Os estudantes de Direito são incentivados a ler, logo no começo de seu curso, uma aula muito conhecida que o professor Lon Fuller proferiu na prestigiada Faculdade de Harvard, nos Estados Unidos, e publicada sob o título “O Caso dos Exploradores de Cavernas”. Trata-se de uma magnífica lição de lógica argumentativa desenvolvida para esgotar os fundamentos de uma deliberação judicial, sejam eles brilhantes e criativos ou prosaicos e apenas baseados no senso comum. O caso trata de um grupo de arqueólogos que fica preso em uma caverna e, para que alguns possam sobreviver até o resgate, pratica o canibalismo. O julgamento enfrenta a questão de ter ou não havido crime e das responsabilidades pela prática bárbara com que algozes e vítimas concordaram, pela esperança que cada um depositava na própria sorte.
Em dado momento, um dos juízes assim se manifesta: “A inclinação de meu colega para encontrar lacunas nas leis faz lembrar a história, narrada por um antigo autor, de um homem que comeu um par de sapatos. Quando lhe perguntaram se os havia apreciado, ele replicou que preferira os buracos. Não é outro o sentimento de meu colega com respeito às leis; quanto mais buracos (lacunas) elas tenham, mais ele as aprecia. Em resumo, não lhe agradam as leis.”
O juiz conclui dizendo que seu colega se deixa levar pela “natureza ilusória” de um processo para preenchimento das lacunas, e “pensa que sabe” o que se pretendia declarar na lei que ele considera omissa.
Três julgamentos recentes dos tribunais superiores mostram como estamos atrelados ao comportamento de transferir para a lei um silêncio que nos agrada e é conveniente, como se também tivéssemos de digeri-la a contragosto, feito o desesperado faminto que só tinha os sapatos para engolir. O primeiro deles resultou na anulação do julgamento decorrente da Operação Sathyagraha, que havia penalizado pessoas poderosas envolvidas em crimes financeiros. Uma das turmas do Superior Tribunal de Justiça, pela votação de três a dois, entendeu que a participação de agentes da ABIN, em auxílio à Polícia Federal, havia “contaminado” a prova, tal como na “teoria” da árvore dos frutos envenenados. Tal teoria, se merece esse nome, não tem sequer validade na Botânica, pois se uma árvore é envenenada ela, em princípio, morre, e não passa a produzir frutos malignos. Pretender teorizar assim é uma forma de valer-se preconceituosamente da ingênua história da maçã do pecado, com o pudor de lhe invocar o nome. A par disso, não é preciso dizer que os órgãos estatais tem o dever institucional de colaborar uns com os outros, sem o que nunca seria coordenada a atividade que a Constituição designa como “administração pública”.
Outro julgamento recentíssimo igualmente surpreendente proveio do Supremo Tribunal Federal, onde uma turma entendeu que o crime de trânsito, cometido por motorista embriagado, só se caracteriza como doloso se a embriaguês visou ao propósito manifesto de cometê-lo (intenção de finalidade). A condição que o Supremo estabeleceu encerra uma prova impossível. A intenção teria de ser confessada e, sabe-se disso, a confissão ainda tem valor relativo. Fora dela, sobraria a hipótese inverossímil completa de que, ao embriagar-se, o infrator dissesse a alguém para que fim se embebedava. E, assim mesmo, seria considerado lúcido no momento ...? Não se trataria de uma conversa de alguém já etilizado ? Se o Pleno do STF convalidar a tese de uma de suas turmas, será sepultada a jurisprudência amadurecida por anos de trabalho interpretativo profícuo, que visa a combater mais duramente (e através do procedimento técnico mais condizente) o homicídio propositado pela irresponsabilidade, assumida acintosamente no trânsito por pessoas alcoolizadas.
Outra questão que se apresenta, paralelamente, é a de alguém sóbrio que dirige veículo em altíssima velocidade em local com trânsito de pedestres. Passaria a ser interpretado, por extensão do entendimento do Supremo quanto aos ébrios, que só se inclui no tipo doloso a intenção determinada de, através da velocidade, atingir a um transeunte? Se for assim, a objetividade jurídica de todos e quaisquer crimes de trânsito passaria, pela impossibilidade prática de se evidenciar o dolo muito remoto, a prescindir de um tipo subjetivo intencional, pelo que somente subsistiriam delitos culposos no tráfego.
Por fim, novamente, o Superior Tribunal de Justiça anulou a ação penal movida contra integrantes da família Sarney, baseado em que as escutas telefônicas efetuadas pela Polícia Federal, que comprovariam os crimes de lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas, foram insuficientemente fundamentadas pelo delegado, pelo promotor e pelo juiz que atuaram no caso. Note-se bem: foram fundamentadas, mas pouco ... Ora, o que existia antes das escutas era indício, levantado pela autoridade administrativa que detectou movimentação financeira em volume incomum. Se já houvesse prova robusta e apta, tais escutas seriam dispensáveis. O fundamento decisório, portanto, teria de ser conciso, porque era relativo somente a uma etapa do processo de comprovação, e encerrava apenas o exame de sua legalidade. Tratava-se de uma decisão autorizativa (exatamente igual àquelas que o Supremo concede amiúde em casos de sua competência originária, sempre sucintamente) e não de um julgamento antecipatório do mérito da investigação.
A ironia que brota desses exemplos é que nos três só se visualizam lacunas formais que escarnecem o cometimento mesmo do crime, cuja efetivação está evidenciada, e resultam na proteção de poderosos. Como é providencial para eles que juristas de ocasião estejam tão ocupados em encontrar tais lacunas... principalmente porque elas resultariam na suprema das garantias, a de preservar a ... impunidade. Para aqueles que teriam de “digerir” a dura lei feita para todos, quanto mais “furos”, melhor ... Há quem acredite que o Direito não retrocede. É fácil imaginar seu espanto ao saber que, no recuado ano de 1941, quando da Reforma Penal que resultou nos códigos vigentes, Francisco Campos criticava aqueles que já então se compraziam em “espiolhar nulidades” e se negavam a enfocar o fato provado.
Muitos cronistas bem intencionados da cena judiciária não acreditam que é disto que se trata, de um Direito engessado por interpretações formalistas que hostilizam os fatos históricos e que privilegiariam apenas as descrições de garantias, consideradas como realidades de natureza conceptiva, pois elas seriam mais importantes do que os atos que efetivamente aconteceram. Para tais cronistas, o fenômeno que se destaca é outro, aquele da afirmação de verdadeiros tribunais de garantias; garantias acima de todas as coisas. Um “revival” da pretensiosa divisa “fiat justitia pereat mundus” (faça-se a justiça e o mundo que pereça). Com isso, dão curso às práticas nocivas e erradas de “espiolhar nulidades”, como antes do Código Penal de 1941, à "teoria da árvore envenenada”, numa repetição acrítica treslida do Direito saxão, e acreditam ingenuamente que testemunham o surgimento de uma jurisprudência rigorosa, intransigente no cumprimento das fórmulas legais, que irá consolidar o sistema de garantias.
Esse jansenismo que reinventa dogmas radicais não esconde sua saudade do direito formulário que os romanos já haviam sepultado ao ingressarem na sua derradeira fase da “extraordinaria cognitio”, da qual tornou-se expressão ainda válida o princípio “jura novit curia”. Além disso, os tribunais não se podem jactar de uma quintessência bizantina que implica em trapacear o Direito, quando sua implantação se torna tão rarefeita e difícil que significa mesmo adiada para um tempo e local onde a perfeição da forma de todos os atos jurídicos se confunde com a irrelevância do fato concreto. Tais tribunais não mais saberiam lidar com imperfeições, erros, insuficiências, contradições, lacunas e dúvidas e, incapazes de buscar soluções para o mundo real, aspirariam tão só a dimensão “pura” da forma, ao se constituir como “aula coelestis”, o pátio do céu, renegando todo o “pecado”, “in substantia”.
As garantias que são tão preciosas ao devido processo, como a Constituição as consagra, certamente nada tem a ver com o grau de afetação, supostamente sofisticado em sua metodologia, que faz a regra jurídica tornar-se tão rarefeita, de apreensão de tal forma esotérica, que só se inscreve no éter, pois as pessoas comuns - sejam operários ou cientistas - não saberiam senti-la, percebê-la e vivê-la nas suas relações concretas. O Direito assim afetado poderia passar a ser chamado de “o direito de interdição da lei” e, desde logo, a assumir o seu inconfessado cinismo, porque só beneficiaria aos que foram inculpados depois que viram ser formada contra eles prova substantivamente adversa.
O professor Lon Fuller já é morto; se não, seria o caso de vir difundir mais sua lição, que está tão viva, no Brasil: há demasiados adoradores entre nós, vorazes como um faminto de idéias, de lucidez e de honestidade intelectual, dos buracos, sejam dos sapatos ou das leis.
Porto Alegre, RS, setembro de 2011.
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. Os Buracos na Lei Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2011, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25626/os-buracos-na-lei. Acesso em: 22 dez 2024.
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