RESUMO
É natural que as leis de um sistema jurídico mudem com o tempo, afinal, a sociedade transmuda e as leis devem compatibilizar-se com o novo modelo social. Ocorre que certas mudanças não podem ocorrer de forma peremptória, pois existem situações subjetivas dos cidadãos que devem ser preservadas. As normas que tratam de aposentadoria possuem significativa relevância social. Servidores contribuem durantes anos na expectativa de almejarem uma tranqüilidade futuramente. Ocorrendo mudanças legislativas neste inter as expectativas devem ser respeitadas. O presente artigo tratará especificamente da situação dos cartorários, que eram reconhecidos como servidores públicos e posteriormente ‘perderam’ tal posição. O advento da emenda constitucional n.20 de 1998, restringindo o regime próprio aos servidores efetivos, provocou uma discussão, principalmente no que tange à segurança jurídica e confiança legítima no sistema jurídico, além dos limites do poder reformador. Essa questão será discutida no presente artigo.
PALAVRAS-CHAVES: Cartorários. Aposentadoria. Regime próprio. Segurança jurídica. Confiança legitima. Direito adquirido. Teoria de Gabba. Limites poder constituinte derivado.
INTRODUÇÃO
Os serviços notariais e de registro são aqueles destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. São de extrema importância para a segurança das relações jurídicas.
A Constituição Federal determinou que estes serviços serão exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público. Os titulares das serventias são denominados notários ou tabeliães e oficiais de registro ou registradores, que não são remunerados pelos cofres públicos. Sua remuneração advém de emolumentos cobrados pelos serviços prestados. Para auxiliar suas funções, podem contratar escreventes e auxiliares que serão remunerados livremente pelos titulares.
Para desenvolvimento deste artigo, utilizaremos a expressão ‘cartorários’ para denominar tanto os titulares das serventias, quanto seus auxiliares.
Por muitos anos, os cartorários eram equiparados aos servidores públicos, fazendo, assim, jus a direitos tais como aposentadoria compulsória e ao regime próprio de previdência social. Ocorre que, com o advento da Constituição Federal de 1988 e da emenda n. 20/98 houve mudança de paradigma normativo, com implicações práticas peculiares ligadas à segurança jurídica e ao direito adquirido, principalmente em relação ao regime próprio aos que vinham contribuindo pautadas em suas regras. O escopo deste artigo se volta a analisar esta específica questão.
O REGIME JURÍDICO DOS CARTORÁRIOS
A lei 8.935 de 18 de novembro de 1994 veio regulamentar preceito constitucional que normatiza a atividade dos cartorários, o art. 236 da Carta Magna.
No capitulo IX denominado “Da Seguridade Social”, em seu Titulo II “Das Normas Comuns” o art. 40 estabelece que a vinculação dos cartorários é de âmbito federal, tendo o parágrafo único assegurado os direitos e vantagens previdenciários adquiridos até a data da publicação da referida lei.
O art. 48, estabelecendo sobre as disposições transitórias, assegura a escolha de regimes jurídicos, sendo vedada a partir da promulgação da lei a admissão dos mesmos no regime próprio.
No mesmo sentido, o art. 51 possibilita a aposentação dos cartorários conforme a legislação que os regia anteriormente.
Após este breve esboço da lei dos cartorários vamos analisar sua situação jurídica atual.
Uma discussão se travou há anos com o objetivo de definir se os cartorários são ou não servidores públicos. Na redação originária da Constituição, o art. 40 usava apenas o termo “servidores” ao tratar da aposentadoria dos mesmos. Tendo o Supremo firmado seu entendimento à época de que os cartorários eram servidores públicos e se aposentavam compulsoriamente
Pois bem, com o advento da emenda constitucional n. 20 de 1998, o caput do art. 40 passou a usar o termo “servidores efetivos”, dando a entender que o regime próprio terá como beneficiários apenas servidores strito senso.
Criou-se assim, uma celeuma jurídica, não havendo um ponto final sobre a verdadeira situação jurídica dos cartorários. O Supremo Tribunal Federal em diversos julgados vinha dando aos cartorários o status de servidores públicos, porém, com o julgamento da ADI 2602/MG em 2005, o Supremo firmou o entendimento, com espeque na alteração do art. 40 da CF pela emenda constitucional n. 20, de que os cartorários não são servidores públicos, mas simples particulares em colaboração com o poder público, particulares que exercem seus ofícios por delegação do Poder Público.
É importante ressaltar que mesmo tendo a emenda constitucional n. 20 entrado em vigor em 1998, apenas em 2005 o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os cartorários não são servidores públicos, ao declarar a inconstitucionalidade do Provimento n. 55/2001, do Corregedor Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais.
O cerne da questão está em perquirir a situação jurídica dos cartorários que vinham contribuindo para o regime próprio de previdência e, teoricamente, após advento de emenda constitucional superveniente, não teriam direito a aposentarem pelo dito regime, posto que não existiria mais substrato jurídico constitucional para tal regime, por uma suposta revogação de legislação ordinária incompatível com o novo paradigma de validade das normas do sistema jurídico brasileiro.
PODER CONSTITUINTE DERIVADO E SEUS LIMITES DE REFORMA
Antes de tudo, é preciso diferenciar as consequências de uma nova ordem constitucional da superveniência de emenda, diante legislação ordinária dantes constitucional, que agora já não possui substrato com o novo modelo.
Juridicamente, seguindo um raciocínio abstrato, com o advento de uma nova constituição todo o sistema pregresso deveria ser extinto do sistema jurídico, devido a ruptura com o antigo ordenamento, partindo-se então do zero, produzindo todas as normas do ordenamento. Mas a necessidade concreta, a realidade jurídica, reclama outro posicionamento. Assim, com o advento de uma nova ordem constitucional, as normas pregressas passarão por um processo de análise de sua compatibilidade com a nova ordem constitucional: serão ou não recepcionadas na nova constituição.
Quando se fala em emenda constitucional, não há que se cogitar em ruptura alguma com a ordem constitucional vigente. Aliás, é nela que a emenda constitucional deverá buscar sua fonte de validade. O poder constituinte derivado encontra limites explícitos e implícitos na carta magna, que impede uma normatização que vá contra os princípios informadores da vontade constituinte originária.
Assim, a Constituição Federal em seu art. 60 dispõe sobre limites explícitos ao poder de reforma constitucional. Estes são divididos em limites circunstanciais, formais e materiais. Os circunstanciais estão previstos do parágrafo 1º do preceptivo suso que dispõe ser vedada a emenda constitucional na vigência de intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio. Já os formais estão relacionados ao procedimento de elaboração de emenda constitucional: sua iniciativa (art. 60 caput); quorum necessário (art. 60, § 2º); promulgação (art. 60, § 3º); e impedimento de proposta de emenda rejeitada ou prejudicada na mesma sessão (art. 60, § 5º).
Os limites explícitos materiais ao poder constituinte derivado estão abarcados nos incisos do § 4º do art. 60 da CF cujo texto diz que “não poderá ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I a forma federativa de Estado; II o voto direto, secreto, universal e periódico; III a separação dos Poderes; IV os direitos e garantias individuais.” São conhecidas de cláusulas pétreas, por formarem a parte intangível, intocável da Carta Magna. Percebe-se que basta a proposta de emenda tender a abolir alguma das cláusulas pétreas para configurar a patente inconstitucionalidade. Tanto é, que o Supremo Tribunal Federal possibilita o uso de mandado de segurança por parlamentar para obstar o procedimento de emenda constitucional violadora de cláusula pétrea.
Importante ressaltar que o inciso IV, ao se referir aos direitos e garantias individuais, não se limita ao art. 5º da Carta Magna, tendo seu alcance abrangido para proteger outros direitos fundamentais do cidadão, e.g., os referentes a limitação de tributar.
Os limites implícitos ao poder reformador são os que não estão descritos no texto constitucional, mas que visam assegurar a efetividade da vontade do poder constituinte originário. São, assim, a) as normas referentes ao titular do poder constituinte; b) ao titular do poder reformador e; c) as relativas ao processo da própria emenda. Derivam logicamente do sistema, posto que se assim não fosse, admitir-se-ia uma fraude do poder reformador. Desse modo, o poder constituinte derivado não poderia diminuir o quórum para aprovação de emenda, nem alterar os legitimados para sua propositura.
A INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE
A chamada inconstitucionalidade superveniente é explanada pela doutrina tendo como paradigma uma nova constituição. Sendo a norma infraconstitucional compatível com a nova ordem constitucional ocorre o efeito da recepção, tendo-a partir de então, como fundamento de validade a nova carta política, que servirá, também, de norte interpretativo. Acaso a norma infraconstitucional seja considerada incompatível com a nova ordem constitucional, ocorre a sua não recepção, de conseqüência, sua revogação, com efeitos para o futuro, ex-nunc.
Tratando de nova emenda constitucional a doutrina não aprofunda satisfatoriamente. Quando a emenda constitucional não incide no substrato de validade de nenhuma lei infraconstitucional não há maiores indagações. Porém, quando o surgimento de emenda influi na validade de normas infraconstitucionais é preciso analisar as conseqüências com cautela.
A emenda constitucional, após sua incorporação na carta magna, passa a ser norma constitucional, de conseqüência, paradigma de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, caso uma lei infraconstitucional não seja compatível com a constituição após a emenda, a rigor, ocorreria sua revogação com efeitos ex-nunc.
Vale ressaltar que, conforme dito acima, a emenda constitucional encontra limites explícitos e implícitos, que garantem a rigidez do pensamento do poder constituinte originário. O art. 60, § 4º dispõe sobre os limites explícitos, e.g., o direito adquirido.
O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURIDICA E CONFIANÇA LEGITIMA*
Nesse sentido, é preciso interpretar o ordenamento jurídico como um todo, um sistema único e vivo que sofre alterações continuamente, mas que não pode ferir os direitos e nem a segurança dos cidadãos. É a latência do principio da unidade constitucional que deve imperar, ainda em situações extra-temporais.
Os princípios são definidos como valores e razões que orientam o ordenamento jurídico. Tais princípios possuem três funções, a saber: 1) função de orientação do Estado; 2) função de proteção social; e 3) função de garantia de uma boa administração do Estado quando da concretização de seu objetivo de proporcionar o bem estar social.
O princípio da segurança jurídica está intimamente ligado á efetiva atuação de um Estado de Direito, sendo corolário do sistema republicano que norteia todo o ordenamento jurídico.
Sobre o principio confira-se Celso Antônio Bandeira de Mello:
Ora bem é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado principio da segurança jurídica, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentro todos os princípios gerais do direito, é , indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles.” […] “ Bem por isto, o Direito, conquanto seja, como todo o mais, uma constante mutação, para ajustar-se a novas realidades e para melhor satisfazer interesses públicos, manifesta e sempre manifestou, em épocas de normalidade, um compreensível empenho em efetuar suas inovações causando o menor trauma possível, a menos comoção, às relações jurídicas passadas que se perlongaram no tempo ou que dependem da superveniência de eventos futuros previstos. (MELLO, 2010)
No mesmo sentido o ensinamento de Canotilho:
O principio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a idéia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direito, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídico previstos e prescritos no ordenamento. (CANOTILHO, 2000)
Considerados por uns como corolário do principio da segurança jurídica e, por outros, como princípio autônomo, a confiança legitima ganha cada vez mais força na estrutura de nosso ordenamento jurídico.
Segundo este princípio, se um ato administrativo, aparentemente legitimo, é perpetrado pela Administração Pública, gerando, no administrado a expectativa de continuidade, dada a manutenção das condições nas quais surgiu, o ato deve ser estabilizado, ainda que tenha por fundamento lei inconstitucional ou ato normativo legal.
O principio suso tem como leading case situação ocorrida no ano de 1956 em decisão proferida pelo Tribunal Administrativo Superior de Berlim. Refere-se a uma viúva que residia na República Democrática Alemã, sob a promessa de percepção de pensão se mudou para a Berlim - ocidental, onde percebeu o benefício prometido, durante um ano. Passado esse tempo, a administração revogou o ato concessivo em razão de ter verificado que a viúva não preenchia os requisitos para ser incluída como beneficiária. Além se suspender o pagamento, cobrou todos os valores que já haviam sido pagos. Submetida a questão ao Tribunal, este decidiu que o princípio da confiança deveria prevalecer frente à legalidade e, mesmo não havendo fundamento normativo que subsidiasse a concessão do benefício não poderia ser revogado. (DINIZ; ROCHA, 2008)
E não há que se cogitar em fulminação do principio da legalidade frente à confiança/segurança jurídica. Conforme ensinamento de Robert Alexy, os princípios não são absolutos, sendo que os chamados “mandados de otimização” devem, em caso de conflito, serem ponderados no caso concreto. Na colisão entre princípios, um apenas afasta o outro no momento da resolução do embate, quando as possibilidades jurídicas e fáticas de um deles forem maiores do que as do outro.
Rafael Maffini enfrenta a questão com eminente brilhantismo:
A legalidade administrativa não pode ser considerada como um óbice à incidência do princípio da proteção substancial da confiança, mesmo quando se trata de preservação de condutas – ou seus efeitos – inválidas. Isso porque, as noções de Estado de Direito e de segurança jurídica não estão sob, mas sobre ou ao lado do princípio da legalidade, impondo-se a ponderação entre a legalidade e a segurança jurídica para que, em alguns casos, esse ceda à proteção da confiança com a estabilidade das relações jurídicas, ainda que inválidas. Ademais, o fundamento material da legalidade consiste justamente na busca por segurança jurídica, não se apresentando, pois, num fim em si mesmo. Dessa forma, sempre que a legalidade implicar em conseqüências que se contraponham ao se próprio fim material, qual seja, a segurança jurídica, terá de ser ponderada com outros valores, com é o caso da proteção substancial da confiança, ensejando tal ponderação a possibilidade de preservação de atos ou efeitos decorrentes de comportamentos inválidos. (MAFFINI, 2006)
Esse fundamento material da legalidade remonta ao absolutismo monárquico, onde não havia segurança nenhuma aos cidadãos, que tinham suas vidas condicionadas ao alvitre dos caprichos do soberano.
Dito princípio da confiança vem sendo seguido pelo Supremo Tribunal Federal: MS 22.357/DF, MS 24.268/MG e MC 2.900-3/RS, dentre outros, a saber:
EMENTA: (...) 4. Se impõe a aplicação da Teoria do Fato Consumado, segundo a qual as situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial, não devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais. (Rel. Ministro Humberto Martins, segunda turma, julgado em 21.06.2007, DJ 29.06.2007, p. 531)
Isso, sobretudo, em respeito ao princípio da segurança jurídica que, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello, tem por escopo ‘evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administrados’, bem como ‘minorar os efeitos traumáticos que resultam de novas disposições jurídicas que alcançaram situações em curso’.
Não se propugna com isso, é evidente, a cristalização da jurisprudência ou a paralisia da atividade legislativa, pois as decisões judiciais e as leis não podem ficar alheias à evolução social e ao devir histórico. Não se pode olvidar, contudo, que cumpre, como sabiamente apontou a Ministra Cármen Lúcia... conferir ‘segurança’ ao processo de transformação.
Por estas razões entendo que convém emprestar-se efeitos prospectivos às decisões em tela, sob pena de impor-se pesados ônus aos contribuintes que se fiaram na tendência jurisprudencial indicada nas decisões anteriores desta Corte sobre o tema, com todas as conseqüências negativas que isso acarretará nos planos econômico e social. (Voto. Ministro Ricardo Lewandowski. RE 370682/SC)
O TCU também vem aplicando esse entendimento em sede de princípio:
EMENTA: SERVIDOR PÚBLICO. Funcionário (s) da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT. Cargo. Ascensão funcional sem concurso público. Anulação pelo Tribunal de Contas da União - TCU. Inadmissibilidade. Ato aprovado pelo TCU há mais de cinco (5) anos. Inobservância do contraditório e da ampla defesa. Consumação, ademais, da decadência administrativa após o qüinqüênio legal. Ofensa a direito líquido e certo. Cassação dos acórdãos. Segurança concedida para esse fim. Aplicação do art. 5º, inc. LV, da CF, e art. 54 da Lei federal nº 9.784/99. Não pode o Tribunal de Contas da União, sob fundamento ou pretexto algum, anular ascensão funcional de servidor operada e aprovada há mais de 5 (cinco) anos, sobretudo em procedimento que lhe não assegura o contraditório e a ampla defesa. (MS 26782 / DF. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento: 17/12/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno)
CONCLUSÃO: DO DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURIDICO E O LIMITE DE REFORMA DO PODER REFORMADOR
Existem normas cujos efeitos se prolongam no tempo, como as previdenciárias que instituem requisitos de aposentadoria. Os administrados contribuem pautados em regras de um regime jurídico, que definem os requisitos para o benefício almejado: a aposentadoria. E é explanado corriqueiramente que ditas regras não incorporam direito adquirido ao administrado, até quando satisfeitos os requisitos para a fruição do benefício previdenciário. Quase um brocardo: não existe direito adquirido a regime jurídico. E dito entendimento prevalece com mais pujança frente à emenda constitucional.
Acontece que, existem situações em que esse entendimento não pode prevalecer. Seja porque, em tais situações, os princípios da segurança jurídica e confiança legitima, asseguram um autêntico direito adquirido aos beneficiários.
No caso específico dos cartorários a questão é bastante peculiar. Não foram apenas requisitos de aposentadoria que foram mudados, mas o próprio regime jurídico dos mesmos. As alíquotas de contribuição são diferenciadas, bem como o teto remuneratório, sendo dessa monta, descabido se falar em compensação financeira entre o regime próprio e o geral de previdência social.
A expectativa de direito dos cartorários, em um estado pautado no neoconstitucionalismo, que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CF), onde os direitos fundamentais são tutelados de forma eficiente (art. 5, XXXV, CF), diante da segurança jurídica e proteção da confiança que regem todo o ordenamento constitucional, deve ser tida como direito adquirido.
E assim sendo, os titulares do poder constituinte derivado devem, ao elaborarem emendas constitucionais restritivas de direitos dos cidadãos, principalmente que tratam de benefícios previdenciários, preservarem os direitos dos administrados mediante regras de transição, sob pena de incorrerem em flagrante inconstitucionalidade.
Nesse sentido é o posicionamento do eminente José Afonso da Silva:
Ora, a natureza da norma, como se disse, é a de converter expectativa de direito em direito subjetivo para ser exercido no futuro sob a condição do preenchimento dos requisitos indicados, o que significa que, vindo novas normas, esse direito não pode ser desfeito, daquelas novas normas. Se não for assim, estar-se-á diante de uma verdadeira fraude constitucional, numa brincadeira de dar e retirar incessante, ao sabor dos detentores do Poder. Normas constitucionais, mesmo provenientes de Emendas à Constituição, não podem ser manobradas assim como um boneco de cera, ao sabor dos donos do Poder, em prejuízo dos direitos constituídos. (SILVA, 2003)
Nosso ordenamento jurídico pátrio adotou a Teoria de Gabba, no que toca à noção de direito adquirido. Segundo tal teoria, direito adquirido é “todo direito que seja conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tenha apresentado antes do surgimento de uma lei nova sobre o mesmo”. Assim, para Gabba, pode-se considerar direito adquirido aquele que seja conseqüência de um fato jurídico e tenha entrado para o patrimônio do sujeito.
De fácil constatação que normas desse jaez, que tratam da aposentadoria dos cartorários no regime próprio, são limites materiais explícitos ao poder reformador (art. 60, § 4º, IV c/c art. 5º, XXXVI), que devem assegurar a vigência de tais direitos sob o manto do direito adquirido, tão bem conceituado pelo ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello como sendo “... certos direitos nascidos no passado que transitam no presente e se projetam para o futuro, pretendendo-se involucrá-los com o manto protetor da norma antiga; ou seja, quer-se que continuem regidos pelos termos dela.” (MELLO, 2006).
Tem-se que os cartorários possuem direito adquirido ao regime próprio, o que deve ser respeitado pelo poder reformador constitucional. Nada obstante, devem obedecer às regras impostas para a aposentadoria, no regime próprio, como idade, tempo de contribuição, vigentes ao tempo que completarem os requisitos para aposentação.
Assim, como a legislação permitiu que os cartorários admitidos antes de 21/11/1994 – data de publicação da lei 8.935 - usufruíssem do regime próprio de previdência social, uma possível revogação da lei, devido a superveniência da emenda constitucional nº. 20/98, não alcançaria os efeitos dos atos perpetrados sobre a égide das normas anteriores, devido ao fato de possuírem direito adquirido ao regime próprio.
Nesse sentido entende-se que a aposentação dos cartorários no regime próprio de previdência só terá a pecha de inconstitucional caso sejam os mesmos admitidos após a publicação da lei 8.935/94.
Sufragando deste entendimento o Tribunal de Contas da União e do Estado de Goiás vêm concedendo registro de aposentadoria aos cartorários admitidos antes da lei de 1994.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000.
DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos; ROCHA, Ludiana Carla Braga Façanha. A administração pública e o princípio da confiança legítima. XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI - Salvador-BA. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, v., p. 165-182. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/32601/31810> Acesso em: 05 de maio de 2011.
GABBA, Carlo Francesco. Teoria della retroattività delle leggi. 3ª. Ed. rev. e ampl. Torino: [s.n.], 1891-99
MAFFINI, Rafael. Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Leis Originalmente Inconstitucionais Compatíveis com Emenda Constitucional Superveniente. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br> Acesso em: 05 de maio de 2011.
RAMOS, Marcelene Carvalho da Silva. Regime próprio de previdência do servidor público – Os princípios da segurança jurídica e proteção da confiança e os direitos em formação. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional Belo Horizonte, n. 27, ano 7 Janeiro 2007. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=39754>. Acesso em: 05 de maio de 2011.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constituiconais. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
SILVA, José Afonso da. Parecer acerca da PEC 40/03. São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.dca.fee.unicamp.br/~leopini/consu/reformadaprevidencia/parecer_JAS.htm> Acesso em: 05 de maio de 2011.
* O presente tópico teve como subsídio o trabalho de mão e sobremão de Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz e Ludiana Carla Braga Façanha Rocha, intitulado A Administração pública e o princípio da confiança legítima, o qual remetemos para maior aprofundamento.
Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás. Assessor de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Goiás. Acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, PUC-GO. Técnico em Telecomunicações pelo Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia de Goiás, IFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Queops de Lourdes Barreto. A aposentadoria dos cartorários após a emenda constitucional n. 20/98: o direito adquirido ao regime próprio e o limite de reforma do poder constituinte derivado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24956/a-aposentadoria-dos-cartorarios-apos-a-emenda-constitucional-n-20-98-o-direito-adquirido-ao-regime-proprio-e-o-limite-de-reforma-do-poder-constituinte-derivado. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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