SUMÁRIO: Introdução, 1. Conceito de prisão civil, 2. A prisão do depositário infiel, 3 O STF e o novo entendimento, Considerações Finais, Referências Bibliográficas.
Palavras-chave: Depositário infiel, inconstitucionalidade, direitos humanos.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem a finalidade de explicar de forma detalhada, como o Supremo Tribunal Federal chegou ao entendimento sobre a ilicitude da prisão civil do depositário infiel.
A prisão civil do depositário infiel sempre foi tema de discussão por parte de acadêmicos de direito, pois a Constituição Federal ao mesmo tempo em que veda a prisão civil, faz duas ressalvas a esta modalidade, dentre elas a do depositário infiel.
Hoje em dia muito se fala da inadmissibilidade da prisão do depositário infiel, mas muitos leigos no assunto ainda não sabem como explicar como uma previsão legal não possa ter aplicabilidade.
Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal, em 03 de dezembro de 2008, através dos Recursos Extraordinários (REs) 349703 e 466343 e no Habeas Corpus (HC) 87585, deu por fim a prisão do depositário infiel, seja qual for a forma de depósito. (voluntário, necessário, judicial, alienação fiduciária, etc.) Nenhuma norma que cuida desse tipo de prisão civil continua válida, embora ainda previsto na Constituição federal.
Mas se está previsto em nossa Carta Magna, como esta não tem valor? É exatamente isto que vamos analisar a seguir. Como uma previsão legal, inserida no artigo 5º, LXVII “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, considerada Cláusula Pétrea, ou seja, são cláusulas que não podem ser mudadas (imutáveis), não mais possuem valor jurídico?
Acontece que o Brasil ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592 - de 6 de julho de 1992) que dispõe em seu artigo 11: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”; e o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27, de 25-9-1992, e promulgada pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992) que traz em seu artigo 7 , inc. 7º onde “ninguém deve ser detido por dívida”.
Com o Advento da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, passou a prever de forma expressa que os tratados e convenções internacionais serão equivalentes às emendas constitucionais, desde que aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos, pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros e que também tratem de matéria relativa a direitos humanos. Esta situação trouxe muitas dúvidas sobre a hierarquia dos tratados e convenções promulgados antes da EC 45/2004, se deveriam ou não ser submetidos a votação no Congresso Nacional, para tornarem-se equivalentes a Emendas Constitucionais.
Para um melhor entendimento, passamos a discorrer detalhadamente sobre o assunto, com objetivo de elucidar a forma como esta decisão foi tomada e suas conseqüências no meio jurídico.
1 CONCEITO DE PRISÃO CIVIL
A “prisão civil”, nada mais é do que o cerceamento da liberdade de alguém que não pode, ou não quer, pagar um débito. Nos ordenamentos jurídicos modernos, esse tipo de prisão é vedada, resalvada algumas exceções, como o inadimplemento de obrigação alimentícia e do infiel depositário.
Para Gagliano (2011, p.354) trata-se, portanto, de uma medida de força, restritiva de liberdade humana, que, sem conotação de castigo, serve como meio coercitivo para forçar o cumprimento de determinada obrigação.
No mesmo sentido, entende Carlos Roberto Gonçalves sobre a prisão do depositário infiel:
A sanção atua como meio de coerção e não propriamente como pena, pois a lei ao estabeleceu um prazo mínimo para sua duração, estando ele na própria vontade do depositário, que pode dela liberar-se desde o memento em que cumpra a obrigação de restituir. (Gonçalves, 2010, p.406,7)
Portanto, não devemos confundir a prisão como pena, e sim como uma forma de coerção para o cumprimento da obrigação.
2. A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL
A Constituição Federal Brasileira, no mesmo momento em que proíbe a prisão civil, admite em caráter excepcional a prisão no caso de inadimplemento alimentar e do depositário infiel:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXVII – Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
Ratificando o disposto na Constituição Federal, o Novo Código Civil em seu artigo 652, preceitua que: seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.
Já o Código de Processo Civil, ao tratar especificamente da Ação de Depósito, também traz a possibilidade de ser decretada a prisão do depositário.
Art. 902. Na petição inicial instruída com a prova literal do depósito e a estimativa do valor da coisa, se não constar do contrato, o autor pedirá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias:
(...)
§ 1o No pedido poderá constar, ainda, a cominação da pena de prisão até 1 (um) ano, que o juiz decretará na forma do art. 904, parágrafo único.
Nesse sentido, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
“Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil. - Esta Corte, por seu Plenário (HC 72.131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária em garantia, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. - Esse entendimento voltou a ser reafirmado, também por decisão do Plenário, quando do julgamento do RE 206.482. - Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (STF. 1.ª TURMA. RE N.º 344485-RS. REL. MIN. MOREIRA ALVES)
Até então, o Supremo Tribunal Federal considerava que os tratados internacionais ingressavam em nosso ordenamento jurídico como norma infraconstitucional geral. Portanto, não influenciavam nas normas infraconstitucionais especiais brasileiras, considerando plenamente cabível a prisão do depositário infiel.
3. O STF E O NOVO ENTENDIMENTO
É clara a tendência contemporânea de prestigiar as normas internacionais de proteção aos direitos humanos. No Brasil, esta mudança se dá de maneira lenta e gradual, tendo como principal fator o modo como se tem concebido o processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica interna.
A Emenda Constitucional nº 45 de 2004, acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal. Este parágrafo ajuda a ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. Para tanto, que em seu voto no HC 87585-TO, o Ministro Celso de Melo, é brilhante ao destacar que:
A referida Emenda refletiu clara tendência que já se registrava no plano do direito comparado no sentido de os ordenamentos constitucionais dos diversos Países conferirem primazia jurídica aos tratados e atos internacionais sobre as leis internas, notadamente quando se tratasse de convenções internacionais sobre direitos humanos, às quais se atribuiu hierarquia constitucional. (HC 87585-TO)
O Ministro Gilmar Mendes em seu voto no RE 466343-SP, destaca que: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente.
Todos esses fatores colaboraram para a mudança no entendimento do Supremo Tribunal Federal, que em 03 de dezembro de 2008 HC 87585/TO, do qual foi o relator o Ministro Marco Aurélio, decidiu que, com a introdução do Pacto de São José da Costa Rica, em nosso ordenamento jurídico, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da prisão do depositário infiel, embora prevista na Magna Carta.
Segundo consta do Informativo 531 do STF, prevaleceu, no julgamento, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, defendida inicialmente pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP. Restaram vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional.
Assim, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27, de 25-9-1992, e promulgada pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992), possui status de norma supralegal, ou seja, imediatamente acima das leis especiais brasileiras e abaixo da Constituição Federal.
Este é apenas o status atual do referido Pacto, pois segundo o Ministro Gilmar Mendes, no próprio RE 466343 é claro:
De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional. (RE 466343-SP)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, não foi o § 3º, art. 5º acrescentado pela Emenda Constitucional 45/2004, que acabou com a prisão civil do depositário infiel, mas sim serviu para ressaltar a importância dos tratados que versam sobre Direitos Humanos e a forma como ingressam em nosso ordenamento jurídico. Assim, a prisão do depositário infiel não é considerada inconstitucional, mas sim foi considerada ilícita conforme Súmula Vinculante nº 25 “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988.) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1.992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1.969. Diário Oficial da União. Brasília, 09 de novembro de 1.992.
GAGLIANO, Pablo Stolze; Novo curso de direito civil, vol. IV: contratos, tomo 2: contratos em espécie. 4 ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol 3: contratos e atos unilaterais. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . Informativo STF . Brasília, 1º a 5 de dezembro de 2008 - Nº 531. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo531.htm>
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 87585/TO. Rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 466343/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes.
Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade da Região da Campanha - Campus Alegrete. Especialista em Direito Público pelo Claretiano Centro Universitário. Especialista em Segurança Contra Incêndios pela Unisinos e graduando em Recursos Humanos pela Famaqui.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Rafael de Oliveira Jaques. A ilicitude da prisão do depositário infiel frente às normas de Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 set 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25503/a-ilicitude-da-prisao-do-depositario-infiel-frente-as-normas-de-direitos-humanos. Acesso em: 23 dez 2024.
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