1. INTRODUÇÃO
A execução fiscal no Brasil é regulada pela Lei 6.830/80 – Lei de Execução Fiscal – e subsidiariamente pelo Código de Processo Civil.
Antes da edição da LEF, a matéria referente à execução fiscal era disciplinada genericamente pelo Código de Processo Civil, que regulava a execução por quantia certa. Sob a influência do direito administrativo, que consagrou a noção e a importância do interesse público, surgiu a necessidade de conferir à Fazenda Pública meios mais eficazes para a satisfação desse crédito. Foi nesse cenário que a LEF substituiu o sistema até então estabelecido pelo Código de Processo Civil que, não obstante isso, ainda é aplicado subsidiariamente, conforme previsão expressa do artigo 1º, da Lei 6.830/80[1].
O objetivo do presente trabalho é analisar a verdadeira natureza dos atos praticados no processo de execução fiscal, ou seja, verificar se os atos tendentes à satisfação do crédito exequendo estão realmente relacionados com a atividade judicial (o que sustenta a manutenção do sistema atual de cobrança do crédito público – essencialmente judicial), ou se estão relacionados mais estreitamente com a atividade administrativa (o que justificaria uma mudança no modelo de cobrança, tal como proposta pelo projeto de lei 5.080/2009, que pretende estabelecer o que se convencionou chamar de execução fiscal administrativa).
2. A NATUREZA ADMINISTRATIVA DOS ATOS PRATICADOS NO BOJO DA EXECUÇÃO FISCAL
O crédito tributário, definitivamente constituído e não pago, é inscrito em Dívida Ativa da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme a competência para a administração do tributo. A partir de então, forma-se o título executivo extrajudicial, na forma do art. 585, VII, do CPC[2], consubstanciado na Certidão de Dívida Ativa (CDA) que aparelhará a execução fiscal, cujo procedimento, repita-se, está regulado pela Lei de Execução Fiscal e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil que, na visão de Marins (2010, p. 651), terá seus dispositivos aplicados “quando omissa for a Lei de Execução Fiscal, ou, ainda, quando forem imprestáveis suas disposições, por serem incompatíveis com a sistemática geral das execuções”.
Singela e resumidamente, a estrutura de uma execução fiscal é a seguinte: após a inscrição do débito em dívida ativa, que nos termos do art. 2º, § 3º da Lei 6.830/80, é ato de controle administrativo de legalidade, tendente a apurar a certeza e liquidez do crédito, já é possível ajuizar o feito executivo, onde o devedor é citado para pagar a dívida ou indicar bens à penhora. Antes mesmo da constrição de qualquer bem de propriedade do executado, este pode opor exceção ou objeção de pré-executividade, alegando matéria de ordem pública, que pode ser conhecida de ofício pelo Juiz, ou outras questões que não dependam de dilação probatória. Existindo penhora, o executado poderá discutir amplamente a cobrança através de um processo autônomo – chamado de embargos à execução. Não sendo embargada a execução, ou sendo os embargos rejeitados, os bens penhorados poderão ser adjudicados pela Fazenda Pública exequente ou levados a leilão.
Se analisarmos detidamente os dispositivos da Lei 6.830/80, concluímos que, ressalvados os embargos à execução – ação proposta pelo executado, em face da exequente, com objetivo de discutir matérias que vão desde a formação do título executivo (Certidão de Dívida Ativa) até matérias relacionadas com validade dos atos praticados durante o trâmite da execução fiscal (tais como a validade da citação, da penhora, etc) – os atos de citação, penhora, avaliação, intimação e alienação judicial – todos tendentes à satisfação do crédito – pouco tem a ver com a atividade jurisdicional em si, aquela atividade onde o magistrado efetivamente soluciona a lide, ou como preferem alguns, diz o direito.
O nosso Código de Processo Civil, no art. 463[3], estabelece que ao publicar a sentença de mérito, o juiz esgota a função jurisdicional, somente podendo alterá-la para corrigir erro material ou de cálculo.
Portanto, proferida a sentença de mérito, o processo – como função típica do Poder Judiciário – extingue-se, uma vez que a lide está solucionada. A sentença condenatória transforma-se em título executivo, cujo beneficiário é o ex-litigante, agora credor. No que tange à condenação para pagamento de quantia certa, até pouco tempo atrás, não sendo cumprido espontaneamente o comando da sentença, o credor necessitava cobrar o crédito do qual era detentor através de nova demanda – a execução – onde não se discute o mérito, mas tão-somente se leva às últimas consequências a decisão judicial anteriormente proferida. Após a edição da Lei 11.232/05, que alterou essa sistemática, a nova forma de cumprimento de sentença prescinde da instauração de novo processo. Mas o que nos interessa aqui, é que tanto num quanto n’outro meio, a atividade para fazer cumprir o comando emanado da sentença é substancialmente administrativa, e não judicial, sendo, portanto, desnecessária a atuação do magistrado na prática dos atos executórios propriamente ditos.
Ao falar a respeito do tema, ou seja, da relação remanescente entre o sucumbente e o vencedor após a prolação da sentença condenatória, Lúcia Valle Figueiredo assim arremata o tema:
O vínculo linear remanescente já não se trava no plano da jurisdição, mas da função administrativa, cujo escopo é dar cumprimento, a casos concretos, aos comandos normativos estatais. Ao Estado incumbe, então, fazer com que o preceito da sentença tenha eficácia (FIGUEIREDO, 1998, p. 31) (destacamos).
Como vimos acima, a execução de título judicial é regulada pelo Código de Processo Civil; já a execução do crédito público, representado pela Certidão de Dívida Ativa da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios – título executivo extrajudicial – é regulada por lei especial, a Lei 6.830/80 – Lei de Execução Fiscal. O ponto para o qual pretendemos encaminhar o leitor, é que ambos os títulos – judicial e extrajudicial – não necessitam, a rigor, de atividade judicial para serem cobrados.
A satisfação do crédito público através da constrição de bens e posterior alienação judicial, nada mais é do que uma expropriação, não havendo impedimento de ordem constitucional para que seja levada a cabo pela própria Administração Pública, bastando, para tanto, alteração legislativa.
Humberto Gomes de Barros, discorrendo sobre a execução, sustenta a sua natureza de expropriação e sua característica de atividade administrativa. Pela clareza e excelência de suas palavras, transcrevemo-las abaixo:
Constatada a natureza da expropriação, desvenda-se um quadro bizarro: O Estado é titular do direito de outorgar e revogar a propriedade; ele imprime força à certidão de dívida ativa para provocar tal revogação. Munido de semelhante título, bastaria ao credor estatal declarar extinta a propriedade do devedor, dando-lhe, como ressarcimento, a quitação da dívida. Tudo deveria consumar-se por meio de um procedimento administrativo: a desapropriação. No entanto, isso não acontece.
O Estado-Administração é capaz de, visando a interesses sociais, expropriar um proprietário que nada lhe deve. No entanto, se o proprietário é inadimplente, na sagrada obrigação de honrar dívidas para com o erário, a Administração queda-se impotente. Nesse caso, é necessário acionar o Estado-Juiz, fazendo com que este efetive a desapropriação. Em tal hipótese, o juiz desenvolverá mero procedimento. É que a execução por desapropriação envolve apenas relação linear, em cujos extremos estão o Estado e seu devedor (BARROS, 2007, p.7).
É curioso como não nos questionamos a respeito de certas contradições, como a apresentada pelo ilustre jurista. Ora, se o Estado pode, através da desapropriação, destituir o proprietário de seu bem, sem que ele deva sequer um centavo, porque, quando esse mesmo Estado é detentor de um crédito de natureza fiscal (cuja maioria dos contribuintes inadimplentes é devedor confesso, pois apura e declara ao Fisco o montante devido), é necessário que ajuíze um processo em face do devedor de tributos, para que só então o Poder Judiciário promova essa desapropriação?
E prossegue o autor:
Por que, em tal circunstância, não tratar a execução como o que realmente ela é: um procedimento administrativo? Fazer da execução um processo jurisdicional não é, data venia, atitude feliz. Não faz sentido demitir o administrador de sua competência expropriatória para que o juiz (também agente estatal) execute o ato administrativo. Por outro lado, a atividade judicial, naturalmente lenta e dispendiosa, deveria reservar-se para questões mais complexas. A jurisdicionalização da cobrança dos créditos estatais transforma a justiça brasileira em imenso depósito, onde os “processos de execução fiscal” acumulam-se, paralisados, sem qualquer solução (idem).
Assim, podemos constatar que os atos necessários à satisfação do crédito público guardam relação mais estreita com a atividade administrativa, típica do Poder Executivo. Por atividade típica, entende-se aquela que, preponderantemente, é desempenhada por cada um dos Poderes da República.
O Poder Judiciário tem por atividade típica a jurisdicional – quando aplica o direito ao caso concreto, resolvendo a lide. No caso da execução fiscal, temos um título executivo extrajudicial, que na grande maioria dos casos representa um crédito público de natureza tributária, que também na maioria dos casos foi constituído mediante declaração do próprio contribuinte que confessa o débito e se declara devedor do Fisco. Sob esse prisma, questiona-se: qual a atividade tipicamente judicial a ser desempenhada pelo Poder Judiciário diante de um devedor confesso e um credor com título executivo com presunção de liquidez e certeza (art. 3º da Lei 6.830/80)? Ressalvados os embargos à execução, parece-nos claro que aqui não há necessidade de intervenção judicial, pois estamos diante de atividade de mera cobrança, e não de solução de lide a exigir a presença do Estado-Juiz.
Ao Poder Executivo, deve ser relegada a atividade administrativa; ao Poder Judiciário, a atividade judicial. Podemos ilustrar esse pensamento, com destaque na reserva do Poder Judiciário para o desempenho de seu verdadeiro ofício – a solução de lides – no seguinte trecho:
A tutela jurisdicional do Estado, contudo, na dimensão de uma nova era de proteção dos direitos da cidadania, dispensa o juiz da tarefa estressante de mero “Cobrador do Fisco”, ante o reclamo popular de tê-lo por inteiro como um hábil solucionador de lides (PRUDENTE, 2007, p. 92).
Para demonstrar que essa linha de pensamento não se restringe ao campo da abstração, trazemos dois exemplos práticos onde a execução sequer passa pelo crivo do Judiciário. É o que ocorre com a expropriação de imóvel adquirido através do Sistema Financeiro de Habitação, onde foi instituída a execução extrajudicial. Nessa sistemática, a expropriação, ou retomada do bem, é totalmente realizada pela instituição financeira. Somente após eventual adjudicação ou arrematação do bem é que o devedor poderá recorrer ao Judiciário para discutir eventuais invalidades.
O primeiro exemplo diz respeito à Lei nº 5.741/71, que versa sobre a proteção do financiamento de bens imóveis vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação. Nos termos do art. 1º, permitiu ao credor hipotecário promover a execução extrajudicial, de acordo com os artigos 31 e 32 do Decreto-lei nº 70/66.
O segundo, a Lei 9.514/97, que versa sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, ficou instituída a possibilidade de alienação fiduciária de coisa imóvel, facultando ao credor fiduciário fazer uso das ações, recursos e execuções, judiciais e extrajudiciais, para receber o crédito, conforme previsão dos artigos 19, 26 e 27 da referida lei.
3. CONCLUSÃO
A execução fiscal no Brasil, cujos procedimentos estão previstos na Lei de Execução Fiscal e, subsidiariamente, no Código de Processo Civil, é um procedimento totalmente judicial, ou seja, todos os atos tendentes à satisfação do crédito são praticados exclusivamente pelo do Poder Judiciário.
Como se demonstrou ao longo do presente estudo, os atos que impulsionam o feito executivo – tais como a citação, penhora, avaliação, intimação e alienação judicial – não estão relacionados com a atividade típica do Poder Judiciário, sendo, portanto, prescindível a sua atuação na condução da execução fiscal, ressalvados o caso dos embargos à execução.
Portanto, diante de tudo que se expôs, podemos chegar à conclusão de que a execução fiscal diz com a atividade administrativa do Estado e, que há desvio de finalidade quando o Poder Judiciário exerce a função de cobrar o crédito público, pois está atuando em uma função para a qual não foi concebido. O Poder Judiciário não é agente de cobrança de créditos, mas sim instituição dedicada à aplicação do direito e promoção da justiça.
Segue essa mesma linha de raciocínio, a proposta do governo federal, consubstanciada no projeto de lei 5.080/2009, que pretende transferir para a Administração Pública (Poder Executivo) a prática de atos tendentes à satisfação do crédito público, tais como a constrição prévia de bens do devedor de tributos, relegando à apreciação do Poder Judiciário somente os casos que, sem solução administrativa, tenham base patrimonial para a execução forçada.
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Humberto Gomes de. Execução Fiscal Administrativa. Brasília: ano XI, Revista CEJ, nº 39, p. 4-9, 2007.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 06 ago. 2011.
BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm. Acesso em 06 ago. 2011.
BRASIL. Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6830.htm. Acesso em 06 ago. 2011.
CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial). 5. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
PAULSEN, leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência.. 8ª. ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2006.
PROJETO DE LEI 5.080/2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/PL/2009/msg234-090413.htm. Acesso em: 06 de ago. 2011.
Prudente, Antônio Souza. Execução administrativa do crédito da Fazenda Pública. Revista Fórum de Direito Tributário. Belo Horizonte. Fórum, 2007.
[1] Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.
[2] Art. 585 - São títulos executivos extrajudiciais:
VII - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei.
[3] Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
I - para Ihe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou Ihe retificar erros de cálculo;
II - por meio de embargos de declaração.
Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006; Pós-graduação lato sensu pela Escola da Magistratura do Paraná (2001); Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera- Uniderp (2011);<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VECCHIA, Rosangela Dalla. A execução fiscal como atividade substancialmente administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2011, 08:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25787/a-execucao-fiscal-como-atividade-substancialmente-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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