RESUMO
Pretende-se com este estudo analisar de maneira sucinta os novos contornos que o afeto conferiu ao conceito de família, a par do julgamento histórico que reconheceu a homoafetividade, como formadora de entidade familiar.
EXPRESSÕES-CHAVE
Organização familiar. Tutela jurídica. Entidade familiar contemporânea. Dignidade. Afeto.
SUMÁRIO
Introdução. 1 Paradigmas de organização familiar e tutela jurídica das famílias. 2 Afeto como valor jurídico. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O Projeto de Lei nº. 2.285/2007 - cognominado de “Estatuto das famílias” (PL nº2.285/2007), almeja, através de uma reforma na legislação civil, conferir a autonomia necessária ao Direito de Família, para adequá-lo aos imperativos das relações familiares contemporâneas, conferindo a este ramo do Direito normas materiais e instrumentais capazes de realizar eficazmente os direitos que pretende tutelar.
Todavia, o PL nº2.285/2007 tem encontrado forte resistência na Câmara dos Deputados. Os pontos de maior polêmica são os relativos ao reconhecimento da união homoafetiva e o que trata do reconhecimento das uniões estáveis formadas por pessoas “separadas de fato”.
Contudo, a resistência encontrada para a aprovação dessas questões pontuais deixa transparecer uma inócua tentativa de negar uma transformação social, que já se produziu e que ao legislador não cabe recusar, porque é fato sociocultural: o afeto como formador da família.
1 Paradigmas de organização familiar e tutela jurídica das famílias
Em decorrência da necessária constitucionalização do direito de família, fez-se indispensável a ampliação do conceito de organização familiar para paradigmas mais democráticos e menos herméticos, condizentes com a nova realidade socioeconômica, as concepções e os valores provenientes da constante mutação da sociedade brasileira.
Com o intuito de atender a essa nova perspectiva, o afeto e a consideração recíprocos, adquiridos com a convivência ostensiva, passam a integrar o conceito contemporâneo de núcleo familiar. “A família instaura-se prioritariamente como um núcleo de apoio e solidariedade. Percebe-se, em consequência, no Direito de Família, um reconhecimento cada vez mais amplo dos efeitos jurídicos do afeto” (MATOS, 2004, p. 27).
Insere-se, por conseguinte, no conceito de família, “núcleo básico, essencial e estruturante do sujeito” (PEREIRA, 2008), a percepção do núcleo familiar constituído como corpo social para além do vínculo sanguíneo. Surgem, assim, os vários modelos de organização familiar.
Dados os arranjos familiares do século XXI, a fim de se respeitar o corolário da dignidade da pessoa humana e tendo em vista os preceitos de igualdade, liberdade, cidadania e democracia, surgiram paradigmas de organização familiar dos tipos mosaico, eudemonista, anapaental, monoparental, homoparental e, ainda, aquele tipo constituído por meio do emprego de técnicas artificiais. Disso extrai-se que: “merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus membros” (TEPEDINO, 1999, p. 139).
Fenômeno mundial, o organograma do tipo mosaico é aquele advindo da constituição de nova família em que um dos cônjuges ou ambos possuem filhos provenientes de outra relação.
Nesse tipo, há um vínculo parental por afeto, um parentesco por afinidade, posto que não haja consanguinidade. Tem-se, novamente, o afeto como célula mater da família que, juntamente com a solidariedade, com a cooperação, igualdade entre seus membros, com respeito mútuo, com espírito de preservação do núcleo familiar e com a autonomia dos indivíduos que a integram, traduz elementos basilares da formação da família deste milênio. Nesse sentido, preleciona Pereira que “a afetividade é o novo – e um dos mais relevantes – imperativos axiológicos do Direito de Família”. (PEREIRA, 2004, p.134)
É também neste milênio que o ser humano busca a felicidade, equilíbrio, prazer e satisfação em suas relações. Surge, assim, um segundo organograma familiar: o eudemonista.
A família eudemonista é pautada pela autonomia da pessoa perante o grupo e pela busca de satisfação e felicidade individual e coletiva. Constitui-se de pessoas que, embora não possuam parentesco, encontram-se unidas em entidade familiar pelo afeto. O núcleo familiar com esse tipo organizacional, porquanto, não subsiste sem o afeto.
Da mesma ideia surge a família homoparental. Ora, a homoafetividade é de todos conhecida há largos tempos. Num Estado democrático de Direito, cuja finalidade é a realização da felicidade e harmonia coletiva, assim, com ideário tipicamente hedônico e cuja Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/1988) foi batizada de “Constituição Cidadã” é inaceitável que sejam desrespeitadas a dignidade humana, as diferenças e principalmente, que seja negado ao indivíduo, cidadão, o direito de constituir família.
Corroborando tal assertiva, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4.277, em decisão unânime, reconheceu, na data de 6 de maio de 2011, a homoafetividade como formadora de entidade familiar. Para tanto, a Suprema Corte “lançou mão” da integração analógica, ante a ausência de regramento legal específico, para aplicar às uniões homoafetivas a mesma disciplina jurídica aplicável às uniões estáveis heteroafetivas.
Nesta senda, pode se afirmar que o STF considerou que o rol do art. 266 da CRFB/1988 trata-se de mera exemplificação do que sejam entidades familiares, considerando, para tanto, a evolução das famílias, seus aspectos civis e constitucionais e a família como núcleo em que a dignidade de cada um se realiza.
Conforme entendimento de Maria Berenice Dias (2006, p.44) e de Sérgio Resende de Barros (2004, p. 616), em outras palavras, a família anaparental ou amparental é aquela em que estão ausentes os sujeitos pai e mãe, mas presentes o afeto familiar e consanguinidade.
O organograma monoparental é constituído pela figura solitária da mãe ou do pai em decorrência da incapacidade de um dos indivíduos, da separação ou viuvez. Há, ainda, monoparentalidade em decorrência da não conjugalidade de ambos os genitores.
O STF, mediante a decisão proferida no julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4.277, firmou o entendimento de que a noção de entidade familiar, “como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductibilidade e adaptabilidade” (LÔBO, 2002). Assim, a entidade familiar merece proteção, independentemente das particularidades de sua formação.
Do exposto, percebe-se que a tutela jurídica ofertada à família dá-se em razão não de sua forma de organização, mas do papel que a família desempenha como estrutura basilar de apoio psicológico e como sustentáculo moral e sócio-cultural do indivíduo, que tem como liame precípuo o afeto.
2 Afeto como valor como valor jurídico
A família hodierna é firmada pelo afeto, do que decorrem a solidariedade, a cooperação e consideração recíproca, que existem independentemente de qualquer liame genético porque adquirido pelo convívio.
Atualmente, em função das transformações socioeconômicas e culturais por que passou a sociedade brasileira e dos novos arranjos familiares delas surgidos, prevalece a assertiva de que “ melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo” (GAMA, 2003, p. 482-483), o que não significa, no entanto, ser de somenos importância o direito à identidade pessoal, que abrange o direito do ser humano de conhecer sua origem genética e ver-se inserido numa ancestralidade. Ao contrário, é fundamental que se garanta à pessoa o direito de conhecer seu patrimônio genético, a verdade biológica e a livre investigação dos liames genéticos.
Deste modo, pode-se afirmar que a filiação transcende a realidade biológica, abrangendo a realidade social, afetiva e cultural do ser humano, em consonância com que estabelece o novo Direito de Família, que atribui ao afeto valor jurídico.
Preleciona Maria Helena Diniz que o afeto enquanto valor está intimamente relacionado com a dignidade da pessoa humana enquanto princípio, pois que constitui o fundamento da comunidade familiar, seja ela biológica ou socioafetiva, devendo o sistema jurídico considerar a afetividade, protegendo-a, para garantir o pleno desenvolvimento e realização de todos os membros componentes da entidade familiar (DINIZ, 2007, p. 22).
O afeto como valor realiza a dignidade e se afirma como um direito fundamental a ser preservado e protegido nas relações familiares, deixando “evidenciar que o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade" (DIAS, 2007, p. 69) porque dele provém o espírito de solidariedade e cooperação, estes capazes de manter a coesão de qualquer célula social.
A afetividade é um bem jurídico retirado da interpretação “sistemática e teleológica” do art. 266, §§ 3º e 4º e art. 227, §1º da CRFB/1988 (GAMA, 2008, p. 82). Desta maneira, pode-se concluir que a afeto como valor jurídico possui fundamento constitucional, ainda que implícito.
Considerações finais
A oposição do legislador relativa ao reconhecimento legal da união homoafetiva e das uniões estáveis como relações fundadoras de entidades familiares, e como tais, dignas de proteção jurídica, não encontra justificativa razoável e plausível, haja vista serem realidades sociais as quais o Judiciário não ignora. Pois, cada vez mais recorrentes as decisões judiciais, no sentido de tutelar todas e quaisquer relações firmadas no afeto, ainda que informais, para conferir-lhes as consequências e efeitos jurídicos delas inerentes.
Uma vez percebida a importância do afeto como formador de entidade familiar, considerando-se, ainda, ser ele fator que contribui à realização pessoal e harmonia coletiva e, com efeito, elemento de realização da dignidade humana, considerando-se, ainda, o direito à diferença, é vedado ao legislador dificultar o exercício desses direitos sob argumentos moralizantes, antiéticos e, por conseguinte, injustos.
REFERÊNCIAS
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais aos operacionais. p. 607-620. In: Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, IBDFAM, 2004. p. 616.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 22ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O Biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro : Renovar, 2003
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios Constitucionais de Direito de Família. São Paulo: Editora Atlas, 2008.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/2552. Acesso em: 6 de maio 2011, às 15h32.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Estatuto das Famílias. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?boletim&artigo=195. Acesso em 25 de fevereiro de 2008, às 18h.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. (Tese de Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba-PR, 2004.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de janeiro: Renovar, 1999.
Advogada. Especialista em Direito. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VERSIANI, Tátilla Gomes. Afeto como substrato da entidade familiar contemporânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2011, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24298/afeto-como-substrato-da-entidade-familiar-contemporanea. Acesso em: 23 dez 2024.
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