Não raro, são publicados no veículos oficiais diversos editais titularizados pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, pelos quais se pretende instituir processo de Avaliação Socioeconômica para o Programa Nacional de Assistência Estudantil, para viabilizar a concessão de auxílio financeiro (bolsas) aos estudantes matriculados nos cursos oferecidos, com a finalidade de minimizar desigualdades sociais vivenciadas por aqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade socioeconômica, evitando, desta forma, a evasão escolar1
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFEs) foram criados pela Lei nº 11.892/2008, como entes integrantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculados ao Ministério da Educação e dotados da natureza jurídica de autarquia, e, como tal, detentoras de autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar (artigo 1º, parágrafo único).
O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi instituído pela Portaria Normativa/MEC nº 39/2007, tendo sido regulamentado pelo Decreto nº 7.234/20102.
Da leitura do caput do artigo 1º desta espécie normativa, depreende-se que o PNAES “tem como finalidade ampliar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal”3, por meio da democratização das condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal, da minimização dos efeitos das desigualdades sociais e regionais e conclusão da educação superior, da redução das taxas de retenção e evasão e da contribuição para a promoção da inclusão social pela educação (incisos I a IV do artigo 2º).
Consoante artigo 2º da lei instituidora dos IFEs, os “Institutos Federais são instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, nos termos desta Lei”.
Na dicção do artigo 7º da Lei nº 11.892/2008, os IFES consubstanciam-se em entes públicos ofertantes de: educação profissional técnica de nível médio (inciso I), cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores (cursos de capacitação, inciso II), processos educativos, atividades de extensão e pesquisa (incisos III, IV e V) e educação superior (inciso VI), o que revela a pertinência da ponderação acerca da admissibilidade da concessão, pelos Institutos, daquele tipo de apoio financeiro, face a esta natureza multifacetária, que lhe é peculiar.
O ponto nodal do presente estudo reside na seguinte indagação: “Se o objeto dos editais for a concessão de bolsas para estudantes matriculados nos cursos de nível médio, formação inicial e continuada, ensino técnico e/ou graduação e como a norma regente (Decreto nº 7.234/2010) alude apenas aos alunos registrados nos cursos de educação superior, estariam os IFEs legitimados para esta demanda, face à expressa previsão daquele diploma?”.
Para desvendar esta questão, torna-se preciosa, de início, a remissão ao arcabouço fundante de todo o ordenamento normativo pátrio, qual seja, a Constituição Federal de 1998. Tal diploma, em seus artigos 205 a 214, versa sobre a “Educação”, estabelecendo parâmetros mínimos para as políticas públicas referentes a esta área.
Com esteio na indispensabilidade do ensino como condição para o pleno desenvolvimento da pessoa humana, o artigo 206 da Carta Federal, instituiu que:
Art. 206 O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola
(…).
Destarte, vê-se que o legislador constitucional reservou ao Poder Executivo a missão basilar não só de garantir a educação, em si, como também de facilitar e promover a igualdade de acesso a esse serviço essencial à sociedade e a permanência dos alunos na escola.
Nessa esteira, se a educação é direito de todos e dever do Estado, revela-se que o mesmo, garantindo o “acesso” e a “permanência” do aluno na escola, deve considerar que os nacionais que se encontram em situação de marginalidade social e econômica são detentores dos mesmos direitos (diga-se, direitos subjetivos) que aqueles que se encontram em situação diversa, mais favorecida.
Assim, impõe-se que o Estado, como “provedor” desses direitos fundamentais proponha medidas que sejam idôneas para sanar, ou pelo menos minimizar as desigualdades/deficiências de um grupo, a fim de proporcionar-lhe igualdade de condições em relação ao outro grupo, ou seja, àquele que não se encontra em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A propósito, esta medida traduz-se em uma das mais puras manifestações do princípio da isonomia, que impõe ”tratar os iguais de maneira igual e os desiguais na medida da sua desigualdade”4.
Note-se que a Lei de Diretrizes e Bases, nº 9.394/1996, em seu artigo 3º, inciso I, repete aquela previsão constitucional, consagrando como princípio da educação a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.
Partindo-se dessa premissa, tem-se o Decreto nº 7.234/2010 que, disciplinando o PNAES, contempla a ampliação das condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal, democratizando-as (artigo 2º, inciso I).
Da leitura sistemática da Constituição Federal, do supracitado Decreto e das Leis nº 9.394/1996 (LDB) e nº 11.892/2008, reside a ilação de que os IFEs também estão legitimados para a promoção dessas ações afirmativas, mesmo que não apenas voltadas para os jovens na educação superior pública federal, mas também para todos aqueles que, em qualquer nível educacional que seja, careçam de incentivo e suporte para ter por satisfeito o direito à educação que lhe assiste.
No artigo 3º do Decreto nº 7.234/2010, mais uma vez, ratifica-se que o programa objetiva o “atendimento de estudantes regularmente matriculados em cursos de graduação presencial das instituições federais de ensino superior”. A interpretação isolada deste dispositivo poderia nos direcionar a uma dedução teratológica, de que aquela norma apenas permite a concessão das chamadas “condições de permanência” para os alunos matriculados em cursos de graduação (educação superior) oferecidos pelos Institutos.
À luz da inarredável interpretação coesa dos textos legais (interpretação sistemática), pela qual dessume-se que os mesmos devem ser tomados em sua conjuntura e não como pequenos “fragmentos de lei”, isoladamente, vale observar o teor dos seguintes dispositivos do multicitado Decreto:
a) artigo 4º : As ações de assistência estudantil serão executadas por instituições federais de ensino superior, abrangendo os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, considerando suas especificidades, as áreas estratégicas de ensino, pesquisa e extensão e aquelas que atendam às necessidades identificadas por seu corpo discente.
Perceba-se que o texto menciona ser relevante a consideração das “especificidades” dos Institutos, o que dá margem para um juízo interpretativo ampliativo, posto ser uma peculiaridade dos mesmos o oferecimento de cursos de diferentes níveis e abordagens.
A diversidade quanto à oferta educacional de cursos é um traço distintivo dos IFEs e das típicas Universidades Federais (UFs), já que aqueles, embora se equiparem a estas para alguns efeitos (como preceitua o artigo § 1º do artigo 2º da Lei nº 11.892/2008), não podem ser considerados “equivalentes” às UFs, indistintamente.
O que se quer demonstrar é que, em que pese o legislador tenha zelado por ressaltar, nesse dispositivo, a inafastabilidade das especificidades dos IFEs quanto à promoção de ações de assistência estudantil, foi omisso ou (e por que não?) negligente quanto à restrição que prega como objeto do PNAES a ampliação das condições dos jovens na educação superior pública federal, o que, bem dizendo, limita a ação dos Institutos Federais, ofertante de outras modalidades de ensino, além dessa em específico.
Cogita-se, por sinal, que essa negligência do legislador pátrio em relação aos IFEs (Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia) possa ocorrer dado à recente criação dos mesmos (2008) e sua consequente carência de destaque político no cenário atual, que, como se é de esperar, é protagonizado pelas instituições públicas mais longevas.
A propósito, nos dias 06 e 07 de dezembro de 2010, foi realizado, na cidade de Fortaleza, Seminário denominado “Construção de Diretrizes para as políticas de Assistência Estudantil da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica”, realizado pela CONIF (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Ceará (IFCE).
No Relatório oriundo deste Seminário, se registrou:
Os Institutos federais tem características próprias, considerando que objetivam a verticalização do ensino. A verticalização supõe o oferecimento de diversas modalidades com públicos distintos. Nas modalidades técnico integrado e técnico concomitante ao ensino médio temos estudantes adolescentes, numa etapa de vida de desenvolvimento emocional e desenvolvimento dos corpos; na modalidade subsequente tempos em sua maioria adultos trabalhadores; nos cursos de graduação tempos os jovens adultos com as inquietações de quem irá iniciar a inserção socioprofissional. Há de se falar também dos cursos PROEJA e FIC, voltados para adultos que querem uma formação profissional e não tem a escolaridade exigida em outras modalidades. São estudantes que estão em defasagem de escolaridade em relação à idade. Suas demandas são outras. Fora essas modalidades, ainda temos os cursos de pós-graduação, que recebem estudantes com escolaridade superior já com uma bagagem intelectual. Pensar em ações integradas significa olhar para esta diversidade de públicos e suas características.
Se a intenção da política denominada PNAES é precisamente a de democratizar as ações de permanência do aluno na escola, não há como se vislumbrar a exclusão da atuação dos IFEs naquele programa, simplesmente por apego à formalidade e à interpretação literal do Decreto nº 7.234/2010, que, por um lado, apregoa que as ações de assistência estudantil deverão ser executadas pelos IFEs mas por outro, tolhe tal participação, ao balizá-la apenas ao âmbito de determinado nível de ensino (superior) - discrepância detectada, supostamente pela já mencionada falta de olhar acurado e cuidadoso do legislador às peculiaridades dos Institutos, como já dito, entes apenas equiparados, e não idênticos às universidades federais.
Anote-se que a interpretação literal, ou seja, a tentativa da reconstrução do pensamento do legislador por meio das palavras da lei, deve ser associada a outros métodos interpretativos, no anseio de se alcançar o exato significado da mens legis, pois, como bem ressaltou Francesco Ferrara, “entender uma lei (…) não é somente apreender de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as direções possíveis (...)”5
b) Parágrafo único do artigo 4º: As ações de assistência estudantil devem considerar a necessidade de viabilizar a igualdade de oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho acadêmico e agir, preventivamente, nas situações de retenção e evasão decorrentes da insuficiência de condições financeiras.
Se a democratização do ensino se corporifica na implementação de ações para acesso e a permanência do estudante na escola, é conclusão lógica que os Institutos, imbuídos nessa missão e diante de suas especificidades, promovam medidas preventivas que propiciem ao estudante (financeiramente) carente sua fixação na instituição educacional,
Destaque-se trecho do citado Relatório:
Desse modo, entende-se que para atender ao estudante de forma integral, é preciso estabelecer políticas institucionais, a exemplo da Assistência Estudantil, cujas intervenções no contexto escolar, familiar e comunitário, nos âmbitos socioeducativo e pedagógico, nos momentos de ensino-aprendizagem e reflexão, estabeleçam como mote a participação, a autonomia e a cidadania integradas à formação profissional.
Aliando o raciocínio acima delineado à finalidade institucional dos IFEs, de “ofertar educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e modalidades, formando e qualificando cidadãos (...)”, como apregoa o inciso I, artigo 6º da Lei nº 11.892/2008, acredita-se que a promoção de políticas públicas, como a concessão de auxílio financeiro em favor de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, mostra-se como uma das múltiplas facetas ínsitas ao constitucionalmente consagrado “direito à educação”.
Notou-se, inclusive, a preocupação de um palestrante, do decorrer do aludido Seminário (vide verso da fl. 22), quanto à aplicabilidade dos preceitos do Decreto nº 7.234/2010 aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, in verbis:
Importante também batalhar por normativas mais claras para atendimento às necessidades dos Institutos. A procuradoria pode não fazer a mesma leitura que nós (representantes dos IFs) – Decreto nº 7.234/2010.
Tal temor não merece prosperar, em razão do que aqui se expõe, o que, certamente, atende à intenção do legislador pátrio no que toca à consagração do já reproduzido preceito constitucional de promoção da igualdade de condições para o acesso e permanência do aluno na escola (artigo 206, I), posto que a implementação de benefícios financeiros pelos IFEs, em atendimento aos preceitos firmados, especialmente pela Portaria Normativa/MEC nº 39/2007 e pelo Decreto nº 7.234/2010 que a regulamenta, obedece ao único escopo de minimizar desigualdades sociais vivenciadas pelos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, contribuindo, desse modo, para sua permanência e conclusão dos estudos junto àqueles entes.
1Exemplos de Editais já publicados por Institutos Federais de Educação podem ser encontrados nos seguintes sítios eletrônicos: http://www.ifms.edu.br/2011/03/25/edital-0032011-programa-bolsa-permanencia/; http://www.sr.iffarroupilha.edu.br/site/midias/arquivos/arquivoweb.id.2714.pdf
http://www.ifg.edu.br/extensao/images/jacqueline/edital2011.pdf
2Causa estranheza os instrumentos normativos utilizados para a criação (via portaria normativa) e regulamentação (via decreto) do PNAES.
3Sem destaque no original.
4Mello, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade.
5 Interpretação e aplicação das leis, trad. Port. do Prof. Manuel de Andrade, p.20
Procuradora Federal. Especialista em Direito Público UNb/CEAD/AGU.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Fernanda Cunha. O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) no âmbito dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: a necessária interpretação sistemática da Constituição Federal, das Leis nº. 11.892/2008 e nº 9.394/1996 e do Decreto nº 7.234 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2011, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24874/o-programa-nacional-de-assistencia-estudantil-pnaes-no-ambito-dos-institutos-federais-de-educacao-ciencia-e-tecnologia-a-necessaria-interpretacao-sistematica-da-constituicao-federal-das-leis-no-11-892-2008-e-no-9-394-1996-e-do-decreto-no-7-234. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Isnar Amaral
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
Precisa estar logado para fazer comentários.