A partir do término da I Guerra Mundial, o liberalismo econômico puro passou a ser duramente criticado e combatido, sofrendo restrições efetivas. O Estado passou a intervir cada vez mais em atividades antes franqueadas a iniciativa privada, havendo, em determinados locais, a assunção da responsabilidade social.
Surge, então, o denominado “Estado social” para atender aos reclamos de índole assistencial da sociedade, que clamava para que fossem asseguradas condições mínimas àqueles incapazes de prover o seu próprio sustento.
Neste contexto, após a Revolução, a Constituição Mexicana, de 1917, preocupou-se com a incorporação de elementos econômicos no texto constitucional, o que também ocorreu em outros textos constitucionais posteriores, como na Constituição de Weimar, em 1919.
O Estado passa a assumir responsabilidades crescentes como a previdência, educação, habitação e assistência social, ampliando o seu leque de atuação como prestador de serviços essenciais, sendo, então, chamado de “Estado do bem-estar social” (Welfare State).
Contudo, o modelo proposto revelou, de maneira inequívoca, a ineficácia da atuação estatal. Constatou-se a incapacidade do Estado atuar no cenário de concorrência, especialmente no contexto globalizado.
Houve, então, a formalização de um novo modelo de Estado (denominado por alguns de “neoliberal”), revalorizando as forças do mercado, na defesa da desestatização e na busca de um Estado financeiramente mais eficiente, probo e equilibrado, reduzindo-se os encargos criados no pós-guerra, ainda que sem afastar totalmente o Estado da prestação de serviços essenciais.
A participação do Estado e sua influência sobre a atividade econômica em seu território apresentou variações em cada local. O grau de desenvolvimento econômico de um país é, em parte, atribuído ao Estado e às políticas públicas por ele adotadas. A sua interferência na economia, nestes termos, é considerada “essencial” e “natural”. Assim, todo e qualquer Estado foi, é e será interventor na economia. O que sofre variação é o grau e os instrumentos conferidos a esta intervenção, com o fim de se assegurar a maior ou a menor liberdade de mercado.
Assim, o presente trabalho pretende analisar a regência normativa da prestação de serviço público quando esta se dá de forma indireta pelo Estado, ou seja, por empresas privadas por meio de contrato de concessão. Com efeito, o direito do usuário consumidor deve ser garantido, vez que está a se tratar de serviços de suma essencialidade. Nesse mesmo contexto, tendo em vista que o dever de prestar o serviço público continua a ser do Estado, far-se-á, ainda, uma breve analise da atuação das agências reguladoras que fiscalizam e regulamentam essa atuação.
SERVIÇOS PÚBLICOS
Conceituação e contexto normativo
A Constituição da República, em seus artigos 170 e seguintes, dispõe sobre a ordem econômica, determinando os seus fundamentos (livre iniciativa e valorização social do trabalho), suas finalidades (justiça social e valorização da pessoa humana) e seus princípios gerais (soberania, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa da soberania nacional e proteção da micro e pequena empresa).
Em seus artigos 173 (atividade econômica em sentido estrito), 174 (atividade fiscalizatória do Estado) e 175 (serviços públicos), o texto constitucional estabelece as formas de intervenção estatal nos seguintes termos:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
(...)
Assim, esta intervenção poderá se dar de forma direta ou indireta. A intervenção direta se dará como exploração da atividade econômica pelo Estado. Na indireta, o Estado é tomado como agente normativo e regulador da atividade econômica.
Ao se referir à atuação direta do Estado no domínio econômico, na qual se inclui a prestação de serviços públicos, faz-se necessário distinguir esse conceito (“serviços públicos”) das denominadas “atividades econômicas em sentido estrito” sendo certo, contudo, que ambos pertencem ao gênero atividade econômica em sentido amplo. Conforme assinala Eros Grau, serviço público é “o tipo de atividade econômica cujo desenvolvimento compete preferencialmente ao setor público. Não exclusivamente, note-se, visto que o setor privado presta serviço público em regime de concessão ou permissão”.
O conceito de serviços públicos não é apresentado de forma uniforme pela doutrina. Com efeito, a consideração de características determinantes diversas para que uma atividade seja elevada ao patamar de “serviço público”, gera inúmeros conceitos trazidos pela doutrina, notadamente pela doutrina administrativista. E essa dificuldade mais se acentua na medida em que os serviços variam segundo as necessidades e contingências políticas, sociais e culturais de cada comunidade, em cada época.
“Cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico. A qualificação de uma dada atividade como serviço público remete ao campo de concepção do Estado sobre o seu papel. É o plano de escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência, e nos costumes vigentes em um dado tempo histórico”.[1]
A importância de se determinar as atividades que compõe este rol se faz imperiosa ante as garantias contidas na prestação desse serviço, resguardando valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o direito a saúde, ao meio-ambiente equilibrado...
Como define Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Justamente pelo relevo que lhes atribui, o Estado considera de seu dever assumi-las como pertinentes a si próprio (mesmo que sem exclusividade) e, em conseqüência, exatamente por isto, as coloca sob uma disciplina peculiar instaurada para resguardo dos interesses neles encarnados: aquela disciplina que naturalmente corresponde ao próprio Estado, isto é, uma disciplina de Direito Público”.
É possível apontar dois sentidos nos quais a noção de serviço público poderá ser adotada: o conceito de serviço público em sentido amplo e o conceito de serviço público em sentido restrito.
Considerando o conceito de serviço público em sentido amplo, destaca-se a conceituação trazida por Hely Lopes Meirelles[2], definindo serviço público como "todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado" .
José Cretella Júnior[3], do mesmo modo, adotando o sentido amplo de serviço público assim conceitua: serviço público é "toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico do direito público".
O conceito de serviço público em sentido restrito, por sua vez, parte da distinção entre atividade jurídica e atividade social exercida pelo Estado, em que, nesta última, se situa o conceito de serviço público. Ou seja, haverá serviço público onde houver um Estado voltado ao atendimento dos interesses coletivos e bem estar social através do fornecimento de serviços essenciais aos particulares.
Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro[4], que conceitua serviço público como "toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público".
Celso Antônio Bandeira de Mello[5], buscando abranger o substrato material (consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível singularmente pelos administrados) e o elemento formal (consistente em um regime específico de Direito Público, ou seja, numa “unidade normativa”) que caracterizam o serviço público, assim conceitua:
“serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais-, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo” [6]
Para fins do presente estudo, faz-se necessário delimitar quais as atividades serão realmente consideradas serviços públicos.
Em regra, a enumeração das atividades a serem consideradas serviços públicos encontra-se no próprio texto constitucional (artigo 21, 22 e 30) que, inclusive, reparte a competência dos entes federativas para a sua prestação. Assim, são serviços públicos por disposição constitucional[7]:
Art. 21– X, XI e XII, XV e XXIII – CF - incumbe à União Federal prestar, em caráter público, os serviços de correio aéreo nacional, de telecomunicação, de radiodifusão, de difusão de sons e imagens, de energia elétrica de aproveitamento energético de cursos de água, de navegação aérea, aeroespacial, de infra-estrutura aeroportuária, de transporte ferroviário e aquaviário nos casos especificados, de estatística, geografia, geologia e cartografia nacional, de exploração nuclear e correlatos.
ART. 25, § 2º - Aos Estados cabe a exploração de gás canalizado;
Art. 30 – Aos Municípios compete organizar e prestar o serviço público de transporte coletivo (inc. V),
Outros serviços públicos podem ser identificados no texto constitucional (prestar o serviço público de saúde, de previdência social, assistência social, bem como garantir o ensino nos moldes dispostos pela Constituição), mas que, por possuírem regime diverso do ora estudado, não serão objeto de análise no presente trabalho. Com efeito, referidos serviços públicos podem ser prestados por particulares, em regime diverso ao disposto no art. 175 da Constituição Federal.
Conclui-se, portanto, não obstante todas as classificações elencadas, que os serviços públicos são aqueles que possuem indiscutível interesse social e grande abrangência. São serviços voltados a satisfazer a coletividade e não apenas a interesses privados. Não fosse por sua relevância para o todo social, o Estado não teria porque assumir essa atividade e, sobretudo, ampará-la sob regime diverso das relações privadas. Portanto, os serviços públicos devem ser vistos ante sua finalidade de atendimento ao interesse público, ao atendimento das necessidades essenciais ou secundárias da sociedade. E quando se trata de serviços públicos, a regra é serem prestados pelo Estado. Poderão, contudo, ser prestados por particulares, o que será feito por concessão ou permissão.
Quando se está a tratar da prestação de serviço público, de forma direta ou indireta pelo Estado, o dispositivo constitucional em questão é o artigo 175:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado.
Note-se que o dispositivo constitucional versa sobre a prestação de serviço “na forma da lei”, estabelecendo as matérias que deverão ser regulada por este instrumento normativo. Surge, então, a Lei nº 8.987/95 - Lei geral das concessões, que regulamenta o art. 175 da Constituição.
Em seu artigo 7º, a Lei Geral das Concessões, cumprindo os termos do art. 175, parágrafo único, inciso II da CF, estabelece os direitos dos usuários.
Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:
I - receber serviço adequado;
II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos;
III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente
IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;
V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;
VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.
Art. 7º-A. As concessionárias de serviços públicos, de direito público e privado, nos Estados e no Distrito Federal, são obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês de vencimento, o mínimo de seis datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus débitos.
Parágrafo único. (VETADO)
Neste contexto, ou seja, havendo regramento específico para a prestação de serviço público pelos particulares, cumpre indagar sobre a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à referidas relações. A conclusão da doutrina e da jurisprudência é pela compatibilidade dos sistemas normativos.
Com efeito, não há motivo para afastar as normas consumeristas, desde que respeitadas as peculiaridades da prestação de serviço público.
Em termos gerais, a aplicabilidade do CDC se mostra possível a partir do momento em que se identifica a existência de uma relação de consumo, o que se faz por meio da tipicidade dos artigos 2º e 3º:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista
Uma vez verificada que a relação se adéqua à tipicidade da lei, a prestação de serviço será também regida pela lei consumerista. E o artigo 22 não deixa dúvidas quanto à aplicabilidade aos serviços públicos:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código
Neste contexto, contudo, faz-se necessário destacar que o serviço a ser considerado somente poderá ser aquele “uti singulis”, ou seja, aquele individual e singularmente fruível por cada pessoa, e remunerado de forma própria, qual seja, mediante tarifa ou preço. Não se aplica, portanto, aos serviços públicos “uti universi”, custeados por meio de tributos.
“Aplicam-se as normas do CDC aos serviços públicos executados mediante o regime de concessão, cabendo ao interprete potencializar a utilização das normas do Código em conjunto com as regras protetivas do consumidor, existentes nas leis específicas que regulam cada um dos serviços” (conclusão n. 2 do V Congresso Brasileiro de Defesa do Consumidor, BH, 2000 – reprodução encontrada no livro de Cláudia Lima Marques, em que a autora procura relacionar a aplicabilidade pelo chamado “diálogo das fontes” pelo qual, sendo o usuário e o consumidor hipossuficientes, a proteção do CDC seria aplicável a ambos).
A jurisprudência do STJ mostra-se enfática neste sentido, reafirmando o posicionamento em diversos acórdãos, sobre os mais diversos conflitos:
PROCESSO CIVIL E DIREITO ADMINISTRATIVO – AGRAVO REGIMENTAL – SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÕES – TELEFONIA FIXA – DISCRIMINAÇÃO DE PULSOS ALÉM DA FRANQUIA – SISTEMÁTICA DE MEDIÇÃO – LEI GERAL DE TELECOMUNICAÇÕES X CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
1. De acordo com o art. 21, XI, da CF/88 e com a Lei 9.472/97 – Lei Geral de Telecomunicações, a ANATEL detém o poder-dever de fiscalização e regulação do setor de telefonia em relação às empresas concessionárias e permissionárias, o que inclui o papel de controle sobre a fixação e o reajuste das tarifas cobradas do usuário dos serviços de telefonia, a fim de, dentro dessa linha principiológica, garantir o pleno acesso às telecomunicações a toda a população em condições adequadas e com tarifas razoáveis.
2. Nos termos do art. 175 da CF/88 e da Lei Geral de Concessões, Lei 8.987/95, a fixação das tarifas devidas em retribuição ao serviço prestado pelas concessionárias ocorre no ato de concessão, com a celebração do contrato público, precedido do indispensável procedimento de licitação, sempre buscando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
3. A despeito disso, não existe regra específica quanto à quantidade de tarifas ou quanto aos limites dessa cobrança, deixando a Lei Geral de Telecomunicações ao prudente arbítrio da ANATEL o papel de regulação e fiscalização dos serviços de telefonia fixa e móvel.
4. Até a edição da Lei 9.472/97, não havia qualquer previsão em lei ou em regulamento que obrigasse as concessionárias ao detalhamento dos pulsos locais excedentes, a exemplo do que ocorre com as chamadas de longa distância nacional e internacional.
5. A mudança na nova sistemática de medição e de detalhamento dos serviços de telefonia veio para dar cumprimento à também moderna tendência de transparência nas relações de consumo trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 6º, III, a qual encontrou eco no art. 3º, IV, da Lei Geral de Telecomunicações.
6. O processo de modernização e digitalização das centrais de comutação do sistema iniciou-se na década de 80 e foi incentivado pelo Poder Público e, partir de sua criação, pela ANATEL, que, com base na Lei 9.472/97 e no Decreto 4.733/03, fixou, pela Resolução/ANATEL 423, de 6 de dezembro de 2005, como termo final para que as concessionárias se adaptassem à nova modalidade de cobrança dos serviços (por tempo de utilização, e não mais por pulsos), o dia 1º de agosto de 2006 (item 8.4 da Resolução), prazo que foi dilatado por mais 12 (doze) meses pela Resolução/ANATEL 432, de 23 de fevereiro de 2006.
7. Não existe incompatibilidade entre o sistema de regulação dos serviços públicos de titularidade do estado prestados de forma indireta e o de proteção e defesa do consumidor, havendo, ao contrário, perfeita harmonia entre ambos.
8. Agravo regimental não provido. [8]
Portanto, não restando dúvidas a respeito da aplicabilidade da norma consumerista, cumpre analisar como compatibilizá-la à prestação de serviço público, que contém aspectos peculiares traçados pela Constituição e pela Lei 8987/95.
Princípios do Serviço Público
A prestação de serviço público, seja de forma direta, seja de forma indireta, envolve a relação Estado X cidadão, em uma manifesta relação regida pelo direito administrativo. Sendo assim, essa atividade possui características que lhes são próprias, não existentes na prestação de serviço comum. Por isso, a necessidade de serem levadas em consideração quando da aplicabilidade de diplomas normativos diversos.
Conforme já mencionado, as características dos serviços públicos sofrem variações segundo as necessidades e contingências políticas, sociais e culturais de cada comunidade, em cada época. A doutrina francesa, contudo, costuma apontar três princípio comuns à generalidade dos serviços públicos: a) mutabilidade; b) continuidade e c) igualdade.
No Brasil, algumas divergências são encontradas na renomada doutrina.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro[9] e Diógenes Gasparini[10] arrolam os mesmos princípios enunciados pela doutrina francesa.
Hely Lopes Meirelles[11] enumera cinco princípios: a) princípio da permanência (continuidade do serviço público); b) princípio da generalidade (correspondente ao princípio da igualdade) ; c) princípio da eficiência (correspondente ao princípio da mutabilidade); d) princípio da modicidade (das tarifas); e) princípio da cortesia.
Celso Antônio Bandeira de Mello[12], por sua vez, baseado nos princípios que norteiam a atividade administrativa como um todo, enumera dez princípios norteadores desta atividade estatal: a) Dever inescusável do Estado de promover-lhe a prestação (de forma direta ou indireta); b) Princípio da supremacia do direito público; c) Princípio da adaptabilidade (atualização e modernização); d) Princípio da universalidade (generalidade); e) Princípio da impessoalidade (inadmissibilidade de discriminação entre usuários); f) Princípio da continuidade; g) Princípio da transparência; h) Princípio da motivação; i) Princípio da modicidade das tarifas; j) Princípio do controle;
São princípios que devem ser observados, trazendo algumas consequências quando da aplicação do Código de Defesa do Consumidor[13]:
- Necessária conjugação os direitos básicos do consumidor (art. 6º CDC) aos direitos dos usuários previstos no art. 7º da Lei nº 8.987/97.
- Responsabilidade solidária do Poder Público titular com a empresa privada que o executa (art. 7º, parágrafo único; art. 14 e 25, §1º, CDC)
Art. 7° (...) Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.(...)
Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.
§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.
- Responsabilidade objetiva do Estado (art. 14, §3º CDC + art. 37, §6º da CF)
“Incide a responsabilidade objetiva das empresas concessionárias quanto aos danos ocasionados na prestação de serviços, cabendo ao consumidor, desse modo, unicamente: a) A prova da efetiva ocorrência do dano; b) Do nexo de causalidade entre a ação ou omissão da empresa e a ocorrência do dano; c) Do montante do prejuízo” (Conclusão n.4 do V Congresso Brasileiro de Defesa do Consumidor, BH, 2000 – disponível em Comentários ao CDC, Cláudia Lima Marques).
- Proteção na cobrança de dívidas e direito ao dobro do pago indevidamente (art. 42, CDC): AgRG no Ag 777.344/RJ
O CONTROLE DO ESTADO SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO POR PARTICULARES
O Papel das Agências Reguladoras
Já se verificou oportunamente que o Estado, possuidor do dever de garantir a prestação de serviço público aos cidadãos (usuários), poderá, nos termos do art. 173 da Constituição Federal, prestá-los de forma indireta, ou seja, por meio de empresas particulares, através da realização de contrato de concessão ou permissão.
Ocorre que ainda que prestados por particulares, o serviços públicos não deixam de possuir características que lhes são próprias, advindas da relação Estado - cidadão, devendo, portanto, observar os princípios administrativos previstos para esta atividade estatal.
Caberá ao Estado zelar pela observância dessas características.
Sendo assim, conforme já elucidado no início do presente trabalho, terá lugar uma nova forma de atuação Estatal na atividade econômica, agora não mais como prestador de serviço (já que a atividade foi repassada a particulares), mas sim como entidade reguladora e fiscalizadora, nos termos do art. 174 da Constituição Federal:
Surge, então, a atividade a ser exercida pelas denominadas Agências Reguladoras.
As Agências Reguladoras são autarquias “sob regime especial” criadas, em regra, para disciplinar e controlar certas atividades[14]:
a) Serviços públicos propriamente ditos (ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações, ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres, ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários, ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil)
b) Atividades de fomento e fiscalização de atividade privada (ANCINE – Agência Nacional do Cinema);
c) Atividades exercitáveis para promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria de petróleo (ANP – Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis);
d) Atividades que o estado também protagoniza (sendo, neste caso, serviços públicos), mas que, paralelamente, são facultadas aos particulares, tais como serviço de saúde (ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária e ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar).
e) Agências reguladoras do uso do bem público (ANA – Agência Nacional de Águas)
Com a crise do Estado social, o Estado passou a transferir ao setor privado atividades de sua competência, mas que não poderiam ser deixadas ao livre funcionamento do mercado, vez que consistiam em atividades de suma importância para a garantia de valores fundamentais do ser humano (vida digna, saúde, etc.). Assim foi sendo criada a figura do Estado regulador para exercer a função de regulação e controle sobre essas atividades delegadas.
Assim, “o Estado regulador é o novo perfil do Estado contemporâneo, que se afastou da prestação efetiva de diversas atividades, transferindo-as aos particulares, sem, contudo, abandonar totalmente os setores que deixava, já que permaneceu neles regulando e acertando (fiscalizado) a conduta privada” [15].
A regulação exercida pelas agências possui papel fundamental no cumprimento das políticas determinadas pelo Estado. Com efeito, a função regulatória é essencial para a eficiência do processo de globalização econômica, garantindo a circulação de capital, o investimento tecnológico em países em desenvolvimento como o Brasil. E para que os investimentos ocorram, é necessária a segurança jurídica, o que pode ser garantida pelo Estado por meio da atuação das referidas agências.
A concessão de serviços públicos envolve, portanto, o interesse de três partes: o Estado (que delega função que lhe seria própria, incentivando o desenvolvimento econômico e tecnológico), o concessionário (empresa privada que visa notadamente o lucro de sua atividade) e o usuário (pessoa física ou jurídica que detém a garantia de prestação dos serviços que lhes são essenciais, e que devem ser cumpridos e respeitados).
Sendo assim, a atividade do órgão estatal regulador deve sempre ser preservado o objetivo de harmonizar os interesses do usuário / consumidor, como preço e qualidade, com os do concessionário / fornecedor, como a viabilidade econômica de sua atividade comercial, como forma de perpetuar o atendimento aos interesses da sociedade.
Em respeito ao princípio da legalidade, o instrumento regulatório deve ser determinado por Lei. Surge então a questão da legitimidade da regulação da atividade por atos normativos, que o são quando emanados dessas autarquias sob regime especial.
O Estado, em sua pretensão de regrar e disciplinar a economia, sempre dinâmica, não pode sempre aguardar um moroso trâmite do processo legislativo. Ademais, a especialização técnica do serviço a ser prestado justifica a necessidade de que as normas sejam emanadas de um corpo dotado de conhecimento técnico, sob pena de se tornarem inócuas ou inapropriadas aos fins a que se destinam. Assegurando, pois, a necessária a circulação de capital e a necessária segurança jurídica para que os investimentos ocorram no país. Devem, portanto, editar normas de caráter estritamente técnico, da alçada do poder concedente, não podendo invadir a competência legislativa.
Até o início da execução do programa de desestatização, o Brasil contava apenas com regulações o Banco Central do Brasil, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e da manutenção de estoques produtivos, tais regulações eram realizadas basicamente com o aumento ou diminuição de impostos para beneficiar este ou aquele setor, com o controle se fusões e incorporações, e com a venda de produtos no mercado interno para o controle da elevação de seus preços. Após a instituição do programa, em 1997, foram criadas a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), ANP (Agência Nacional do Petróleo) e a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), todas elas para a regulação e controle de atividades até então exercidas pelo Estado como monopólio.
O “regime especial” a que são submetidas as agências reguladoras configura-se existência de autonomia política, financeira, normativa e de gestão. A autonomia e independência concedidas às agências reguladoras são fundamentais para que a mesma possa exercer adequadamente suas funções. Com efeito, o poder econômico exercido pelos grandes blocos empresariais deve ser contido, vez que o maior bem jurídico sob tutela, quando se trata da prestação de serviço público, é o interesse comum, não podendo estar sujeita às constantes intempéries políticas.
Portanto, em última análise, a função primordial das Agências Reguladoras é adequar os interesses das partes interessadas na prestação de serviço público, ou seja, compatibilizar os interesses do Estado (quando aos investimentos econômicos e tecnológicos trazidos pelas grandes empresas), da empresa privada (que visa o lucro), e do usuário (que possui a garantia constitucional em ver os serviços públicos adequadamente prestados). Deve, portanto, compatibilizar a qualidade do serviço prestado com a tarifa a ser paga. Tais elementos devem ser equivalentes e atender os anseios da sociedade, equacionando o serviço desejável com o preço que se dispõe a pagar. Os preços devem ser justos para serem baixos ao consumidor, e garantirem adequada taxa de retorno ao capital investido.
BIBLIOGRAFIA
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MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 2007.
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TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Editora Método. 2006.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª edição. P. 634
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros
[3] CRETELLA JR, JOSÉ. Curso de Direito Administrativo, Ed. Forense.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas.
[5] Mello, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p. 643
[6] Mello, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p. 643
[7] Segundo André Ramos Tavares, Direito Constitucional Econômico, 2ª edição. p. 300
[8] AgRg no REsp 1041277 / MG AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2008/0058313-2; relatora: Ministra ELIANA CALMON, DJe 04/11/2008
[9] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas
[10] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros.
[12] Mello, Celso Antônio Bandeira de. op. cit.
[13] Anotações da aula ministrada pelo professor Alexandre Amaral Gavronski no 8º Curso de Especialização em Interesses Difusos e Coletivos da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.
[14] Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello. Op. Cit. p. 155 e 156
[15] Tavares, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2ª edição. p. 306 e 307
Procuradora Federal, professora universitária, especialista em direito público e interesses difusos e coletivos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MECELIS, Adriana. A proteção dos direitos dos usuários de serviços públicos - aplicação do CDC e atuação do Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2011, 08:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24729/a-protecao-dos-direitos-dos-usuarios-de-servicos-publicos-aplicacao-do-cdc-e-atuacao-do-estado. Acesso em: 23 dez 2024.
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