Até o final da década de 1990, o mercado de planos privados de assistência à saúde, no Brasil, desenvolvia-se em um contexto de baixa regulação. Mas o advento da Constituição Federal de 1988, bem como a instituição do marco regulatório pela Lei nº 9.656/98 e a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em 2000 modificaram significativamente esse cenário.
Na Constituição Federal de 1988, a saúde encontra-se, ao lado da educação, previdência social, assistência social e radiodifusão sonora e de sons e imagens, dentre os serviços que o Estado não pode permitir que sejam prestados exclusivamente por empresas privadas.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Mas quando prestado por empresas privadas, deve o Estado intervir na atuação, para garantir o regular funcionamento da prestação de serviços.
Trata-se de hipótese de intervenção do Estado no domínio social que, desde o advento da Lei nº 9.961/2000, é exercido e protagonizado pela Agência Nacional da Saúde, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.
Nesta atuação, a ANS introduziu diversos mecanismos de controle na área econômico-financeira e contábil para acompanhar o comportamento do setor. Além disso, têm como atribuição a fixação normas para constituição, organização e funcionamento das empresas de plano e seguro de saúde, o que compreende, também, o poder de exclusão de empresas do mercado.
Essa saída compulsória das empresas prestadoras de serviço de saúde do mercado, em regra, dá-se mediante a determinação da liquidação extrajudicial já que essas operadoras, a princípio, não estão sujeitas a recuperação judicial ou falência, conforme disposição expressa na Lei nº 9.656/08:
Art. 23. As operadoras de planos privados de assistência à saúde não podem requerer concordata e não estão sujeitas a falência ou insolvência civil, mas tão-somente ao regime de liquidação extrajudicial. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)
Do mesmo modo, dispõe a Lei nº 11.101/2005:
Art. 2o Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
Assim, o objetivo do presente estudo é analisar as linhas básicas de processamento da liquidação extrajudicial no âmbito da ANS.
PROCESSAMENTO DA LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL
A liquidação extrajudicial encontra-se disciplinada no art. 24 da Lei nº 9.656/98 e na Resolução de Diretoria Colegiada - RDC 47, podendo ser decretada sempre que houver risco no atendimento aos destinatários da atividade regulada:
Art. 24. Sempre que detectadas nas operadoras sujeitas à disciplina desta Lei insuficiência das garantias do equilíbrio financeiro, anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a ANS poderá determinar a alienação da carteira, o regime de direção fiscal ou técnica, por prazo não superior a trezentos e sessenta e cinco dias, ou a liquidação extrajudicial, conforme a gravidade do caso
Quando a ANS identifica anormalidades administrativas e/ou econômico-financeira, impõe à empresa prestadora de serviço, via de regra, um regime especial. Os regimes especiais previstos na Lei nº 9.656/98 são a direção fiscal e a direção técnica e podem ser instaurados cumulativamente, com o objetivo de recuperar o regular funcionamento da prestadora.
Mas, verificada a inexistência de condições de recuperação, segue-se a liquidação extrajudicial, de modo que esta poderá ser decretada quando a operadora:
- apresentar insolvência econômico-financeira;
- não alcançar o objetivo de saneamento da insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou das anormalidades econômico-financeiras graves proposto pelo regime de direção fiscal; ou
- não alcançar o objetivo de saneamento das anormalidades administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, proposto pelo regime de direção técnica.
Decretada a liquidação, a ANS nomeia o liquidante, que terá amplos poderes de administração e liquidação, e será responsável pela verificação e classificação dos créditos. E com a publicação desses atos (decretação da liquidação judicial e nomeação do liquidante) são verificados, imediatamente, os seguintes efeitos:
- a cassação da autorização para funcionamento da operadora;
- o cancelamento dos poderes de todos os órgãos de administração da operadora liquidanda;
- a suspensão das ações e execuções judiciais, excetuadas as que tiveram início em momento anterior, quando intentadas por credores com privilégio sobre determinados bens da operadora salvo, neste último caso, as ações e execuções de credores de salários e indenizações trabalhistas.
- o vencimento de todas as obrigações civis ou comerciais da operadora liquidanda;
- a não fluência de juros, ainda que estipulados, se a massa liquidanda não bastar para o pagamento do principal.
- a suspensão do prazo de prescrição executória, a favor ou contra a massa liquidanda;
- a decretação da indisponibilidade dos bens dos administradores e de terceiros que, nos doze meses que antecederam a decretação, tenham concorrido de alguma forma para a irregularidade.
Prosseguindo no processamento da liquidação, o liquidante nomeado, no prazo máximo de noventa dias, levantará o balanço do ativo e do passivo da operadora liquidanda e elaborará o quadro geral de credores, devendo apresentar o arrolamento dos bens do ativo, a lista dos credores e das importâncias devidas e a classificação dos créditos.
Publicado o quadro geral de credores, os interessados terão o prazo de trinta dias para impugná-lo. As impugnações apresentadas serão analisadas pela Agência e os interessados notificados da decisão. Com esta decisão, os credores não incluídos nas relações, os delas excluídos, ou os incluídos sem os privilégios a que se julguem com direito (inclusive por atribuição de importância inferior à reclamada) podem prosseguir na ação já iniciada ou propor o que lhes competir.
Proferida a decisão acerca das impugnações, o liquidante promoverá a realização do ativo e, no prazo de seis meses, efetuará o pagamento dos credores pelo crédito apurado e aprovado, observados os respectivos privilégios e classificação. Vale ressaltar que até a conclusão das ações em andamento, a cota proporcional do ativo para garantia dos credores desses credores ficará reservada.
A liquidação extrajudicial cessará com a aprovação das contas finais do liquidante e baixa no registro público competente. Contudo, cessará também se, no curso do processamento, os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, julgadas a critério da ANS, tomarem a si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa, com a continuidade da prestação de serviço.
NOMEAÇÃO E ATUAÇÃO DO LIQUIDANTE
O liquidante será nomeado pela ANS, de acordo com o art. 33 da Lei nº 9.961/2000, dentre pessoas físicas de comprovada capacidade e experiência e reconhecida idoneidade moral e registro em conselho de fiscalização de profissões regulamentadas. Terá amplos poderes de administração e liquidação, com as seguintes atribuições:
- verificação e classificação dos créditos, com o levantamento do balanço do ativo e do passivo da operadora liquidanda e com a elaboração do quadro geral de credores;
- publicação no DOU e arquivamento no órgão competente dos atos relativos à liquidação.
- representação da massa liquidanda em todos os atos, em juízo ou fora dele.
- ultimação, em benefício da massa liquidanda, com autorização da agência, dos negócios pendentes em benefício da massa liquidanda, o que inclui a possibilidade de alienar a carteira de clientes da operadora;
- encaminhamento ao Ministério Público dos elementos de prova (mesmo que indiciárias) apurados no curso da liquidação, que remetam à possibilidade da prática de contravenções penais ou crimes por parte de qualquer dos antigos diretores, administradores, gerentes e membros do conselho fiscal.
- prestação de contas à ANS, sempre que solicitado e quando deixar a função.
- pedido de autorização pela ANS e o ajuizamento de processo falimentar, nos casos previstos em lei.
O liquidante será remunerado, a princípio, por honorários suportados pela massa liquidanda, mas, excepcionalmente, se a massa não dispuser de recursos para custear a remuneração, a ANS poderá promover o pagamento, em valor equivalente ao do cargo em comissão de Gerência Executiva, com o ressarcimento posterior, com juros e correção monetária, junto à massa.
Uma vez nomeado, o liquidante deverá cumprir as atribuições de sua responsabilidade, sob pena de destituição do cargo e responsabilização pelos prejuízos causados.
RESPONSABILIZAÇÃO DOS ADMINISTRADORES E INDISPONIBILIDADE DOS BENS.
Os administradores das operadoras de planos privados de assistência à saúde respondem solidariamente pelas obrigações por eles assumidas durante sua gestão até o montante dos prejuízos causados, independentemente do nexo de causalidade.
Neste contexto, determina a Lei nº 9.656/98, como efeito imediato da decretação da liquidação extrajudicial, a indisponibilidade dos bens dos administradores que exerceram a função na operadora nos doze meses anteriores à decretação.
Deste modo, não podem os administradores, por qualquer forma, direta ou indireta, alienar ou onerar os bens, até apuração e liquidação final de suas responsabilidades.
Além disso, a indisponibilidade poderá, nos termos do art. 6º, §2º da RDC 47 ser estendida a terceiros que de alguma forma tenham concorrido para a irregularidade que ocasionou a decretação da liquidação. Assim, poderá, por proposta da ANS e aprovação do Conselho de Saúde Suplementar - CONSU, ser estendida a:
- gerentes, conselheiros fiscais e de todos aqueles que, nos doze meses que antecederam a decretação, concorreram de algum modo para a decretação da liquidação extrajudicial; e
- pessoas que, nos doze meses que antecederam a decretação, tenham a qualquer título, adquirido bens de administradores da instituição ou de pessoas que concorreram para a irregularidade, desde que haja elementos de convicção de que a alienação seja simulada.
A indisponibilidade dos bens será comunicada aos órgãos competentes e à Bolsa de Valores, sendo que todos os somente poderão se ausentar do foro da liquidação com expressa autorização da Agência.
Os atingidos pela indisponibilidade ficam impedidos de fazer transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares; arquivar atos ou contratos que importem em transferência de cotas sociais, ações ou partes beneficiárias; realizar ou registrar operações e títulos de qualquer natureza; e processar a transferência de propriedade de veículos automotores (art. 9º da RDC 47).
CONCLUSÃO
A observância do processamento previsto em lei e no regulamento administrativo para a saída compulsória de uma operadora de saúde do mercado não visa primordialmente a garantia dos interesses da empresa. Seu escopo maior é a proteção dos usuários desses serviços os quais não podem ficar sem o devido amparo neste assunto tão intrínseco à sua vida, à sua dignidade. Afinal, o direito à saúde é um direito social e uma das facetas do princípio da dignidade da pessoa humana sendo, assim, fortemente resguardado na Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
BRASIL Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998.< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656.htm> Acesso em 17/06/2011.
ANS. RDC 47, DE 3 DE JANEIRO DE 2001.< http://www.ans.gov.br/modules/mod_legislacao/exibir/texto_lei.php?id=369> Acesso em 17/06/2011.
BRASIL. Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000 < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9961.htm> Acesso em 17/06/2011
Procuradora Federal, professora universitária, especialista em direito público e interesses difusos e coletivos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MECELIS, Adriana. A liquidação extrajudicial das operadoras de saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2011, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24955/a-liquidacao-extrajudicial-das-operadoras-de-saude. Acesso em: 23 dez 2024.
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