1 Introdução
O presente ensaio propõe-se a refletir sobre os valores e funcionalidades da denúncia espontânea, concentrando-se no comportamento humano desejado, a fim de que sejam percebidas as razões do interesse tutelado, que se volta, em última instância, à proteção do erário e, via de consequência, da sociedade.
2 Desenvolvimento
O benefício da denúncia espontânea deve ser visto com temperamentos, aplicando os princípios informativos do sistema tributário, sob pena de se adotar política reducionista e dissociada do contexto de justiça fiscal.
Nos precisos dizeres de Canotilho, a “ideia de igualdade justa deverá aplicar-se mesmo quando estamos em face de medidas legislativas de graça ou de clemência (perdão, amnistia), pois embora se trate de medidas que, pela sua natureza, transportam referências individuais ou individualizáveis, elas não dispensam a existência de fundamentos materiais justificativos de eventuais tratamentos diferenciadores”.[1]
A denúncia espontânea, plasmada no art. 138 do Código Tributário Nacional, é uma das causas de exclusão da responsabilidade por infrações tributárias.[2] Consiste em técnica indutora do cumprimento da obrigação tributária[3], ainda que tardio, desde que se realize antes da deflagração da ação fiscalizatória. Isto é, o benefício foi concebido para, estimulando o cumprimento voluntário das obrigações tributárias, favorecer a regularização do sujeito passivo, bem como incrementar a arrecadação fiscal.
Esclarece Leandro Paulsen que “o objetivo da norma é estimular o contribuinte infrator a colocar-se em situação de regularidade, resgatando as pendências deixadas e ainda desconhecidas por parte do Fisco, com o que este recebe o que lhe deveria ter sido pago e cuja satisfação, não fosse a iniciativa do contribuinte, talvez jamais ocorresse”.[4]
Sob a ótica da finalidade ínsita à denúncia espontânea, a confissão de dívida imprescinde do pagamento integral do quantum devido, não se prestando o parcelamento do crédito tributário a cumprir tal desiderato.
Eventual possibilidade de pagamento parcelado do débito acabaria por premiar a inadimplência, incentivada pela possibilidade de elisão das penalidades mediante comunicação do débito ao Fisco, acompanhada de mero pedido de parcelamento, o qual, de regra, subordina-se, tão-somente, ao pagamento da primeira parcela, desvinculado da prestação de qualquer garantia.
Tal situação, por certo, não é a intenção subjacente à referida figura jurídica, pois militaria em desfavor do contribuinte pontual e da própria sociedade, em última análise, beneficiária dos tributos arrecadados. Lembre-se que o critério de discrímen eleito pelo legislador deve guardar proporcionalidade com o fim almejado, sem perder de vista os efeitos daí resultantes.
O estímulo dado ao contribuinte para deixar o estado de impontualidade não pode, ainda que por vias transversas, incentivar a inadimplência, tampouco o pagamento parcelado, “pois, nenhum estímulo teria o devedor em solver a obrigação por inteiro de uma só vez”.[5]
Nesse contexto, a prerrogativa de autodenúncia instrumentalizada pelo parcelamento do débito, e não pela satisfação integral do montante devido, para fins de afastamento das penalidades, implicaria desarrazoado tratamento ao contribuinte faltoso. Este seria, igualmente, beneficiado pelo alargamento do prazo para liquidar o tributo, divorciando-se do objetivo pretendido pela técnica indutora do voluntário saneamento da infração que, visa, também, maior efetividade da arrecadação tributária.
Aliás, como bem salientou Leandro Paulsen, “na medida em que a responsabilidade por infrações resta afastada apenas com o reconhecimento e cumprimento da obrigação, preserva-se a higidez do sistema, não se podendo ver nela nenhum estímulo à inadimplência”.[6] Contrario sensu, excluída a responsabilidade por infrações mediante simples parcelamento de débito espontaneamente confessado, destituído de qualquer garantia, estar-se-á desnaturando o instituto da denúncia espontânea e, também, do próprio sistema tributário.
Diverso não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[7], que, retomando a aplicação da Súmula 208 do extinto TFR[8], firmou posição sobre o tema em meados de 2002, quando do julgamento do REsp 284.189/SP e REsp 378.795/GO[9], cujo substrato reside em que o parcelamento não se equipara ao pagamento da totalidade da dívida para fins de incidência do art. 138 do CTN, restando assim sintetizada:
“(...)
O instituto da denúncia espontânea da infração constitui-se num favor legal, uma forma de estímulo ao contribuinte, para que regularize sua situação perante o fisco, procedendo, quando for o caso, ao pagamento do tributo, antes do procedimento administrativo ou medida de fiscalização relacionados com a infração.
Nos casos em que há parcelamento do débito tributário, não deve ser aplicado o benefício da denúncia espontânea da infração, visto que o cumprimento da obrigação foi desmembrado, e só será quitada quando satisfeito integralmente o crédito. O parcelamento, pois, não é pagamento, e a este não substitui, mesmo porque não há a presunção de que, pagas algumas parcelas, as demais igualmente serão adimplidas, nos termos do artigo 158, I, do mencionado Codex.
Esse parece o entendimento mais consentâneo com a sistemática do Código Tributário Nacional, que determina, para afastar a responsabilidade do contribuinte, que haja o pagamento do devido, apto a reparar a delonga do contribuinte.
Nesse sentido o enunciado da Súmula n° 208 do extinto Tribunal Federal de Recursos: ‘a simples confissão de dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura denúncia espontânea’.
A Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001, que acresceu ao Código Tributário Nacional, dentre outras disposições, o artigo 155-A, veio em reforço ao entendimento ora esposado, ao estabelecer, em seu § 1°, que ‘salvo disposição de lei em contrário, o parcelamento do crédito tributário não exclui a incidência de juros e multas’.
(...)”.[10]
Em abril de 2009, aquela Corte Superior, órgão constitucionalmente incumbido da função de interpretar a legislação federal, confirmou a jurisprudência sobre a matéria, sob o regime de recurso especial repetitivo, de que trata o art. 543-C do Código de Processo Civil.[11]
Tal orientação, nas palavras de Bernardo Moraes, “acha-se coerente com o ordenamento jurídico, uma vez que no pedido de parcelamento não há a comunicação da existência de qualquer infração”.[12]
Ademais, como bem evidenciam os julgados do STJ, a inserção do art. 155-A e § 1º, no Código Tributário Nacional, pela Lei Complementar n. 104, de 2001, denota, igualmente, a preocupação do legislador de preservar a higidez do sistema tributário, abalizada por mandamento expresso que determina a incidência de juros e multas quando oportunizado o parcelamento do crédito tributário. É falacioso o argumento de que se inviabilizaria a concessão desse favor fiscal ao devedor, eis que, apenas, se impõe que, pretendendo se livrar das multas, deve pagá-las nas condições fixadas em lei. Como se vê, a própria norma inserida no § 1º do art. 155-A autoriza ao legislador ordinário a exclusão de multas, o que será valorado quando da edição de lei específica concessiva de parcelamento.
3 Conclusão
Valores há que exigem permanente e constante tutela protetiva, evidenciando-se, eventual possibilidade de parcelamento do débito, abrangência dissonante do sentido e alcance do instituto da denúncia espontânea, o que estaria em contradição com seus próprios fins.
A pretendida elasticidade ao instituto da denúncia espontânea acaba por dispensar tratamento díspare aos contribuintes, malferindo o art. 5º, caput, da Constituição da República de 1988. Diante de parcelamento do débito tributário, não deve ser aplicado o benefício da denúncia espontânea da infração. O parcelamento configura apenas início de pagamento, destituído de qualquer garantia. Entendimento diverso premiaria a inadimplência, comportamento prejudicial ao interesse fazendário e, de resto, à coletividade.
Referências Bibliográficas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. 5ª reimpr. Coimbra: Almedina, 2003.
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. vol. 2. 2ª ed. rev. aum. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
TAVARES, Alexandre Macedo. Denúncia espontânea no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002.
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. 5ª reimpr. Coimbra: Almedina, 2003, p. 429.
[2] Cf. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. vol. 2. 2ª ed. rev. aum. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 626.
[3] “... a norma do art. 138 do CTN é uma norma indutora de conduta, vez que o núcleo de sua hipótese não reclama um comportamento obrigatório ou proibitivo, mas uma facultas agendi colocada à esfera de disposição dos destinatários, concebendo como prêmio o direito à exclusão da responsabilidade pela infração cometida, sempre que o autor do fato delituoso opte pelo voluntário saneamento da falta” [TAVARES, Alexandre Macedo. Denúncia espontânea no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 70-71].
[4] PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 989.
[5] Superior Tribunal de Justiça, REsp 284.189/SP, Relator Ministro Franciulli Netto, 1ª Seção, Data de julgamento: 17/06/2002, DJ 26/05/2003.
[6] Cit. Direito tributário, p. 989, grifos que não constam do original.
[7] Cf. AgRg nos EAg 870867/SP, Relator(a) Ministra Eliana Calmon, Corte Especial, Data do Julgamento: 02/02/2009, DJe 09/03/2009.
[8] “A simples confissão da dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura denúncia espontânea”.
[9] Cf. cit. Direito tributário, p. 990.
[10] Superior Tribunal de Justiça, REsp 284.189/SP, Relator Ministro Franciulli Netto, 1ª Seção, Data do julgamento: 17/06/2002, DJ 26/05/2003, grifos que não constam do original.
[11] Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.102.577/DF, Relator(a) Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, Data do Julgamento: 22/04/2009, DJe 18/05/2009.
[12] Cit. Compêndio de direito tributário, 2004, p. 628.
Procuradora da Fazenda Nacional lotada em Brasília. Pós-graduada em Direito Público. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, Flaviane Ribeiro de. Incompatibilidade do parcelamento do débito com o benefício da denúncia espontânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2011, 09:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27503/incompatibilidade-do-parcelamento-do-debito-com-o-beneficio-da-denuncia-espontanea. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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