1. Introdução
O presente artigo tem como escopo fazer uma reflexão acerca do crime de falsa identidade ser fato atípico ou não em face do direito da autodefesa.
O crime de falsa identidade, que está tipificado no art. 307 do Código Penal, ocorre quando o sujeito ativo “atribui a si ou a um terceiro, falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem”.
Da análise do supramencionado artigo, verifica-se que o verbo “atribuir” está inserido no texto legal no sentido de imputar, ou seja, o sujeito identifica a si próprio ou atribui dados inverídicos a terceira pessoa.
No que concerne ao proveito econômico pretendido pelo agente, o renomado doutrinador Nélson Hungria (1959, p. 308) esclarece:
O proveito pode ser de ordem moral ou representar qualquer outra utilidade não econômica (ex: pelo prazer de favorecer a um amigo, o agente atribui-se a respectiva identidade para, em lugar dele, prestar um exame num concurso), assim como a vantagem colimada pode não depender necessariamente do prejuízo alheio ou este não estar em reciprocidade com vantagem alguma.
É imperioso ressaltar que, segundo Rogério Greco (2007, p. 328), a vantagem mencionada no tipo penal não poderá possuir natureza econômica, sob pena de incidir no delito de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal.
In casu, o objeto jurídico tutelado é a fé pública, isto é, a confiança coletiva que recai sobre a identidade das pessoas.
O delito ora em estudo pode ser perpetrado por qualquer pessoa. De outra banda, o Estado, bem como a pessoa diretamente prejudicada com a conduta levada a efeito pelo agente são os sujeitos passivos da infração penal sub examine.
O crime de falsa identidade se consuma com o ato de atribuir-se ou atribuir a outrem falsa identidade. Trata-se, pois, de crime formal, posto que o delito se perfaz independentemente da obtenção da vantagem ou da produção de dano a terceiro, que, caso aconteçam, deverão ser levadas em conta como mero exaurimento do delito.
Entrementes, leciona Rogério Graco (2007, p. 329) que a tentativa é admitida na hipótese em que o crime de falsa identidade for praticado por escrito, uma vez que, nesse caso, o iter criminis poderá sofrer fracionamento.
O dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade, é o elemento subjetivo deste crime. Para a sua configuração, exige-se, ainda, o fim de especial de obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou de causar dano a outrem (COSTA JR, 2007, p 945)
2. Falsa identidade e Autodefesa
Inicialmente, cumpre consignar que existe grande divergência no seio do âmbito jurídico acerca do crime de falsa identidade ser fato atípico ou não.
Deveras, há aqueles que defendem a possibilidade do agente atribuir-se falsa identidade com a finalidade de se livrar de uma condenação. Para tanto, invocam o exercício da autodefesa e de não se autoincriminar, de não produzir prova contra si próprio, de maneira a caracterizar como atípica tal conduta.
Nesse sentido, aliás, é o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça. A propósito, veja-se:
A- HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. PENAL. PACIENTE CONDENADO POR FALSA IDENTIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA DE ATRIBUIR-SE FALSA IDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL, QUANDO PERPETRADA COMO INSTRUMENTO DE AUTODEFESA. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM CONCEDIDA, NO ENTANTO, PARA ABSOLVER O PACIENTE DA IMPUTAÇÃO DO CRIME DE FALSA IDENTIDADE. 1. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não comete o delito previsto no art. 307 do CPB o réu que, diante da autoridade policial, atribui-se falsa identidade, em atitude de autodefesa, porque amparado pela garantia constitucional de permanecer calado, ex vi do art. 5o., LXIII da CF/88. 2. Ordem concedida para absolver o paciente da imputação do crime de falsa identidade, não obstante o parecer ministerial em contrário. Prejudicados os demais pedidos (HC 162576/SP, HABEAS CORPUS 2010/0027549-0, Relator(a) Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA, Data do Julgamento 22/06/2010, Data da Publicação/Fonte DJe 09/08/2010).
B - HABEAS CORPUS. PENAL. DELITOS DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E USO DE DOCUMENTO FALSO. ORDEM IMPETRADA PARA OBTER PROCESSAMENTO DE RECURSO ESPECIAL INADMITIDO NA ORIGEM. NÃO CABIMENTO. ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. INVIABILIDADE NA VIA ELEITA. USO DE DOCUMENTO FALSO PARA OCULTAR A CONDIÇÃO DE FORAGIDO. EXERCÍCIO DE AUTODEFESA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 1. Não é cabível a impetração de habeas corpus para se obter o processamento de recurso especial cujo seguimento foi negado pelo Tribunal a quo, uma vez que há recurso próprio para tal fim, qual seja, o agravo de instrumento. Precedentes do STJ. 2. A alegação de insuficiência de provas para a condenação pelo delito do art. 14 da Lei nº 6.368/76, associação para o tráfico, esbarra na necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório, providência de todo incompatível com a via estreita do habeas corpus, consoante iterativa jurisprudência desta Corte. Além disso, o Tribunal de origem apontou objetivamente, com base nas provas constantes nos autos, as razões de convencimento que o levaram a concluir pelo acerto da condenação. 3. Consolidou-se nesta Corte o entendimento de que a atribuição de falsa identidade, visando ocultar antecedentes criminais, constitui exercício do direito de autodefesa. 4. No caso, ao ser abordado por policiais, o paciente apresentou documento falso, buscando ocultar a condição de foragido e evitar sua recaptura. 5. Embora o delito previsto no art. 304 do Código Penal seja apenado mais severamente que o elencado no art. 307 da mesma norma, a orientação já firmada pode se estender ao ora paciente, pois a conduta por ele praticada se compatibiliza com o exercício da ampla defesa. 6. Ordem parcialmente concedida para, afastando a condenação referente ao crime de uso de documento falso, reduzir a pena recaída sobre o paciente de 8 (oito) anos para 5 (cinco) anos, mantido, no mais, o acórdão de apelação (Processo HC 148479/MG, HABEAS CORPUS 2009/0186484-2, Relator(a) Ministro OG FERNANDES, Órgão Julgador T6-SEXTA TURMA, Data do Julgamento 16/03/2010, Data da Publicação/Fonte DJe 05/04/2010).
Em que pese entendimento exposto em linhas pretéritas estar praticamente pacificado no Superior Tribunal de Justiça, ele não é o que mais se coaduna com a posição recente do Supremo Tribunal Federal, a qual aponta que o exercício da ampla defesa não acoberta, tampouco justifica, a prática de crimes.
Na esteira do anteriormente aduzido, os julgados a seguir colacionados:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA IDENTIDADE DIANTE DE AUTORIDADE POLICIAL, COM A FINALIDADE DE SE OCULTAREM ANTECEDENTES CRIMINAIS. ART. 307 DO CÓDIGO PENAL. TIPICIDADE NÃO AFASTADA PELO EXERCÍCIO DA AUTODEFESA (ART.5º, INC. LXIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). JULGADO RECORRIDO EM DESARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO PROVIDO... De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o exercício do direito previsto no art. 5º, inc. LXIII, da Constituição da República não torna atípica a autoatribuição de falsa identidade perante autoridade policial com a finalidade de se ocultarem antecedentes criminais (STF - Recurso Extraordinário: RE 630011 DF, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Data de Julgamento: 21/09/2010, Data de Publicação: 01/10/2010).
PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE (ART. 307 DO CÓDIGO PENAL). REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. DESNECESSIDADE DE EXAME. ART. 323, § 1º, DO REGIMENTO INTERNO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. JULGADO RECORRIDO DIVERGENTE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO SENTIDO DE QUE TIPIFICA O CRIME DE FALSA IDENTIDADE O FATO DE O AGENTE, AO SER PRESO, IDENTIFICAR-SE COM NOME FALSO, COM O OBJETIVO DE ESCONDER SEUS MAUS ANTECEDENTES. PRESUNÇÃO DE EXISTÊNCIA DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO ... A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que "tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o obje[tivo] de esconder seus maus antecedentes" (HC 72.377, Rel. Min.Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 30.6.1995).O relator, Ministro Carlos Velloso, afirmou, ainda, que:"Bem registra o parecer do Ministério Público que ‘o direito de permanecer calado -art. 5º, LXIII, da CF/88 -não compreende o de mentir acerca da própria identidade’. O paciente, com o objetivo de beneficiar-se da omissão de seus maus antecedentes,forneceu identidade falsa à polícia, ficando, por isso, comprovado o elemento subjetivo do crime, consistente no agir para obter vantagem, para si ou para outrem".No mesmo sentido, v.g., RE 470.944. Rel. Min. Eros Grau, decisão monocrática, DJ 27.3.2006, e RE 561.704-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 3.4.2009.5 (STF- Recurso Extraordinário: RE 601860 Mt, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Data de Julgamento: 01/12/2009, Data de Publicação: 18/12/2009).
Comungando do entendimento do Supremo Tribunal Federal, Rogério Greco (2007, p. 331) assevera que não se pode concluir o comportamento da conduta previsto no art. 307 do Código Penal como uma “autodefesa”, pois é direito fundamental o acusado permanecer calado para não se autoincriminar, na qual a mentira é admitida somente para contestar os fatos acusatórios lhe atribuídos, o que não se confunde com o direito de fornecer identificação falsa. E conclui:
O agente pode até mesmo dificultar a ação da Justiça Penal no sentido de não revelar situações que seriam indispensáveis à elucidação dos fatos. No entanto, não poderá eximir-se de se identificar. É um direito do Estado saber em face de quem propõe a ação penal e uma obrigação do indiciado/acusado revelar sua identidade.
3. Considerações Finais
Vê-se, portanto, que ao acusado é garantido constitucionalmente o direito de se manter em silêncio e de não produzir provas em seu desfavor, o que não se confunde com o direito de fazer as autoridades incidirem em erro, cometendo um novo delito com o escopo de se defender.
Com efeito, adotar o entendimento de que ao réu é conferido, no intuito de se autodefender, o direito de cometer crimes, a exemplo de falsidades, estelionatos, seria o mesmo, mutatis mutandis, que afirmar que o homicida que ocultar o cadáver não poderá vir a ser processado por tal delito, posto que estaria no exercício do legítimo direito a autodefesa!
Ora, permanecer calado e não produzir prova contra si é exercício de autodefesa. Todavia, cometer crimes diversos para garantir a impunidade não!
REFERÊNCIAS
COSTA JR, Paulo José. Código Penal Comentado. 9.ed. São Paulo: Editora DPJ, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007. 1.v.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. IX.v.
Bacharela em Direito pela Universidade Tiradentes- UNIT; Técnico do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Andressa Pedral de. O crime de falsa identidade e o exercício da autodefesa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2011, 00:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25129/o-crime-de-falsa-identidade-e-o-exercicio-da-autodefesa. Acesso em: 23 dez 2024.
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