interpretação conferida pelo Conselho da Justiça Federal se refere ao artigo 50 do Código Civil. Entretanto, não vislumbramos óbice à extensão desse entendimento ao Direito Tributário, pois decorre de exercício de interpretação sistemática e teleológica.
Norteando a aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, temos os artigos 124 e 135 do Código Tributário Nacional:
Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
II - as pessoas expressamente designadas por lei.
(...)
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II - os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
Cumpre transcrever, também, o disposto no artigo 50 do Código Civil:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
A interpretação sistemática consiste em buscar a melhor significação da norma, diante de todo o arcabouço jurídico, observando, inclusive, o escalonamento das leis. No presente caso, os dispositivos acima transcritos, interpretados em harmonia com os princípios constitucionais da boa-fé, do não enriquecimento sem causa, da isonomia, do objetivo fundamental da República Federativa do Brasil da busca por uma sociedade livre, justa e solidária permitem concluir pela aplicação da teoria ao Direito Tributário.
Não bastasse, a interpretação teleológica, que busca extrair a intentio legis, vem a corroborar a aplicabilidade da despersonalização inversa, pois, caso a lei pudesse ter previsto todas as fraudes perpetradas sob o manto do princípio da autonomia patrimonial, certamente coibiria severamente essas situações. As disposições existentes visam à proteção dos credores de eventuais ardis realizados pelo devedor de forma aparentemente lícita.
Outro contorno constitucional alcançado pela aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica é o Princípio da Capacidade Contributiva, entabulado no artigo 145, §1º, da Constituição Federal[14]; trata-se de meio a ser utilizado em busca da implementação da Justiça Fiscal.
A teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica encontra grande aceitação no direito privado. Diante disso, cumpre questionar: Seria correto/justo admitir a adoção da teoria para a proteção do patrimônio particular, no âmbito do Direito Civil, e afastá-la na proteção do patrimônio público, afeto ao Direito Tributário?
Sob essa ótica, a resposta há de ser negativa, pois a solução deve observância ao conhecido Princípio da Supremacia do Interesse Público, princípio geral de Direito Público, que determina, no conflito entre interesses públicos e particulares, a prevalência do primeiro.
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o Direito [já em fins do século XIX] deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem estar coletivo”[15]
Não se pode olvidar do brocardo romano: ubi eadem ratio ibi idem dispositio, ou seja, onde impera a mesma razão deve prevalecer a mesma decisão.
As razões adotadas no Direito Civil são as mesmas do Direito Tributário; assim, a solução deve também ser idêntica, destacando, no caso do ramo público, que a teoria estará a beneficiar o patrimônio de toda a coletividade.
Todo o exercício hermenêutico realizado, tanto para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como sua forma inversa, conduzem para a plena aplicabilidade de ambas no âmbito do Direito Tributário.
Concluindo pela aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica no Direito Tributário, impende agora encaixá-la na perseguição da satisfação do crédito tributário no processo de execução fiscal.
Nos termos já narrados, desde meados da década de 80 tem sido aplicado às execuções fiscais tributárias o redirecionamento do débito ao sócio-gerente da empresa devedora, com fundamento no artigo 135, III, do CTN, normalmente, em virtude da dissolução irregular.
A responsabilização do administrador por dívidas da empresa consagra a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e coíbe o desvio fraudulento dos bens da sociedade para o patrimônio do sócio.
Entretanto, evidentemente, a prática reiterada desse redirecionamento tem feito com que os devedores contumazes não mais se atenham a engrandecer seu patrimônio pessoal em detrimento da empresa devedora, frustrando, assim, os anseios do Fisco na busca de seus créditos. O que se observa é a ocorrência cada vez mais freqüente da constituição de empresas, normalmente em ramo diverso da primeira, para a qual o sócio responsável transfere seu patrimônio somente no plano do direito, preservando, no plano dos fatos, sua posse e usufruto sobre ele.
O que se defende aqui é a impossibilidade de o ordenamento jurídico ser utilizado para salvaguardar situações fraudulentas – e irreais –, pois o patrimônio está registrado na propriedade da pessoa jurídica, entretanto, na realidade é da pessoa física.
Diante disso, vislumbra-se a possibilidade de empregar a denominada interpretação econômica que, segundo KOURY:
“(...) surgiu na Alemanha, com ENNO BECKER, em 1919, e consolidou-se definitivamente não só naquele país, como também na Suiça, na Itália e no Brasil, tendo como regra prevalente a de que o Direito Tributário deve dar valor à realidade econômica subjacente em todas as relações jurídicas, de tal modo que adquire relevância especial a substância dos atos, muito mais do que a sua própria forma. (...)
Patente, portanto, sempre que o contribuinte abuse de uma determinada forma jurídica para obter uma evasão tributária, autoriza-se o emprego do método da interpretação econômica. ”[16]
Conclui-se, portanto, pela aplicabilidade da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica no âmbito do Direito Tributário, sempre que o devedor se utilizar da pessoa jurídica com a finalidade ilícita de frustrar a percepção do crédito tributário.
5. CONCLUSÃO
A problemática trazida à tona com o presente trabalho foi relativa à aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica no Direito Tributário, em virtude da ausência de dispositivo legal, bem como pela necessidade de lei complementar para tratar de matéria atinente a obrigação tributária.
Verificamos, entretanto, que a base para a aplicação da teoria no Direito Tributário reside na própria Constituição da República e deriva de princípios gerais de Direito.
Reconhece-se que a edição de lei complementar inserindo a despersonalização inversa no ordenamento jurídico tributário evitaria longas pelejas em sede judicial e traria maior segurança jurídica. Mas a sua ausência não inviabiliza a aplicação, tendo em vista os já citados princípios constitucionais da boa-fé, do não enriquecimento sem causa, da justiça, da capacidade contributiva, da supremacia do interesse público, bem como das técnicas de interpretação que conjugam os postulados maiores com os dispositivos já existentes, tanto no Direito Tributário como nos Direitos Civil e Comercial.
Dessa forma, em que pesem respeitáveis opiniões contrárias, concluímos que a mera ausência de regulamentação (seja por lei ordinária ou complementar) não pode coroar o abuso de direito e a fraude, tampouco permitir que a proteção legal dada às pessoas jurídicas sirva como escudo ao patrimônio de devedores ardilosos, com nítido escopo lesivo aos cofres públicos.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7 ed. São Paulo: Malheiros. 2007.
2.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10 ed. volume 2. São Paulo: Saraiva, 2007.
3.DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
4. FIUZA, Cezar. Direito Civil: Curso Completo. 13 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
5. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. 2 ed. rio de Janeiro: Forense, 2000.
6. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 27ed. vol 1. São Paulo: Saraiva, 2007.
7. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19 ed. São Paulo: Atlas. 2006.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10 ed. volume 2. São Paulo: Saraiva, 2007.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
[3] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. 2 ed. rio de Janeiro: Forense, 2000.
[4] FIUZA, Cezar. Direito Civil: Curso Completo. 13 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
[5] ASCARELLI, Tullio apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. ob. cit.
[6] FIUZA, Cesar, ob. cit.
[7] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7 ed. São Paulo: Malheiros. 2007.
[8] TRF4, AG 2009.04.00.021276-6, Terceira Turma, Relator Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, D.E. 16/02/2011
[9] TRF1, AC 2000.01.00.024264-4/DF, Rel. Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, Conv. Juiz Federal Carlos Alberto Simões De Tomaz (conv.), Sétima Turma,DJ p.57 de 17/03/2006
[10] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 27ed. vol 1. São Paulo: Saraiva, 2007.
[11] v. STF. RE 110.597/RJ.: Min. Célio Borja, 2ª Turma. Decisão: 07/10/1986. DJ de 07/11/1986, p. 21.561.
[12] COELHO, Fábio Ulhoa. ob. cit.
[13] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. ob. cit.
[14] Art. 145. (...)
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
[15] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19 ed. São Paulo: Atlas. 2006.
[16] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. ob. cit.
Procurador da Fazenda Nacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Fernando Dias de. A responsabilidade tributária decorrente da desconsideração inversa da personalidade jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2011, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24294/a-responsabilidade-tributaria-decorrente-da-desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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