RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar de forma detalhada a relação pessoal do filósofo alemão Martin Heidegger com o Estado nacional-socialista que se instaurou com a ascensão de Adolf Hitler ao poder no ano de 1933. Abordará, especificamente, se a política hitlerista alemã, a realidade social e o envolvimento voraz do filósofo com o mundo acadêmico da época foram capazes de levá-lo a aceitar as tentações da ideologia nazista e com ela envolver-se. A influência decisiva de Nietzsche nas tomadas de decisões de Heidegger, utilizando-se do conceito de niilismo, há de ser invocado para salvaguardar os conflitos que se instauraram no subconsciente do filósofo. Por fim, a grande resposta que se busca neste trabalho: Martin Heidegger sucumbiu às idéias “nazi”, impostas pelo 3º Reich, ou sua ideologia e seu trabalho filosófico tornaram insustentável esta relação, fazendo com que ele fosse obrigado, por sua consciência, a se afastar do ambiente político do Estado nazista alemão?
ABSTRACT: The present article has for objective to analyze in a detailed way the German philosopher's Martin Heidegger personal relationship with the State national-socialist that was established with the ascension of Adolf Hitler to the power in the year of 1933. He will approach, specifically, if the politics German hitlerista, the social reality and the philosopher's voracious involvement with the academic world of the time were capable to take him to accept the temptations of the Nazi ideology and with her to involve. The decisive influence of Nietzsche in the sockets of decisions of Heidegger, being used of the nihilism concept, it must be invoked to safeguard the conflicts that were established in the subconscious of the philosopher. Finally, the great answer that is looked for in this work: Did Martin Heidegger succumb to the ideas " nazi ", done impose by 3rd Reich, or his ideology and his philosophical work turned unsustainable this relationship, with what doing he was thank you, for his conscience, the if it moves away of the political atmosphere of the German Nazi State?
PALAVRAS CHAVE: Heidegger, nazismo, niilismo, filosofia Alemã.
KEY WORDS: Heidegger, Nazism, nihilism, German philosophy.
1. INTRODUÇÃO
Para que possamos entender a postura de Heidegger dentro do Estado Alemão devemos analisar suas duas principais atividades naquela época: a primeira diz respeito à sua atuação como membro ativo dentro da Estrutura de Ensino do Estado e a segunda atinente à sua participação como membro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, cujas idéias de Tirania se lhe impunham pelo Estado Nazista pelo simples fato, sua forte atuação dentro dele.
Nesta análise a influência do niilismo em Heidegger é outro assunto que não pode deixar de vir à tona, vez que determinante na tomada de suas decisões frente ao Estado Germânico. Numa fase da vida do filósofo de grandes dúvidas sua obra de maior influência, “Nietzsche - Metafísica e niilismo”, escrita entre os anos de 1946 e 1948 só vem corroborar com a colocação de que o filósofo não conseguiu suportar as atrocidades perpetradas pelo regime e dele se apartou. Nesta temática e com fulcro nas afirmações do próprio Nietzsche, onde aponta ser o niilismo um processo de desvalorização de valores tidos como sagrados, Martin Heidegger conseguiu tornar evidente a compreensão do que lhe foi imposto pelo Estado “nazi” e que mais tarde designou como sendo “um longo processo de enfermidade humana no curso da história” [1]
2. A BUSCA DE HEIDEGGER POR SEUS IDEAIS: A RENOVAÇÃO DA CULTURA ALEMÃ
2.1. Heidegger e a educação do cidadão no Estado Alemão
A relação de Heidegger com o Estado Alemão é delicada. O risco de uma abordagem superficial está justamente em envolvê-lo com as atrocidades perpetradas durante o nazismo[2]; mácula, inclusive, em torno da qual os comentadores de sua biografia se posicionam de duas maneiras bem distintas: - no primeiro grupo encontram-se aqueles que se levantam com um tom inflamado de denúncias e que apontariam para uma qualidade do filósofo de tentar “nazificar” a universidade alemã e, portanto, denunciando intrínseco e fugaz engajamento seu com o nazismo; no segundo grupamento aqueles que vão ao encontro da defesa passional de Heidegger pautada nos ideais culturais e universitários, a mais pura política universitária oficial e que, não querendo se
envolver na prática nazi-militar, almejava, simplesmente, o desenvolvimento da educação e da cultura; inclusive, conforme ele próprio gostava de se auto-intitular em seus discursos “o grande renovador da educação alemã”.
A obra “Ascensão e Queda do III Reich”, escrita por William Shirer[3] relata o grande número de docentes do ensino superior que se submeteram ao processo de “nazificação”. As estatísticas indicam que: “aproximadamente três quartos da população docente permaneceu em seus postos e ao começar o outono de 1933 uns 960 deles liderados por sumidades como: o Professor Sauerbruch, cirurgião; Heidegger, o filósofo existencialista e Pinder, historiador da arte, manifestaram um velado e restrito voto de apoio ao regime nacional-socialista”grifamos. –
No auge de sua carreira como educador vivia-se na Alemanha o período da República de Weimar, acusada de amplo colaboracionismo com as potências que impuseram o Tratado de Versalhes a essa nação no pós primeira guerra. Isso fazia com que tal política causasse descontentamento geral na sociedade civil e em determinadas áreas das forças armadas, em especial, aquela facção representada pela elite militar prussiana. Em 1932 poucos intelectuais mundiais renomados acreditavam na República Alemã, entre eles o jurista austríaco Hans Kelsen, que constatava que para a maioria da juventude germânica as idéias liberais teriam definitivamente fracassado naquele país.
O alemão Carl Schmitt, inclusive, justificaria a necessidade de um Estado que artificialmente regulasse conflitos, possuindo poder absoluto e força ilimitada, sobrepondo-se às individualidades. Manifestou-se: “o liberalismo será incapaz de conter a tendência de desagregação da sociedade civil, causada por conflitos ideológicos e individualistas.”[4] Essa proposta de um Estado “forte” entraria em vigor no Terceiro Reich, instância culminante das diretrizes de Adolf Hitler com autoridade independente de qualquer legitimação inclusive dos poderes Legislativo e Judiciário.
Envolto neste cenário, Heidegger, então Professor da Universidade de Freiburg foi eleito Reitor em 1933, quase por unanimidade. Crédulo de que o novo governo seria uma benesse à cultura alemã em seu discurso de posse professava idéias educacionais revolucionárias para a universidade, as quais se coadunariam com outras que acreditava capazes de restaurar a identidade do povo alemão e formar indivíduos com força produtiva suficiente para tirar o país da crise que se instaurara.
Para o filósofo somente os elementos advindos de um Estado forte, no que compete principalmente às idéias políticas alemãs, faria com que a figura do cidadão germânico fosse capaz de defender seus interesses individuais e de conduzir-se em busca da superioridade educacional e científica. Segundo, Roberto S. Kahlmeyer Mertens[5] em sua obra “Heidegger o Estado e a Educação”: essas idéias se aproximariam das de Carl Schmitt, que via Hitler como a personificação do antigo Estado Absoluto, condutor de uma política de hegemonia étnica, suprimindo conflitos ideológicos e individualistas em que a sociedade sacrificaria seus direitos individuais, obedecendo fielmente às diretivas dadas pelo poder público. Contudo, os dois Autores alemães divergiam entre eles, pois Schmitt via no ditador uma figura necessária à reimplementação e conservação da ordem pública do Estado, Heidegger, por sua vez, o interpretava apenas como o representante de uma revolução social necessária e que apenas implementaria uma política de educação mais bem estruturada no Estado Alemão.
Passada esta suposta aceitação de Heidegger pela reestruturação que surgia no Estado suas idéias no que tangem à política alemã assumem uma feição de repulsa a partir dos anos de 1940, fazendo com que o filósofo não se mostrasse conivente com a ideologia disseminada pelo partido nacional-socialista germânico à época. Presume-se, portanto, que o conceito de cidadão dentro do Estado Alemão, mencionado por Heidegger, estava longe do significado vislumbrado em sua principal obra “Ser e Tempo”, que apontava para a resolução de um indivíduo com um sentido autêntico à realização de sua existência – o ser-aí, capaz de estruturar no jovem alemão um imperativo ético com base na responsabilidade e no cuidado próprio do indivíduo como ser-no-mundo.
Novamente, Kahlmeyer[6] intriga a todos, pois aponta uma clara contradição interna na referida obra “Ser e Tempo”: Fala-se do ser-no-mundo como coisa singular entregue às urgências próprias de sua existência em face do risco do comportamento impessoal; depois, do ser-no-mundo, como aquele que depende de ser autenticamente conduzido pela força a uma realização que não está dissociada do coletivo - grifamos. Posturas estas conflitantes dentro do pensamento de Heidegger e que seriam capazes de “sustentá-lo” dentro da filosofia nazista.
Em diversas oportunidades, Martin Heidegger defendeu a posição de que somente uma universidade criada nos moldes de superioridade e tradição seria capaz de formar os cidadãos e futuros governantes para os estratos sociais. E mais, os cursos técnicos implantados por ele e chamados de “oficinas” jamais tiveram qualquer visão bélica ou desagregadora da paz, frise-se, ao contrário do que ainda hoje alguns comentadores tentam afirmar, jamais houve intenção de utilizar os referidos cursos para a implantação de quaisquer sistemas que pregassem a superioridade bélica, étnica ou de ideais anti-semíticos. Esta superioridade de que fala o filósofo tratava-se apenas da evolução e melhora do indivíduo em termos de profissionalização, em especial daqueles conhecimentos necessários à indústria e escassos naquela época, criando meios de subsistência e, inclusive, qualificando-o para atuar em outras funções, até mesmo segurança do Estado, sempre, segundo Heidegger, no melhor intuito da superioridade do ser.
Para o filósofo, a união da universidade com a escola técnica seria capaz de ampliar o potencial produtivo da nação, fortalecendo o Estado e as condições de um bom governo, para, quem sabe, realizar o ideal da bela cidade platônica (Kallipolis) na própria Alemanha.[7]
Desafortunadamente, tal modelo proposto por Heidegger acerca da união universidade-escola técnica não convenceu, sequer, a comunidade acadêmica da época de que não havia neste ato uma corporificação, crença e obediência disciplinadas àquele Estado totalitário como uma maquina de guerra, o que ensejou, por fim, um imenso desagrado quanto às suas prescrições.
Entre os críticos mais cáusticos em relação às políticas educacionais adotadas por Heidegger estava Erich Jaensch[8], um antigo colega de Heidegger, que escreveu diversos pareceres acusando-o de que: suas idéias e seu conteúdo temático não passariam de ideologia nazi-fascista travestida de filosofia da existência. Também o chileno Victor Farias[9], que trabalhou com Heidegger na Alemanha, em sua obra “Heidegger e o Nazismo – Moral e Política”, acreditava que: “Heidegger contribuiu para a revolução nacional-socialista na universidade redigindo relatórios instando as autoridades a não nomear um professor estritamente ligado ao “judeu” Frankel ou ainda proibiu, por sua própria iniciativa, a participação de não arianos numa cerimônia universitária oficial, o que mostra sim um engajamento do filósofo ao nazismo”. Posteriormente, Guido Scheneeberger publicou textos em 1962, até aquela época desconhecidos, que em sua opinião evidenciariam a adesão plena de Heidegger ao nacional-socialismo nos anos de 1933/34.[10]
2.2. Heidegger e a Tirania no Estado nazista alemão
A experiência filosófica de Heidegger em “Ser e Tempo” representa uma radicalização do movimento iniciado por Husserl[11] no sentido da exteriorização do pensamento. Assim, sua fenomenologia, dita “heideggeriana”, trazia para a consciência do individuo uma forma de abertura do ser-para-o-mundo, ou seja, expunha que a autenticidade do indivíduo ocorria quando ele se sacrificava em prol do destino particular da comunidade e do Estado a que pertencia.
Neste sentido, nada seria mais absurdo que ver nas reflexões do filósofo algo como uma ideologia filosófica do nazismo. Mas, ao contrário, não era este o pensamento de diversos estudiosos de Heidegger. Assim, manifesta-se o doutor em filosofia pela Universidade de Paris, o professor Emmanuel Faye[12], ao observar que “o nazismo está intrínseco na obras de Heidegger”, ou ainda, “o nazismo está no coração dessa filosofia, a convicção nazi de Heidegger vem do fundo da sua filosofia”.
Frisamos de maneira reiterada que, diferentemente desta postura, majoritária e idêntica a de muitos outros expertos, comungamos do entendimento de que não foi na verdade como cidadão privado, mas, sobretudo, como estudioso, em nome de razões filosóficas, que Heidegger envolveu-se com a política “nazi” e se pôs como educador ao serviço dela. Somente estas, as razões que podem afastá-lo das idéias hitleristas, que hoje inquisidores tardios alucinam em impingir ao filósofo.
Mas vale também lembrar que nossa postura é minoritária dentre os apontamentos de outros comentadores e doutrinadores da vida de Heidegger e sua relação com o Estado germânico. Grande parte deles afirma que o nazismo está aí como sub-enunciado e astuciosamente emboscado entre as linhas dos textos “heideggerianos”, potencialmente deslocado de seus escritos, mas colocado na sua idéia de pensar como forma e conteúdo. Para eles seria neste plano pré-ideológico em que se deveria enquadrar o problema Heidegger e a política, Heidegger e o Estado e por fim, Heidegger e o nazismo. Para nós, ledo engano.
Defende esta postura de um nazismo obscurecido e intrínseco em Martin Heidegger, Dias[13], conforme delineia: tanto mais que a relação da filosofia e do Estado, ou da verdade e do poder, não é, nunca foi, extrínseca. Um novo modelo do poder requer um novo modelo da verdade e o inverso. Em especial, a filosofia metafísica moldou-se pelo aparelho estatal e em troca, o Estado sai “fundado”, assegurado numa petição ontológica, reconhecido como a verdade ou a razão realizadas, ou como a realidade de um absoluto, de um universal, espírito em ato. Mas nunca essa filosofia se limitou a “reproduzir” na forma de modelos da verdade estados efetivos.[14]
Na verdade, novamente pedimos escusas aos estudiosos e leitores, mas temos de discordar de Sousa Dias. Entendemos que tal filosofia, ainda que intrínseca às ideologias de Heidegger, jamais chegou a se concretizar em ações contributivas ao estado hitlerista. Inclusive, está apta a rever-se numa forma reativa de “niilismo” às formas de Estado não legitimadas e antidemocráticas, concretizando, por fim, no filósofo, seu ressurgimento espiritual e crença em seus antigos ideais. O deus (sua crença suprema) está morto, como viria mais tarde escrever op filósofo.
E mais, para Heidegger a consideração do nacional-socialismo como destino do povo alemão era apenas a indicação do assentimento da nação alemã na grandiosa missão para seu expansionismo cultural. A justificação de um Estado totalitário, melhor adequado ao mundo moderno dominado pela técnica, não poderia ser aceito. O caráter universitário desse empenhamento, a sua aceitação de funções oficiais, as suas incitações à colaboração patriótica dos estudantes, o seu sonho de fazer da universidade alemã com o hitlerismo a vanguarda de um renascimento espiritual europeu, era a idéia do filósofo como missão da universidade na revolução nacional. Mas por desilusão, com a desvirtuação efetiva do movimento nacional-socialista, com o seu crescente desvio da sua verdade inicial e por perda da fé, Heidegger isolou-se de todas estas relações em uma segunda fase de sua evolução.[15]
Assim notou René Schérer[16] e de seu pensamento compartilhamos: “em Heidegger nunca será posta em causa, nem ao longo de toda a duração do regime, nem depois, uma significação autêntica do nacional-socialismo, o fato de ele se ter historicamente confundido com o destino do povo alemão. Nem outra coisa seria possível: pôr em causa essa significação equivaleria, para Heidegger, admitir como inautêntica também, a sua própria experiência de pensamento fundamental.”
Na verdade, todos esses fatos evocados vêm do calar-se do filósofo, talvez em nome do estado hitlerista, talvez ainda envolto na filosofia do esquecimento sob o ponto de vista do poder do niilismo. Heidegger, oficialmente, jamais respondeu a qualquer questionamento acerca de seu apoio ao nazismo, exceção feita em sua última entrevista antes de morrer ao Der Spiegel em que sem denunciar seu sentimento contra o horror nazista via nisso uma desfiguração de um ideal legítimo alemão e uma indevida apropriação do destino nacional ao expor numa frase avulsa que corrobora com o afastamento de qualquer relação sua com o Estado criado pelo Führer. Descrevo-a já que traça todo um sentimento por si só: “...a autenticidade do indivíduo ocorre quando ele se sacrifica em prol do destino particular, da comunidade e do Estado a que pertence...”
Por fim, há de se aventar em Heidegger uma outra faceta de intelectualidade liberada de seu inconsciente após a decepção política - a poesia, objeto capaz de fazê-lo prosseguir e aprofundar seu pensamento e seus estudos com temas da Pátria e da Terra, confirmando de forma cada vez mais explícita sua desvinculação com o nacionalismo exagerado.
Retoma aí neste momento de sua vida o estudo da verdade do ser e seu amadurecimento através do pensamento político. Mas, nada é mais difícil de ser entendido dentro da mente do próprio Heidegger, porque na verdade não se trata só de aceitar os fatos por que passou, mas de certa forma mudar a maneira de seu pensar, mudar de vida dali em diante, de viver de outra maneira dali para frente, daí todo seu entrosamento com os pensamentos de Nietzsche como uma fuga de parte de seu passado.
3. O NIILISMO ERUPTIVO EM MARTIN HEIDEGGER
A obra de maior influência de Heidegger e que explica sua própria relação interna com o estado nazista foi “Nietzsche - Metafísica e niilismo” [17] escrita a partir do ano de 1946. Tinha como base de estudo a afirmação já desenvolvida anteriormente por Nietzsche em que expunha o niilismo como uma conseqüência de um processo de desvalorização dos valores tidos como sagrados.[18] Ao propor uma interpretação do fenômeno do niilismo, o filósofo, que tinha visto ruir suas aspirações acerca da relação estado-educação, pretendia tornar evidente sua compreensão daquilo que designava como sendo um longo processo de enfermidade humana no curso da história e comprovar sua total desvinculação com os atos decorrentes das atrocidades cometidas pela sociedade acadêmica hitlerista em nome do Estado Alemão.
Acerca do niilismo e do que Nietzsche assinalava a respeito deste fenômeno, declarou Heidegger: Pensado em sua essência, o niilismo é muito mais o movimento fundamental da história do ocidente. Ele traz à tona um curso profundo tal que o seu desdobramento só pode ter ainda por conseqüências catástrofes mundiais. O niilismo é o movimento histórico mundial dos povos da Terra que se estendem em meio ao âmbito de poder da modernidade. Por isso ele não é somente um fenômeno do tempo presente, também não somente o produto do século dezenove, no qual em verdade uma visada mais incisiva para o niilismo vem-a-ser desperto e no qual o nome niilismo se torna usual. O niilismo tampouco é apenas o produto de nações singulares, cujos pensadores e escritores falam propriamente de niilismo. Aqueles que se arrogam livres dele impelem, talvez, o seu desenvolvimento da maneira mais fundamental. Pertence ao caráter sinistro, desse sinistro hóspede, a impossibilidade de nomear a sua própria proveniência. [19]
O niilismo deriva, pois, de um movimento de expansão da crise intelectual e da supressão do fundamento daquilo que fora pensado como sendo a finalidade suprema e que se desagrega por completo, decorrendo daí um processo de despotenciação do espírito, de declínio da crença no deus (objetivo maior) e nos valores sagrados (toda a metodologia usada na busca do objetivo maior) subjacentes a tal crença.
Se considerarmos, retrospectivamente, a obra de Nietzsche, é em função do acontecimento maior, por ele anunciado como sendo a morte de deus, que se abre o horizonte de compreensão do fenômeno do niilismo eruptivo em Heidegger. Todas suas ambições de transformar a juventude alemã através de uma universidade forte estavam mortas, ruíram com as imposições e desvirtuamentos advindos da sociedade hitlerista criada.
De acordo com Heidegger: “O estranho pensamento da morte de um deus e do morrer dos deuses, já era familiar ao jovem Nietzsche. Numa anotação do tempo de elaboração de seu primeiro texto, O Nascimento da Tragédia, Nietzsche escreve: "Creio no dito proto-germânico: todos os deuses têm de morrer". O jovem Hegel menciona, na conclusão do ensaio "Fé e saber", o "sentimento, em que se assenta a religião do novo tempo (a idade moderna) – o sentimento: o próprio deus morreu...". O dito de Hegel pensa outra coisa que o de Nietzsche [pensa] no seu.[20]
A significação deste dito, pelo menos de acordo com a declaração de Martin Heidegger indica que seu deus, como objetivo máximo, meta de todo real, está morto[21]. A partir daí o filosofo perde toda sua força imperativa e construtora e não lhe resta mais nada que possa mantê-lo em direção inicial ou sequer direcioná-lo numa nova direção. A sentença "deus está morto” encerra em si a constatação do niilismo, "o mais sinistro de todos os hóspedes", encontra-se à porta.[22]
Pelo exposto é que se entende que Heidegger sofreu as influências do fenômeno quando percebeu a demolição de seus valores sagrados e da tradição alemã, engendrando, assim, um desmoronamento dos valores culturais, esvaziamento radical de evolução dos ideais da universidade alemã e a ausência de manter-se ativo academicamente nos moldes impostos pela comunidade científica submissa ao Reich. O seu deus, o seu “poder” [23] tinha fadado ao fracasso e ele, Heidegger, não podia aceitar a intensificação e o aperfeiçoamento da ciência e da técnica nos moldes impostos pelo Estado alemão.
4. HANS SLUGA E TOM ROCKMORE - UMA ANÁLISE CONTEMPORÂNEA DO PENSAMENTO “HEIDEGGERIANO” DE ESTADO
Dois escritores contemporâneos que retratam muito bem a obra e a vida de Martim Heidegger são o filósofo alemão, professor da Universidade de Berkeley, Hans Sluga, cujo livro “Heidegger’s Crisis”[24] lança um olhar sobre a complexa relação entre filosofia e política e a participação do filósofo no ambiente político da Alemanha nazista e Tom Rockmore, professor e filósofo da Universidade de Duquesne na Pensilvânia, Estados Unidos, com sua obra “Heidegger: The Introduction of Nazism Into Philosophy.”[25]
O primeiro livro mostra que Heidegger tentou direcionar, inicialmente, o movimento nazista ao desenvolvimento, na tentativa de legitimá-lo através de sua filosofia, mas finalmente desacreditou-se e retirou-se em silêncio. Seu silêncio foi tão profundo que ele nunca comentou sobre qualquer discussão real da necessidade de legitimação filosófica dos acontecimentos políticos e seu envolvimento na política em geral. O segundo, conforme pontua seu escritor “... sem tomar uma postura de ligação ou não de Heidegger com o nazismo busca contribuir para o esforço contínuo em compreender a relação entre o Estado e sua filosofia. Está muito menos preocupado em provar a si próprio ou aos outros que a alma de Heidegger foi salva e em vez disso, esclarece o contexto político, institucional e filosófico em que tudo aconteceu.” Sluga prevê um estudo sinótico da filosofia alemã da era nazista e examina a forma como Heidegger se relaciona com a política da época. Pontua: “... utilizo-me das ações de Heidegger como um centro a elucidar o que os outros filósofos alemães estavam fazendo, pensando e escrevendo, sem me afastar da influência decisiva de Nietzsche em Heidegger...”
A intenção de se citar neste trabalho os dois escritores acima fica na forma diferenciada de seus relatos. Os autores apontados não acusam nem absolvem. Pelo contrário, sustentam a perspectiva e os pressupostos de toda uma geração que procura o controle mais urgente do desenvolvimento da cultura alemã. Linchar Heidegger é bode expiatório acadêmico no pior sentido, para os escritores que o fazem, nada mais é do que uma diversão tática para fugir da responsabilidade intelectual do filósofo. [26]
5. CONCLUSÃO
Um trabalho acerca de divergências tão amplas sobre a vida de Heidegger não se encerra facilmente. Longe de esgotar o tema, espera-se ter conseguido demonstrar alguns aspectos importantes. Primeiro, a evidente relação da temática com o mundo político, tornada clara na proximidade da moral filosófica e da ética e também a congruência que uma análise sobre a conduta deste homem possui com o mundo do dever-ser, palco honorário das divagações sobre os elementos subjetivos que circundaram a época em que se perpetrou o nazismo. Outro ponto é a importância do niilismo como mantenedor de um sistema principiológico, sem que se necessite recorrer a figuras de remorso ou consciência tormentosa para se tratar sobre a conduta humana do filósofo.
Em que pese a postura da maioria dos estudiosos da biografia de Martin Heidegger, em especial Emmanuel Faye e os demais anteriormente apontados, ao colocá-lo a serviço do nacional-socialismo alemão, a ponto de ser contextualizado “nazista”, tendo por pressuposto o carisma pessoal com que era tratado pelo Führer, não pode uma colocação desta ordem völkisch[27]prosperar na ânsia de denegrir toda uma imagem e uma relação íntima de povo-estado-educação traçada pelo filósofo.
Por fim, diante das diretrizes apontadas e influências do niilismo, somos capazes de reconhecer que a própria visão da filosofia do ser-aí impossibilitaram que Martin Heidegger se tornasse um admirador e praticante das atividades perpetradas pelo Estado “Nazi”; reiterando, esta nossa postura ainda é minoritária nos dias de hoje dentre os estudiosos da biografia do filósofo.
Ficam as reflexões para que se possam afastar quaisquer semelhanças entre o pensamento de Heidegger, colocados de forma fantástica em seus escritos, com aqueles delineados na obra Mein Kampf de Adolf Hitler, como, infelizmente, tentam alguns estudiosos concatenar. Mas também fica a colocação de Hans Sluga[28] “é impossível considerar o envolvimento nazista dos filósofos alemães como uma pedra de toque para avaliar a sua filosofia. Caso contrário, teríamos que entregar toda a filosofia, em todas as suas formas, em todas as suas correntes e com todas as suas diferenças, para as profundezas do inferno”. É neste sentido que acreditamos deva ser estudada a obra, a vida e a carreira acadêmica de Heidegger: com a voz da razão, um convite à filosofia, para engajá-lo em uma perpétua análise de todos os parâmetros da linha filosófica criada e desenvolvida, que acena à autenticidade do ser-aí e por fim, seu auto-exílio na Floresta Negra, como forma de punição, não pode ser descartado. Conclusão: impossível, em face dos fatos levantados, ligar Martin Heidegger à doutrina de um regime ditatorial de governo.
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___________________ A sentença nietzscheana – “deus” está morto. tradução de Marco Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Ano de 2003.
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[1] Apud QUIRINO, Túlio Tibério. O niilismo como lógica do Ocidente. Artigo científico. Ano de 2009. Doutor em Filosofia pela UFRJ.
[2] Na década de 1930 o nazismo não era um movimento monolítico, mas sim uma combinação de várias ideologias e filosofias centradas principalmente no nacionalismo, no anticomunismo e no tradicionalismo. Uma de suas motivações foi a insatisfação com o Tratado de Versalhes que era entendido como uma conspiração judaico-comunista para humilhar a Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial. O Partido Nazista chegou ao poder na Alemanha em 1933.
[3] SHIRER, William. Ascensão e queda do III Reich. Tradução de Pedro Pomar. 3ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ano de 1963.
[4] SAFRANKI, R. Heidegger: Um mestre na Alemanha entre o bem e o mal. Tradução de Lya Luft. São Paulo. Editora Geração, Ano de 2000.
[5] KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Filosofia primeira – Estudos sobre Heidegger e outros autores. Rio de Janeiro: Papel Virtual, Ano de 2005.
[6] Idem ao anterior.
[7] Idem ao anterior.
[8] Apud LOPARIC, Z. Heidegger. Rio de Janeiro. Editora Zahar, Ano de 2004.
[9] FARIAS, Victor. Heidegger e o Nazismo – Moral e Política. Tradução de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Ano de 1988.
[10] Apud SHEEHAN, Thomas. Heidegger – the man and the thinker. Precedent Pub. Inc. Chicago. Acessado em 19/10/10 em www.stanford.edu/dept/relstud/Sheehan/pdf/heidegger_texts_online.
[11] Edmund Husserl foi fundador do estudo da fenomenologia e professor de Heidegger. A principal obra do filósofo “Ser e Tempo” é dedicado a Husserl, que posteriormente não a aprovou, o que ocasionou o rompimento entre ambos, mestre e pupilo.
[12] FAYE, Emmanuel. Heidegger. La introducción del Nazismo en la filosofia. Madrid, Akal. Ano de 2009.
[13] DIAS, Sousa. Nota sobre Heidegger e a Tirania – Rizologias 2010. Originalmente publicado na Revista da Associação de Professores de Filosofia da Universidade da Beira Interior. Portugal. Cadernos de Filosofia, nº 02 (Jan/1990 sobre Heidegger).
[14] Idem ao anterior.
[15] PALMIER, Jean Michel. A experiência do pensamento. Apud DIAS, Sousa. Nota sobre Heidegger e a Tirania – Rizologias 2010.
[16] SCHÉRER-ARION, René. Heidegger l’expérience de la pensée. Seghers. Paris, Ano de 1973. Apud DIAS, Sousa. Nota sobre Heidegger e a Tirania – Rizologias 2010.
[17] HEIDEGGER, Martin. Nietzsche: metafísica e niilismo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Ano de 2000.
[18] A este respeito declarou o próprio Nietzsche: O niilismo como estado psicológico terá de se declarar primeiro quando procuramos em todo acontecimento um “sentido” que não há; assim, quem procura perde finalmente o ânimo. Niilismo é então o tornar-se consciente do grande e duradouro desperdício de força, a vergonha de si mesmo, como de alguém que tivesse se enganado durante muito tempo. In DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro. Editora 3Rio. Ano de 1976.
[19] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzscheana - deus está morto. Tradução de Marco Casa Nova - Rio de Janeiro: Relume Dumará, Ano de 2003.
[20] Idem ao anterior.
[21] Apud NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Companhia das Letras. Ano de 1992.
[22] HEIDEGGER, M. A sentença nietzscheana - deus está morto. Tradução de Marco Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Ano de 2003.
[23] Ainda, de acordo com Nietzsche, a natureza deve ser interpretada como expressão da vontade e poder. Neste sentido afirma que a vida como a forma do ser que nos é mais familiar é especificamente uma vontade de acumulação de força que anseia por um sentimento maximal de poder daquilo que se busca.
[24] SLUGA, Hans. Heidegger's Crisis. Harvard University Press. Ano de 1993. ISBN 0674387112.
[25] ROCKMORE, Tom. Heidegger: The Introduction Of Nazism Into Philosophy. Yale University Press. Ano de 2009.
ISBN 0300120869.
[26] John C. Haugeland da Universidade de Pittsburgh, em 2009, comentando o livro de Sluga.
[27] Termo utilizado por Carl Schmitt para pensar um povo étnica e racialmente homogêneo como um “valor” absoluto.
[28] SLUGA, Hans. Heidegger's Crisis. Harvard University Press. Ano de 1993.
Advogado e Físico. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós graduado em Direito Penal e Processo Civil. Professor universitário. Especialista em relações de trabalho e emprego. Coordenador do curso EFPJ Cursos Jurídicos em SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Efren Fernandez Pousa. Heidegger e o Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24698/heidegger-e-o-estado. Acesso em: 23 dez 2024.
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