SUMÁRIO: Introdução. Análise das remotas relações jurídicas. Conclusão.
Resumo: O presente artigo se propõe a analisar as mais longínquas relações jurídicas, com especial foco nas antigas civilizações retratadas na obra “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges, bem como sua evolução.
Palavras-chave: Relação jurídica.
I – Introdução
II - Análise das remotas relações jurídicas
Os homens, no Estado de natureza, subtraídos a qualquer autoridade, temendo a tudo e a todos, por esse mesmo motivo não se aproximavam uns dos outros, vivendo cerrados em seus lares, sob a mística do culto aos mortos, conforme bem se afigura na obra “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges:
“A tribo, como a família e a fratria, constituía-se em corpo independente, com culto especial, de onde se excluía o estrangeiro. Uma vez formada, nenhuma nova família podia nela ser admitida. Duas tribos de modo algum podiam fundir-se em uma, pois a religião a isso se opunha. No entanto – é bom que se diga – à medida que esses diferentes grupos se associavam, nenhum perdia a sua individualidade nem a sua independência. Ainda que muitas famílias estivessem reunidas em uma fratria, cada uma se mantinha constituída como na época de seu isolamento; nada lhes fazia alterar o culto, o sacerdócio, o direito de propriedade ou a sua justiça interna.”
(Fustel de COULANGES, A Cidade Antiga, p. 138.)
Desta feita, não travavam relações intersubjetivas com outras pessoas a não ser de sua própria família, pois o medo dos outros e de si mesmos fazia que cada lar fosse quase auto-suficiente, sendo protegido por seus antepassados mortos, que em “contraprestação” por tal proteção “exigiam” oferendas com rituais que tinham que ser rigorosamente cumpridos.
“Desde os tempos mais remotos, essas crenças deram lugar a normas de conduta. Uma vez que o morto necessitava de alimento e bebida, pensou-se ser dever dos vivos satisfazer-lhe essa necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não foi deixado ao sabor do capricho ou dos sentimentos mutáveis dos homens; foi obrigatório. Desse modo se estabeleceu uma verdadeira religião da morte, cujos dogmas cedo desapareceram, perdurando, no entanto, os seus ritos até o triunfo do cristiansmo.”
(Fustel de COULANGES, A Cidade Antiga, p. 21)
Com o passar dos séculos, os homens foram perdendo o medo, e passaram a se reunir. Contudo, estes homens do Estado natural, subtraídos a qualquer autoridade, entregues somente aos seus instintos e paixões, acabariam por atirar-se uns contra os outros, caminhando inexoravelmente para a própria dilaceração. Nesse estado de beligerância, nunca conseguiriam perseverar na ordem. Era então necessidade premente uma cabeça que unificasse o querer social, alguém capaz de gerir a sociedade, conciliando teses e antíteses, visando a alcançar a “Grande Síntese”, que não seria outra coisa senão a harmonia social, sendo esta uma condição essencial e indeclinável para o sobreviver da sociedade.
“A força pode ser posta entre as mãos de apenas um, ou nas mãos de diversos. As forças individuais não se podem reunir sem que todas as vontades se reúnam. A reunião dessas vontades, diz muito acertadamente Gravina, é o que se chama o Estado Civil. A lei, em geral, é a razão humana, uma vez que ela governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada nação devem representar apenas os casos particulares em que se aplica essa razão humana.
As leis devem ser de tal forma adequadas ao povo para o qual foram feitas que, apenas por uma grande casualidade, as de uma nação podem convir a outra. É necessário que essas leis se relacionem à natureza e ao princípio do governo estabelecido, ou que se pretende estabelecer, quer elas formem esse governo, como sucede com as leis políticas, quer elas o mantenham, como ocorre com as leis civis.”
( MONTESQUIEU, d’El Esprit des Lois, pp. 20 e 21)
Desta forma, os homens abdicariam de suas forças individuais – o que os tornava iguais no Estado natural -, confiando-as a outrem, que poderia até usá-las contra as próprias pessoas que as confiaram, quando a situação assim exigisse. E quais seriam as razões, pelo menos as principais, que justificariam e fundamentariam a legitimidade da dominação da maioria pela minoria? Consoante doutrina Max Weber, existiriam três razões, a saber: o costume, consagrado, arraigado no coração dos homens, que obedecem e respeitam esse costume, embora muitas das vezes não saibam porque o fazem; depois viria o carisma, virtude decorrente da inteligência, caráter e cultura de determinado indivíduo, o que faz com que a coletividade o confie o poder de gerir; por fim surge a crença na legalidade, ou seja, a crença em um estatuto legal, que seja visto como correto pela sociedade. Nessa legitimidade da dominação nasceria o poder político.
Cesare Beccaria, em sua “Dos delitos e das penas”, aponta ainda outro fundamento da dominação:
“Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram um aparte dela para usufruir do restante com mais segurança. A soma dessas parcelas de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis como depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo (...)
Desse modo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir.
(Cesare Beccaria, Dos delitos e das penas, p. 19)
Assim deixou de existir o jus puniendi individual, sendo lícito ao particular tão somente o jus persequendi in judicio.
Desta feita, passa a sociedade a ter noção do que é norma jurídica, uma vez que esta é concebida à luz do que seja sanção, posto que sem esta, tratar-se-ia de norma moral, e não jurídica. E sanção jurídica através dos aspectos de exterioridade e de institucionalização, donde a definição de norma jurídica como aquela norma “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”, no dizer de Bobbio.
Dito isso, sendo sanção jurídica tão somente a institucionalizada, forçoso é dizer que, para que exista Direito, faz-se mister haja, em menor ou maior grau, uma organização, ou seja, um completo sistema normativo.
De acordo com Norberto Bobbio:
“Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa procurar o caráter distintivo do Direito não em um elemento da norma, mas em um complexo orgânico de normas. Em outros termos, poder-se-á dizer que a pesquisa por nós realizada na “Teoria della norma giuridica“, é um aprova do caminho obrigatório que o teórico geral do Direito percorre da parte ao todo, isto é, do fato de que, mesmo partindo da norma, quando se quer entender o fenômeno do Direito, ao ordenamento.” (Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, pp. 27 e 28)
Todavia, falar que a sanção organizada distingue o ordenamento jurídico de qualquer outro tipo de ordenamento não implica que todas as normas sejam sancionadas, mas somente que o são em sua maioria.
Retomando o aspecto da legitimação do poder, encontramos neste o motivo pelo qual algumas ações, quando praticadas individualmente, não são justificadas, ao passo que estas mesmas ações, se praticadas por aquele(s) que exerce(m) o poder em nome do Estado são, não só justificadas, como também por vezes exaltadas e glorificadas. A isso se dá o nome de “Razão de Estado.“
Em suma, seria o seguinte: a violência coletiva (violência institucionalizada) protegeria os cidadãos individualmente. Logo, não haveria razão de ser da violência individual – exceto nos casos de legítima defesa.
Consoante lição de Max Weber:
“Todo Estado se fundamenta na força, disse um dia Trotsky a Brest-Litovsk. Grande verdade! Se existissem apenas estruturas sociais das quais a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria também desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra se denomina “anarquia“. Por evidência, a violência não é o único instrumento de que se vale o Estado – não se tenha a respeito qualquer dúvida – mas é seu instrumento específico. Na atualidade, a relação entre Estado e violência é particularmente íntima. Desde sempre os agrupamentos políticos mais diversos – começando pela família – recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal do poder. Entretanto, nos dias de hoje devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elemento essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física.” (Max WEBER, Ciência e Política: Duas Vocações, p. 60)
Contudo, não nos enganemos; o homem não confiou sua força a outrem pelo “prazer“ de ter sua liberdade cerceada, mas sim com o escopo de manter sua própria conservação, preservar suas propriedades e assim viver mais tranqüilamente, de maneira mais confortável, pois no manifesto estado beligerante tudo era instável. Donde conclui-se que ele preferiu limitar sua liberdade a sofrer injustiças. Por quê? É o que explicaremos mais adiante.
Somos sabedores, contudo, de que as coisas não sucederam de maneira tão simplória. De fato, certamente os homens do Estado natural não se sentaram e deliberaram sobre a abdicação e distribuição dos poderes; isto foi um longo processo histórico que foi amadurecendo no decorrer dos séculos, e quando as vicissitudes pelas quais passou a espécie humana mostraram que o Estado natural, que é um constante estado de guerra, é nocivo ao ser humano, desta forma, lenta e gradualmente os homens foram tomando consciência da importância de uma cabeça unificadora do querer social.
Voltando ao questionamento de por qual motivo o homem preferiu ver sua liberdade cerceada a sofrer injustiças, podemos argüir: seria então, por acaso, a preservação do homem, da propriedade e do conforto a gênese da justiça? Consoante Platão, em sua “A República”, aquele que pratica uma injustiça deste ato goza de um prazer muito menor que a dor que sofre a pessoa vítima da referida injustiça. Então, por medo de virem a sofrer os malefícios oriundos da injustiça, chegaram a um “acordo mútuo” para não cometerem injustiças nem delas serem vítimas. Daí teria se originado o estabelecimento de leis e convenções entre elas, tendo como conseqüência a origem de um ordenamento jurídico, e a denominação de justo e legal para o que nele estivesse prescrito.
Mas como bem nos adverte o encomiado e imortal jurisconsulto Cícero, em sua obra “Dos Deveres“:
“Absurdo dos grandes é serem havidas como justas e legais todas as prescrições constituídas.” (Marco Túlio CÍCERO, Dos Deveres, p.134)
Disso resulta como corolário lógico que a perfeição é deixada ao mundo das idéias, do qual o mundo sensível é apenas cópia imperfeita, falando de maneira platônica.
III - Conclusão
À luz do exposto, podemos depreender que o ordenamento jurídico não se baseia na Justiça nem ela busca – muito embora seja aquele tanto melhor quanto mais desta se aproximar - baseia-se sim nos sentimento e valores indeléveis do homem. O ordenamento jurídico não é outra coisa senão a arte de orientar para a mesma finalidade útil os comportamentos e valores que permanecem arraigados no espírito humano.
O Direito, assim como qualquer outra Ciência, só possui sentido se centrado em suas verdades fundantes, pois é da natureza das coisas que as mais diversas ciências, sejam elas naturais ou humanas, possuam uma natureza, que as faz ser tais como são, e que possuam um princípio, que as faz agir.
Essas verdades fundantes são na Ciência Jurídica, as invariantes comportamentais e axiológicas do homem, pois por mais abruptas que sejam as vicissitudes pelas quais este passa no espaço e no tempo, sempre carregará consigo condutas e valores que são imanentes à própria natureza humana. E é justamente nesses princípios que se baseia o ordenamento jurídico.
- Referências bibliográficas
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PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2003.
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WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2003.
Advogado. Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA/CE; Especialista em Direito Tributário pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá/RJ;<br>Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Diego Sabóia e. Relações jurídicas primitivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2011, 07:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25837/relacoes-juridicas-primitivas. Acesso em: 23 dez 2024.
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